domingo, 24 de abril de 2016

Alguém Para Perdoar - Capítulo 4

       - Boa tarde, enfermeira. Sou Emily Fruett Vicentin. Fique sabendo que uma amiga veio aqui porque atropelou uma criança. Preciso vê-las. – Com classe e uma pitada de altivez na voz, Emily sabia impor seu desejo. Ela fazia um pedido, mas soava como ordem.
           
            Não que fosse algo planejado pela chefe de cozinha. Era apenas uma característica natural, cultivada ainda muito jovem quando, saída de um abrigo, foi morar no exterior e precisou impor-se para ser respeitada. Esse jeito delicado e mandão ao mesmo tempo, também era característico da amiga que agora procurava. Mas no caso de Melissa, a qualidade vinha de berço. Nascida em família abastada, Mel construiu a própria fortuna brilhando em passarelas internacionais. Depois, abandonou a carreira para casar-se com um renomado engenheiro civil. Rafael era sócio de Jonas na JRJ Construtora e completamente apaixonado com por Mel, com quem se casou há quase 15 anos.



            - Emily! Estou aqui! Ainda bem que você chegou! – Melissa gritou no corredor.
            - Claro que eu vim! Você está bem? Conseguiu falar com Marta? – Até onde Emily sabia, a criança atropelada era uma das muitas acolhidas por sua mãe de criação no mesmo abrigo onde ela cresceu.
            - Sim. Ela está vindo. Eu não me feri gravemente e nem a menina, mas o susto foi grande.
            - Dos males o menor então. Agora me conte como uma criança estava sozinha fora do Lar de Amparo.

            Era uma longa história. Que Melissa e Emily só entenderam completamente com a chegada de Marta. A senhora que, mesmo com a idade avançada, não conseguia abandonar o cansativo trabalho de administrar um abrigo para menores em situação de vulnerabilidade social, explicou tudo com a ajuda de uma xícara de chá. A criança atropelada chama-se Isabely, tem 12 anos e uma longa trajetória de abusos físicos e psicológicos. O atropelamento aconteceu durante uma fuga da menina da casa da família que a tinha acolhido. Uma de muitas.

            - E agora, após essa nova fuga, a família informou a assistente social que não mais deseja ficar com ela. – Triste, Marta contou. – Isabely voltará ao abrigo comigo. Eu sofro porque sei que essa menina é uma criança boa, apenas não consegue conviver com um pai e uma mãe.
            - E a família natural de Isabely? – Emily perguntou.
            - Ela foi retirada deles pela primeira vez aos cinco anos, quando confirmou-se uma denúncia de abuso sexual por parte do companheiro da mãe. – A senhora disse e ambas as mulheres se arrepiaram. – Depois ela retornou à mãe, mas tornou a vir ao abrigo quando ela se entregou às drogas. Deixava a filha sozinha em casa e ia às bocas de fumo. Ela perdeu os direitos sobre a filha e não há outros parentes. A menina foi indicada para adoção. Mas na sua idade é raro alguém se interessar.
            - E ela também não quer. – Emily disse. – É provável que ela fique no abrigo até completar 18 anos. Como eu.



            - Sim. – Marta confirmou. – Mas é diferente. Você foi deixada lá ainda bebê, não teve pai, porém, também não foi traumatizada por maus tratos. E ela está numa fase complicada...está no momento em que toda a menina precisa de uma mãe para aconselhá-la e ouvi-la. Ela não tem ninguém.
            - Ela não quer, mãe. E eu sei que você pode ser a melhor mãe do mundo.
            - Já estou muito velha. – Marta respondeu à filha de criação.
            - E porque você acha que ela foge do lar adotivo se no abrigo não faz isso? – Melissa, vinda de uma família tradicional, sentiu-se muito tocada com a história de Isabely.
            - Quem já foi muito machucado na vida, costuma ter dificuldade em amar. Ela teve um pai que a abandonou, outro que a usou da pior forma e uma mãe que escolheu as drogas a cuidar dela. Que motivo ela tem para confiar em um casal?

            As três esperaram por Isabely na saída da emergência. Viram surgir uma menina muito magra, naquela fase em que as garotas espicham e têm o corpo um tanto desproporcional. Ela não era mais uma criança, muito devido a tudo que já passou na vida. Também estava longe de se tornar uma mulher.



            - Oi Marta. Eu vou com você? – Havia um pouco de esperança naquela pergunta.
            - Sim, vai. O senhor e a senhora Vieira se disseram tristes pela sua última fuga. Resolveram que se você não os quer como pais, aceitarão e não mais tentarão convencê-la a morar com eles.
            - Que bom. Não queria mesmo ser filha deles. Não preciso de pai e mãe. Tenho você.
            - Como está seu braço? – Marta preferiu ignorar.
            - Não foi nada, só torci o cotovelo. Nem doeu muito.
            - Que bom. Agora cumprimento Emily e agradeça Melissa. Foi ela quem lhe prestou socorro quando você causou esse acidente. E nunca mais saia correndo numa avenida movimentada. Na próxima, pode encontrar alguém menos gentil que ela.
            - É, eu sei...mas tinha que fugir deles. E foi bom que assim aqueles idiotas desistiram de me adotar.
            - Isabely! – Marta repreendeu.
            - Tá bem, tá bem! Oi Emily, legal te ver. E valeu pela ajuda aí moça...desculpa se amassei seu carro.    

            Cada uma foi para o seu lar. Marta cuidar de Isabely, Emily organizar seu jantar com amigos e Melissa seguir com sua vida perfeita ao lado da família dos sonhos. Naquela noite, porém, seu pensamento estava longe. Tanto que até mesmo Tales, de apenas 14 anos, percebeu que a mãe não estava atenta e concentrada como sempre. Ela nem reclamou quando ele devolveu o prato sem comer a salada. E ao contrário de todas as outras noites, ela comeu uma farta porção de sobremesa. Quando Tales se recolheu ao quarto, Rafael perguntou à esposa o que a estava perturbando tanto.




            - Eu atropelei uma criança hoje, uma menina de 12 anos.
            - O que? Como? Porque não contou antes? Foi grave?

            Quase arrependida de ter falado algo, Melissa contou tudo ao marido, incluindo a estranha coincidência que inclui Emily e sua mãe de criação no caso. E também a história da menina. Ela viu choque nos olhos do marido ao revelar o que aquela menina já havia sofrido na vida. E também percebeu compreensão ao lhe dizer que ela era um tanto agressiva e não gostava de conhecer pessoas.

            - É natural. Ela sofreu muito. É uma criança traumatizada.
            - Sim...e eu fiquei tocada por Isabely. Quero fazer alguma coisa por ela.

            Quando a esposa falou, Rafael pressupôs que ‘alguma coisa’ fosse lhe comprar alguns presentes, oferecer um passeio ocasional ou, quem sabe, patrocinar um tratamento psicológico junto de um profissional renomado da área. Nada disso chegava perto do que passava pela cabeça de Melissa.
            Há cinco anos, quando Emily e Jonas ainda eram noivos, uma criança recém nascida fora jogada por sobre o muro de uma das obras realizadas pela JRJ Construtora. Ela e Rafael cogitaram adotar aquela menina e criá-la como sua, junto de Tales, com todo o amor que merecia. O plano só não foi colocado em prática porque Emily criou laços instantâneos com a menina e convenceu Jonas a adotá-la. Vida, como foi batizada, tornou-se uma Vicentin e eles nunca mais falaram em ter mais filhos, seja naturalmente ou por adoção. Agora, aquela ideia voltava a tomar sua mente e coração. E de uma forma fulminante, daquelas que surgem da alma, sem deixar margem à dúvida.
            Melissa preferiu deixar de lado a conversa por alguns minutos. Não por desistência nem por medo. Era apenas estratégia. Ela colocou o filho na cama, banhou-se e esperou na cama até que Rafael veio para junto dela. Então deu início aquela conversa tão especial.

            - O que você acha da ideia de nos tornarmos uma família acolhedora? De adotarmos...uma criança? – Dessa vez ela não foi direta, como sempre agiu com o marido. Preferiu preparar o terreno. Não adiantou muito.
            - Acho ótimo. – Rafael respondeu. Ele entendia exatamente o que acontecia. – Mas temos de tomar cuidado. Com Vida, Emily e Jonas tiveram sucesso, mas nem sempre é assim. Eu sei o que você está pensando e...por favor Mel...conheço você! Está sufocada pela história de abandono da menina e...
            - Porque não podemos ser uma família acolhedora para Isabely? Ela só precisa de amor...do amor de uma família...e...
            - Ela é uma criança problema, Melissa. Se você quiser um bebê, ou uma criança pequena, ok. Mas não uma pré-adolescente que dará muito trabalho e fugirá de casa a cada semana tentando nos fazer desistir dela. Essa menina não quer um lar! E já levando em conta os problemas familiares dela, é compreensível. Ajude-a lá onde ela está. É o melhor.
            - Não! – Melissa enfrentou Rafael. – É o mais cômodo para nós!

            Mel conhecia muito bem o marido. Aquela reação não representava sua maneira de agir normalmente. Ele podia sentir medo, podia estar desconfiado. Mas jamais Rafael ficaria insensível diante de uma injustiça social como aquela. Isabely merecia uma família e cabia a ela mostrar ao marido que eles poderiam ser aquela família.

            - Ela não é um problema. É uma criança, como Tales. Só que não teve a chance de conviver com um pai descente e amoroso como você sempre foi para o nosso filho. Se ela tivesse amor, não agiria assim. Ela foge porque ainda não encontrou pais em quem possa confiar. Só isso.
            - Mel...
            - Não precisa responder agora. Só pense na ideia, por favor.
            - Está bem. Eu vou pensar. Agora vamos dormir. – Mas então ele viu a esposa pegar o celular do móvel ao lado da cama. – O que está fazendo?
            - Mandando um e-mail rápido para minha advogada. Quero que ela me informe como ocorre o trâmite de adoção.
            - Melissa! Você acabou de dizer que eu poderia pensar...e agora já decidiu que vai falar com a advogada? – Dessa vez Rafael se irritou.
            - Você pode gastar o tempo que quiser pensando, meu amor. – Com um sorriso, Mel acalmou o marido. – Eu durmo ao seu lado há 15 anos. Te conheço tanto que sei muito bem qual será a decisão final. Você não é do tipo que escolhe o mais fácil. Já estou vendo sua resposta...e é por isso que eu te amo.

            O estranho acidente daquela tarde também foi assunto no jantar na casa de Emily e Jonas. Ali estavam muitas crianças e os adultos presentes sentiram-se tocados pela história de Isabely. Ainda assim, não condenavam os pais que, agora, desistiam dela. Lidar com uma adolescente rebelde e revoltada não era tarefa fácil. Emily, Jonas, Jéssica, Lorenzo e Milena estavam sentados na sala de estar da casa enquanto os filhos, Vida, Bernardo, Clara, os gêmeos Vicente e Cecília, e Maria Fernanda, brincavam tranquilamente.
            Nathan chegou atrasado. Vestido informalmente, ele preparou-se para um encontro entre amigos. Mas estava se sentindo como se fosse ser julgado por eles. Estava nervoso com aquele encontro. Ao mesmo tempo em que estava ansioso por rever Maria e sua mãe, também tinha receio da conversa que precisa ter com Milena. Temia a confirmação de que Maria Fernanda era sua porque isso representava muita responsabilidade. Porém, estranhamente, reconhecia que se, por acaso, outro homem fosse o pai daquela garotinha, ficaria com um amargo gosto de decepção na boca.



            Tinha as mãos tremendo ao tocar a campainha. E isso não melhorou quando Jonas abriu a porta. Ao fundo pode ver Lorenzo abraçado à sua esposa, enquanto Emily servia algumas taças. Impossível não pensar que ali era um mar de casais perfeitos enquanto ele destoava. Ele e Milena eram os peixes fora d’água. Poderia ter sido diferente, pensou. Se há alguns anos tivesse tomado a decisão de abandonar Valentina para assumir Milena, hoje eles poderiam ser três casais perfeitos, com crianças à sua volto e sorrisos infinitos.
            Essa não era a realidade. Talvez ele fosse o pai de Maria, mas seria o pai ausente a quem Jonas e Lorenzo iriam odiar por não ter tido honra o bastante para assumir a própria filha. Como ele poderia afirmar a Jonas e Lorenzo que a irmã deles lhe escondeu a paternidade por vingança ao ser enganada e abandonada? Não podia. Seria magoá-la mais uma vez. No fundo tudo o que ele sentia ao olhar Jonas e Lorenzo era uma profunda inveja. Porque eles conseguiram vencer os obstáculos que apareceram no caminho e assumiram suas mulheres.

            - Boa noite, Nathan. Entre. – Jonas lhe estendeu a mão.
            - Boa noite. Obrigada Jonas. Boa noite Lorenzo e...desculpe...
            - Jéssica. – Sorridente, ela mesma respondeu. – Faz bastante tempo que não nos vemos.

            Nathan viu Milena levantando-se do sofá para vir cumprimentá-lo e iria lhe abraçar, queria tocá-la e torcia para que ela agora o trata-se com um pouco menos de frieza. Mas tudo foi interrompido quando Maria Fernanda ergueu-se do chão e correu até ele, abraçando-o enquanto pisava em seus sapatos. Tudo o que ele pode fazer foi sorrir e devolver o carinho tão facilmente oferecido pela menina. Ela lhe tocou o rosto com a palma das mãos, muito suave, quase como uma pluma. E Nathan sentiu que deseja receber aquele afago todos os dias.



            Não demorou para Milena vir tirar Maria Fernanda de seus braços e numa trama rápida de sinais, mãe e filha discutiram. Nathan fez uma anotação mental para pesquisar o significado daqueles sinais, mas Emily não tardou a traduzir.

            - Ela disse à mãe que você é seu amigo. – Ela disse ao amigo e viu-o sorrir como poucas vezes na vida.
            - Ela está certa. Nós já cozinhamos juntos...então posso afirmar que somos amigos. – Mesmo sabendo que Maria não entenderia, Nathan lhe disse o que seu coração desejava expressar. – Você é muito linda, princesa. Molto bella principessa.

            De alguma forma, Nathan e Maria Fernanda se reconheciam e compreendiam. Parecia que conseguiam se comunicar pelo olhar. Ela não falava, ele não conhecia libras. Mesmo assim, a comunicação fluía sem sobressaltos. Aquilo assustou Milena. Não era justo Nathan chegar do nada e conquistar a filha tão facilmente. Talvez de forma vingativa, foi quase instantâneo ela pegar a filha dos braços daquele quase estranho.



            Sorrindo, ela se afastou disfarçando enquanto orientava a filha a não pular sobre os pés de ninguém. Mesmo que esse alguém fosse seu mais novo e querido amigo Nathan. Feliz, a menina não retrucou a mãe. Mas ninguém na sala duvidava de que, até o final daquela noite, ela desejaria a companhia dele novamente.
            O disfarce de Milena funcionou. Mas não passou despercebido por duas pessoas. Emily, por já ter razões o bastante para ficar de olho em Milena e Nathan. E Lorenzo. O irmão mais velho de Milena nunca observou nada de estranho nas reações um tanto mal humoradas que ela por vezes tinha. Sempre achou Milena um tanto ‘bicho do mato’, por isso não estranhou a reação dela. Era com Nathan que ele estava preocupado. Até agora não entendia a vinda daquele homem para o Brasil, no luto por uma relação mal explicada. Mesmo abraçado em Jéssica e mantendo-se afastado dos demais, ele ficou observando o chefe de cozinha. E o olhar dele e de Milena por vezes se cruzava, apenas para ser desviado no segundo seguinte.



            - Algum problema? – Jéssica perguntou.
            - Não. Apenas notei que Nathan e Milena não se dão bem. Olhe como eles se evitam. Ela não é disso...me pergunto se ele foi grosseiro com ela em algum momento.
            - Estranho...mas não deve ser nada. – Jéssica minimizou. – Ela é uma mulher crescida, sabe se cuidar. Lembre-se disso.
            - Eu sei, eu sei. – Lorenzo deixou o assunto de lado e voltou a beijá-la.

            O jantar foi servido e todos comeram tranquilos. A conversa fluiu entre português e italiano. Falaram sobre comida, bebida, artes e viagens. Recentemente, Lorenzo esteve no Chile com Jéssica e sugeriu a Nathan uma viagem pela América Latina, agora que estava mais próximo.

            - Argentina, Uruguai e Chile têm vinícolas fabulosas, além de todos os outros atrativos. As belezas naturais são fantásticas e a gastronomia é capaz de fazer qualquer um se render à gula. – Lorenzo enumerou.

            Jonas tocou no delicado assunto da morte de Valentina. Ele queria entender o que acontecia com Nathan e o que realmente o trouxe para o Brasil tantos anos depois. Todos esperaram que ele fugisse do assunto. Não foi assim. Com muita tranquilidade, Nathan respondeu.

            - Ela estava muito doente há tempo demais. Agora, enfim, poderá ter paz e descansar.
            - Como ficará o seu restaurante na Itália? – Emily quis saber.
            - Tudo irá ficar no comando de um amigo de confiança, enquanto eu me dedico ao restaurante no Brasil. – Para ele soava simples. Pela primeira vez na vida não estava se preocupando tanto com a parte profissional de sua existência. Se perdesse o prestígio, tudo bem. Já o tinha usufruído por muito tempo. Já de felicidade não. E era por isso que agora queria lutar.

            Quando as horas foram passando, uma a uma as crianças foram cedendo ao sono e ganhando o colo dos pais para repousar, antes de serem colocados nas camas. Porém, quando Maria quis colo, Milena estava ocupada oferecendo seus braços a Vicente já que Lorenzo e Jéssica estavam ocupados com os outros filhos. Ela não ligou mesmo. Veio novamente para os braços de seu mais novo amigo.
            Depois que Vicente foi colocado na cama improvisada no quarto de hóspedes de Emily, Milena se ofereceu para pegá-la, mas Nathan garantiu ser desnecessário. Ali ela ficou até estar em sono profundo. Então, foi o próprio Nathan a levá-la ao quarto, seguido de perto por Milena. Maria, como um anjo, encostou a cabeça no travesseiro e seguiu seu sono enquanto Nathan lhe tirou os sapatos. Sabendo que Milena estava às suas costas, ele falou as palavras que Milena esperava não ter de ouvir.

            - Nós precisamos conversar. E você sabe o motivo. – Disse, apenas.
            - Não. Você tem é que nos deixar em paz.

            - Eu deixo. Mas antes você vai responder as minhas perguntas. Porque não me disse que esperava Maria Fernanda? – Perguntar se era o pai já não fazia sentido algum. Estava respondido em seu coração.

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