domingo, 24 de abril de 2016

Vida Roubada - Capítulo 19

O frio da Rússia não fez a última manhã de Elizabeth naquele país ser menos desagradável. Ela encarou as paredes do hotel no silêncio típico do amanhecer como quem procura uma razão para ter esperança. Lá no fundo sua consciência dizia haver sim uma razão para estar feliz. Acabara de receber confirmações de que sua irmã está viva. Isso já era sem dúvida um alento. Porém, viva e escravizada por alguém capaz de adquirir um ser humano. Alguém cujo nome parecia ser Sebastian.

            - Quando eu colocar as mãos em você, Sebastian, vou colocá-lo numa cela bem trancada. Pode apostar.

            Miguel não acordou com a voz da esposa que, aos sussurros, fazia planos. Ele sentia seu espírito preocupado. Elizabeth parecia não desligar a cabeça das preocupações nem mesmo quando adormecida. Por isso tinha o sono tão leve e interrompido muitas vezes ao longo da noite e também se levantava tão cedo, assim que o sol surgia. Isso o preocupava muito. Ela não oferecia ao corpo o descanso devido.

            - Não estou gostando de competir com esse Sebastian. – Comentou, sorrindo, enquanto a abraçava. – Nem mesmo pelos seus pensamentos.
            - O amor é seu, sempre será. Mas enquanto eu encontrar esse homem e recuperar Bia, esse homem não sairá da minha cabeça. O nome dele é tudo o que eu tenho, Miguel.
            - E a indicação de que é muito rico. O bastante para comprar uma pessoa.
            - Porque diz isso? – Liz estranhou. – Não sabemos o valor da transação.
            - Nem precisa. Garanto que é muito dinheiro, ainda mais se for verdade o que a garota lhe disse: Bia estava envolvida com ele. Ou seja, ele foi ao leilão comprar a ela e não a qualquer garota. Sendo assim, aposto que lhe arrancaram grana alta. E tem mais. Não é qualquer um que tem dinheiro para esconder alguém. Certamente ele não a levou para a residência oficial.
            - Miguel, você poderia ser policial. Tem raciocínio rápido. Quando quiser, lhe contrato como meu assistente.
            - Dispenso, meu amor. Nesse momento prefiro o posto de marido. Vou pedir o café da manhã enquanto você se troca. Enjoada?
            - Nem um pouco.
            - Ótimo. – Então lhe beijou, enfim, e sussurrou um bom dia junto de sua boca. – Nosso vôo sai às 15hs. Não esqueça.



            Elizabeth não esqueceu e até por isso passou o dia todo olhando para o relógio. Tinha muito a fazer ainda. Primeiro buscou por informações de Gregory e descobriu que ele conseguiria sobreviver e assim que possível seria deportado ao Brasil, onde responderia por seus crimes. Lá, ela esperava que ele confessasse e entregasse cúmplices. Mas a tarefa mais importante era a coleta de dados. Quase tudo já fora feito por Rebeca. A colega fez cópias digitais de muitos dos documentos e fotografou os cômodos do grande prédio onde a boate operava. Com aquilo Liza já podia trabalhar. Ainda assim, a grande pergunta continuava.

            - Você encontrou alguma referência a alguém chamado Sebastian?
            - Não, infelizmente, Liza. Quase não há nomes. Apenas apelidos e números. Teremos um imenso quebra-cabeça à montar se quisermos chegar em alguém.
            - Montaremos ele então, Beca. Conseguiu as imagens de câmera de segurança?
            - Sim. Só uma câmera na quadra e outras três na principal rua de acesso. – Rebeca respondeu.
            - Ótimo. Vou revisar take por take e duvido que não encontrarei um certo grisalho, de altura mediana e muito charmoso entrando várias vezes nesse lugar. E aí eu descobrirei quem ele é.

            Sem saber que sua irmã já iniciava uma caçada contra Sebastian, Beatriz habituava-se à sua cela revestida em ouro e luxos, porém privada de liberdade. Nos dias que seguiram sua chegada aos EUA, Sebastian não apareceu. Ela passou manhãs olhando pela janela a vista muito distante vista do décimo quinto andar. Limpava aquele apartamento já reluzente. Lia revistas nas quais não tinha interesse algum. E se arrumava para um homem que nunca chegava.
            Na primeira vez que a porta se abriu o coração de Beatriz saltitou no peito. Foi até a boca e voltou ao lugar, decepcionado, quando Francisco passou pela porta. Ele vinha carregando uma sacola e parecia constrangido em lá estar. Sem nada dizer, largou as compras que ela não precisava sobre o balcão da pia e sentando-se na sala apenas olhando-a. Também sem nada a dizer, Beatriz guardou as compras sem nada falar.



            - Deixe de ser birrenta e sente aqui comigo. – Francisco incentivou. – Vamos conversar.
            - Porque você veio aqui. Eu não precisava de nada disso.
            - Mas está há dias sozinha aqui sozinha e uns minutos de prosa não vão te fazer mal. Me conte...gostou do novo lar?
           
            Beatriz sentiu-se um tanto ridícula. Gostar ou não gostar, naquelas circunstâncias, pouco interessaria ao motorista de seu...seu proprietário. Nesses dias ali presa, chegou a odiar Sebastian. Logo depois, voltava a desejar sua presença. Não deveria apreciar sua companhia. Nem mesmo quando ele lhe tratava bem e afagava porque a culpa de ali estar era apenas dele. Por mais carinhoso que fosse, por mais saboroso que fosse seu beijo ou sentisse prazer no toque, ainda assim, Sebastian era tão criminoso quanto Gregory.

            - É difícil gostar de uma prisão, por mais agradável que ela seja. Não adianta você dourar a pílula, Francisco. Não entendo porque Sebastian me quer aqui se nem mesmo vem ver se estou viva. Não passo de um capricho dele. – Disse ao funcionário de confiança, sabendo que aquela tristeza chegaria em Sebastian. – Não vem e me mantém presa aqui. Até na cadeia os presos têm direito a banho de sol, eu nem isso.
            - Você tem uma ampla sacada em que o sol bate todas as tardes, bela Beatriz. Mas compreendo sua tristeza. – Ele mais do que compreendia. Sentia-se mal em participar daquilo, ajudando o patrão a manter uma mulher em cárcere privado. Ainda assim, tinha por ele um profundo senso de lealdade. – Mas não seja injusta com o patrão. Ele preocupa-se sim com o seu bem-estar. Estou aqui a pedido dele.
            - E porque ele não apareceu aqui?
            - Sebastian é um homem muito ocupado, Beatriz. Nem mesmo à família ele dá atenção diariamente. Obviamente, também não poderá vê-la sempre.
            - Família? – Aquilo despertou a curiosidade de Bia. – Ele é casado? Por isso não me levou para casa? É isso?

            Francisco não podia trair o patrão informando a Bia coisas que ele não discutia com ninguém. Então manteve-se calado. O que apenas deixou a jovem à sua frente ainda mais interessada no assunto.

            - Não vai falar. Eu já imaginava. – Ela provocou-o. – Mas eu vi uma foto da menina. É filha dele né? – Mais uma vez, recebeu apenas silêncio como resposta. – Aposto que ele é um péssimo pai.

            Naquela tarde Francisco estava à frente do escritório de Sebastian com o carro ligado quando o patrão entrou no veículo. No caminho para casa, além de dirigir, ele contou seu breve encontro com Beatriz. Contou quase tudo, omitiu apenas a referência a pequena Luísa.

            - Então ela está entediada e mal humorada? Ótimo. – Disse ele, irônico. – É tudo o que eu precisava para completar o grupo de insatisfeitos comigo. Pedi que fosse ver se ela estava bem, não para lhe oferecer uma sessão de análise, Francisco. Era para levar comprar e não conversar.
            - Fiz um bem a ela, patrão. Ficar isolada por tantos dias é algo difícil para qualquer um. E...se me permite...
            - Você sabe que eu permito. Diga de uma vez.
            - Ela está certa ao menos em uma coisa: não pode lhe manter preza assim, num lugar fechado, por muito mais tempo.
            - E o que me impede?
            - Seria desumano. E você não é assim. – O funcionário disse, com franqueza.
            - E o que acontece se ela fugir e ir parar na embaixada brasileira? Eu serei preso e ficarei desmoralizado no mundo todo. Comprei aquele apartamento por possibilitar passeios no condomínio, mas não confio nela para deixá-la livre ainda.

            Francisco não respondeu. Já tinha opinado. Tentar mudar o pensamento do patrão era um passo além. Um passo que ele não pretendia dar. Ainda assim, percebeu que ele tinha mais a falar.

            - Está nervoso, patrão. Problemas nos negócios?
            - Os de sempre. Já na vida...fiquei sabendo que a Noxotb foi invadida e fechada pela polícia. Alguns clientes foram presos...e papeis apreendidos.
            - Acha que algo pode vinculá-lo ao lugar?
            - Não. Mas... a notícia que li a respeito me chamou a atenção por um detalhe. A investigação não é russa...é da polícia brasileira.
            - E qual a diferença?
            - Nenhuma...só achei curioso. Vou me manter informado disso tudo. Difícil é ter tempo para tudo. Minha mãe e minha filha também não estão nada satisfeitas comigo...ninguém parece estar. – Dessa vez ele falou mais para si mesmo que ao motorista.

            Desde o dia em que chegou de volta aos EUA, instalou Beatriz e foi para casa, já enfrentou problemas com a família. Assim que chegou em casa, viu Luísa com a avó  brincando. A pequena largou tudo para ir lhe abraçar enquanto a mãe não perdeu a oportunidade de reclamar por um longo período distante de casa.

            - Quem é vivo sempre aparece. – Comentou a idosa. 
           
            Logo ele estava repreendendo Angelina por falar daquela forma na frente da neta. Isso serviu para dar início a mais uma discussão e, estando ele cansado e bastante irritado com problemas acumulados, não estava nem um pouco disposto a suportar a intromissão da mãe.

            - Vou tomar banho e ir para a empresa. – Informou, irritado.
            Luísa tinha outros planos. Pretendia brincar com o pai que pouco via. E ao vê-lo discutir com a avó e já querer sair novamente, magoou-se. Aos prantos, Luísa correu para o seu quarto, gritando não gostar mais de seu pai, já que ele não gostava dela. Sebastian até tentou conversar com a filha, mas nada conseguiu. Quando queria, Luísa era tão rebelde e teimosa quanto ele.

            - Eu não quero falar com você. Vai embora. – Ela gritou quando ele apareceu na porta para lhe entregar um presente. Outra das bonequinhas russas que ela tanto gostava.

            Amava a filha. Mais do que já havia amado qualquer mulher. E certamente mais do que amaria qualquer pessoa que viesse a entrar em sua vida. Se vivia mais afastado dela do que gostaria, era porque a vida lhe exigia isso. Jamais por falta de sentimentos. Mas isso tudo era muito difícil para tentar explicar a uma menina tão pequena. Ele tinha esperança de que conforme crescesse. Luísa entendesse seu amor e sua forma de amar.
            Ele saiu de casa direto ao escritório central de seus negócios. Grande parte de sua vida foi dedicada a criação de um império hoteleiro ao redor do mundo. Hoje percebia que aquele império não o fez feliz. Trouxe dinheiro e status, é verdade, mas tomava grande parte de seu tempo, afastava-o da família e não o ajudou a construir um lar feliz. Agora, porém, não havia mais o que fazer. Muitas pessoas dependiam do sucesso de seus negócios. Por isso, passou os dias que se seguiram dedicado aos negócios, de reunião em reunião, vistoriando instalações do novo hotel e aprovando investimentos em unidades mais antigas. Aprovou também a venda de um deles, que já não se mostrava vantajoso. E ficou sem ver Beatriz por todos esses dias.
            O plano era não vê-la hoje também. Justo hoje, não. Aquele era um dia muito triste em sua vida, no qual, caso pudesse, evitaria ver qualquer pessoa, ainda mais uma mulher. Naquele dia completava-se quatro anos da morte de Lílian. Os que o viam, achavam que aquela tristeza era luto. Dor pela perda do grande amor de sua vida.

            - Tolos. – Sebastian sempre pensava.

            Era raiva. Por alguém que, mesmo morta, seguia endeusada e preservada de todos os seus pecados. Enquanto ele tinha de lidar dia após dia com as consequências. Era dele que Luíza se ressentia e a ele quem Angelina cobrava por estar ausente. Se Lílian tivesse se portado como uma boa esposa, Luísa teria uma mãe e ele poderia ser um pai e marido como qualquer outro, sem estar sempre em dívida com a filha. E, principalmente, seria um marido fiel, não teria conhecido nenhuma das garotas da Noxotb. E não teria comprado uma mulher que mantinha presa e afastada de todos, também magoada por sua ausência.
            Naquela noite, bebeu sozinho em um bar antes de chamar Francisco para buscá-lo. Entrou no carro sentindo as pernas trôpegas. Não deveria ir ver Beatriz...mas foi para lá que orientou o motorista a seguir. Precisava dela, do calor de seus braços. Mesmo que não fosse a melhor das companhias, sabia que ela o acolheria. Lá no fundo de sua consciência, pensava que talvez isso ocorresse porque ela não tinha alternativa.

            - Ela é minha, Francisco, só minha. Eu fiz bem em comprá-la. Assim ela não pode me abandonar. – Falou, quase que para si mesmo, durante o trajeto. O funcionário nada respondeu.

            Sebastian não conseguiu nem mesmo chegar ao elevador sem auxílio. Francisco teve de lhe oferecer apoio, além de abrir a porta. Prometeu esperar no carro, mesmo que para isso tivesse de passar a madrugada toda acordado. Beatriz entendeu o recado.

            - Não se preocupe. Não vou me aproveitar do estado dele para fugir. – Respondeu.

            Tonto, Sebastian esteve irreconhecível naquela noite. Agarrou-se a ela, tentou tirar-lhe a roupa, mas os dedos não conseguiam abrir os botões da roupa. Estava tão bêbado que mal conseguia falar. Coube a Beatriz, tirar a roupa e os sapatos dele e o colocar para dormir. Depois ela jogou-se sobre seu peito e também adormeceu. Dormiram nus, com muita intimidade, mas nenhuma intenção sexual. Ele estava bêbado demais, ela triste.
            Quando o sol clareou o dia, Beatriz levantou-se cedo e tomou banho. Esperava que Sebastian continua-se dormindo até tarde devido ao álcool, mas ao deixar o banheiro com os cabelos ainda molhados, o viu acordado e já de pé, mesmo que com os olhos enovelados pelo álcool. Beatriz esperava ter de lidar com um homem irritadiço e talvez violento. Mas não. Sebastian foi calado ao banheiro, tomou um banho e voltou com o cabelo molhado e um sorriso no rosto. Beatriz jurou guardar aquela imagem na memória quando fosse embora. Ele podia ser uma pessoa difícil, mas também era charmoso como poucos.



            - Bom dia. – Ainda nú, beijou-a. – Não me lembro de ter chegado aqui, mas imagino que você tenha tirado minha roupa e cuidado de mim. Obrigada.
            - Não precisa agradecer.
            - Acho que deveria ligar para Francisco. Ele passou a noite no carro, de vigia para que eu não fugisse enquanto você estava em coma alcoólico.
            - Eu liguei para ele assim que acordei. – Sebastian passou a mão nos olhos. – Me dê um comprimido para dor de cabeça, por favor. Ela parece que irá explodir.

            Indo até a cozinha, Beatriz não se surpreendeu em encontrar facilmente uma caixa de primeiros socorros. Lá havia um vidro com comprimidos para dor. Ela ofereceu um a Sebastian.

            - Vou preparar um café da manhã. Quando estou sozinha, faço a versão brasileira, só com café e pão com manteiga, mas imagino que você tenha o costume dos americanos. Tem ovos e bacon, se quiser.
            - Não, meu cardiologista desaprovaria. – Nem mesmo a dor de cabeça lhe tirou o humor do dia, garantido ao acordar ao lado de Beatriz. – Não faça café. Há uma cafeteria discreta a uma quadra daqui. Quero ir lá com você. Vista uma roupa discreta e quando chegarmos lá evite demonstrações de afeto ou falar com estranhos.

            Talvez fosse apenas carência, ou o resultado de tantos dias longe dele, mas um sentimento de afeto tomou conta de Beatriz ao vê-lo abrir a porta do apartamento e sair com ele para a rua. Ele olhava em volta, parecia ter receio de ser visto junto dela, mas não se afastava. E ela enfim pode ver pessoas, ouvir vozes e aproveitar um pouco da companhia dele. E, o mais incrível, é que não haviam transado. Não foi por sexo que ele veio ali, foi pela atenção e carinho dela.



            - Obrigada por me trazer aqui. – Ela lhe disse enquanto comiam.
            - Não quero seu mal, Beatriz. Se você conseguir ser discreta e se comportar bem, farei o possível para vê-la feliz.
            - Eu sei. – A resposta não era uma promessa de obediência. Simplesmente porque ser discreta e comportar-se bem não estava em seu planos. Mas, naquele momento, o melhor era não entrar em atrito junto de Sebastian e conquistar toda a liberdade que ele pudesse lhe oferecer.

            - Ótimo. Termine seu café. Quero levá-la a um parque próximo daqui. Você tem razão, é linda demais para eu lhe privar do sol.

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