segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Alguém Para Amar: Capítulo 21


            Emily estava envolta em uma nuvem de felicidade. Nada poderia apagar aquela sensação de realização plena. Por enquanto, combinaram de manter a novidade em segredo. Iriam reunir a família para dar a notícia. Alguns mais atentos, porém, se olhassem bem em seus olhos ou para o sorriso que não mais deixava seus lábios saberiam que ela não mais caminhava sozinha. Naquele corpo agora batiam dois corações.
            Ela e Jonas já tinham inclusive ouvido o coração do filho. E aquele TUM – TUM – TUM ritmado e forte lhes soou como a canção mais bela e emocionante que o mundo já teve. A gravidez estava confirmada com um tempo gestacional de seis semanas. Era só o começou daquela aventura.
            Leonor bem que tentou lhes oferecer informações técnicas e indicações de cuidado. Como médica, precisava deixar claro que aquele período era ainda muito incerto, muito perigoso, ainda mais numa gestação tão intranquila como aquela se iniciava. Emily e Jonas não estavam muito dispostos a ouvir, queriam curtir as alegrias primeiro.

            - Vão para casa! Os dois! Cuidar de Vida e desse pequeno que Emily carrega no ventre. E marquem uma consulta de pré-natal quando conseguirem prestar a atenção no que eu falo! – Rendeu-se a médica.

            Agora estavam em casa, após buscar Vida no hotel em que os pais de Jonas estavam hospedados. A menina estava sorridente, parecia absorver a felicidade dos pais. Em seu berço tentando tocar o móbile que fazia minúsculos anjos sobrevoarem seu corpo, Vida recebia o olhar atento e a atenção dos pais. E recebia a importante notícia. Ela, afinal, era a irmã mais velha e tinha o direito de saber antes dos outros.

            - Mamãe está esperando um nenê. – Coube a Jonas dar a notícia. – Isso mesmo Vida! Você terá um irmão ou uma irmã!
            - Só que vai demorar um pouquinho ainda. Só um pouquinho. – Emily disse. – Em alguns meses mamãe vai poder dar colo para vocês dois. Não se preocupe. Você será sempre a nossa primogênita, nossa princesinha Vida.



            Quando fecharam a porta do quarto de Vida e puderam enfim curtir aquela notícia em privacidade, o beijo trocado teve outro sabor. Era a deliciosa sensação de vitória após a árdua luta. Emily avisou que iria tomar um banho e surpreendeu Jonas ao avisar que ele podia pedir algo para jantar porque não iria cozinhar. Ela estava tão feliz, tão animada que finalmente permitia-se um momento de descanso.
            Jonas estava também muito eufórico. Seria pai, algo que até bem recentemente não estava em seus planos. E horas antes ele implorava à Emily desistisse sem engravidar, sem saber que seu filho já crescia dentro dela. Agora parecia essencial para sua felicidade. Era um agradável peso lhe pesando nos ombros. Mesmo assim, algo ainda lhe aterrorizava. Mesmo quando se preocupava com a saúde de Emily, transou com ela sabendo que poderia engravidar. Esse era o objetivo deles. Agora, se essa gestação levasse a esposa à morte, a culpa seria dele.      Ao menos a nova e surpreende disposição de Emily em se cuidar lhe deu alguma tranquilidade. Na cama, já prontos para dormir, ele tentou convencê-la a reduzir ainda mais seus turnos de trabalho no restaurante. Perda de tempo. Organizada como sempre, a esposa já tinha reorganizado a agenda.

            - É claro que vou reduzir. Precisarei incluir as consultas, além de todas as outras atividades.
            - Outras atividades? – Ele não entendeu essa parte. – Quais seriam?
            - Jonas, meu amor, eu sou uma gestante agora. – Incrível como seus olhos brilhavam ao dizer essa frase. – Minhas amigas que têm bebês disseram que pilates e drenagem linfática são ótimos. Além disso, temos que ver se reformaremos esse apartamento ou se vamos para um maior. Precisamos preparar o enxoval! São muitas coisas.
            - E será que no meio dessas coisas todas vai sobrar um tempinho para o seu marido?
            - É claro! Você estará junto comigo na escolha de tudo. E vamos precisas nos desdobrar para cuidar de Vida também. Ela é muito pequenininha, não pode ser sentir desprezada agora que temos um bebê a caminho.
            - Não deixaremos que isso aconteça.
            - Avisarei Márcio para contratar os funcionários que julgar necessários. Aquele restaurante não me verá muito nos próximos meses! Eu já trabalhei muito nessa vida, posso tirar uma licença sem dores de consciência.
            - Pode mesmo.



            Um licença total não foi tirada. E isso já era esperado por Jonas. Emily tinha prazer em cozinhar e não abandonaria totalmente suas panelas. Mas passar a tarde e noite inteiras na cozinha já não combinava com sua rotina. Ninguém sabia o real motivo da redução de carga horária de Emily, mas muitos já desconfiavam. Alguns dias depois Márcio entregou para Emily seu primeiro presente. Um sapatinho branco.

            - Não sei se é menino ou menina, mas sei que será muito amado. Parabéns querida!
            - Como você adivinhou? Ainda é segredo!
            - Segredo para os outros, my dear. Eu conheço você. Está mais bela, mais feliz. Essa pele está mais viçosa. Você está com o brilho da maternidade, Emily.
            - Sim, eu estou grávida, meu amigo. Mas não conte para ninguém sabe. Fique calado por enquanto. Vamos fazer um jantar aqui amanhã a noite com toda a família. Jonas trará até seus avós do Rio Grande do Sul para São Paulo para receberem a notícia. Marta virá também.
            - Que ótimo! Prepararei um cardápio especial.



            Foram dias de muito amor e cumplicidade entre eles. Concluíram que mais importante que pensar em reformas, apartamentos e enxovais, por enquanto deveriam curtir a chegada daquele bebê e zelar para que nada de ruim acontecesse. Jonas preferia que Emily repousasse ao invés de fazer compras. Nos fins de tarde encontravam-se num parque. Eles junto de Vida curtindo a chegada do segundo filho.
            Quando o tão esperado jantar chegou muitos já desconfiavam a razão daquele tão inesperado convite. A mesa de jantar, reservada por Márcio, estava cheia de pessoas ansiosas. Muitos ali já desconfiavam do motivo. Não era só o brilho especial de Emily. Era também a postura de Jonas. Ele carregava Vida em seu bebê-conforto cor de rosa dependurado em um braço e mantinha o outro na cintura da esposa. Não de qualquer forma. A palma da mão acariciava e amparava o ventre de Emily, era como se ele protegesse um filho com cada mão.
            Vovó e Vovô comportaram-se perfeitamente após a viajem de avião, cansativa para eles, e descansarem durante toda a tarde. Além de Leonel, Giovanna e Milena, Marta também compareceu. E, por fim, chegaram Lorenzo e Jéssica. Para ir ao jantar, o irmão de Jonas exigiu que Jéssica também fosse convidada, algo que Emily já esperava. Ela, obviamente, estava convidada. E foi isso que Jonas respondeu ao irmão. Para a família ir completa ao evento, Emily fez questão da presença de Chiara.

            - Bom, agora que estamos todos aqui, acho que o jantar pode começar. – Jonas pediu um brinde e ergueu sua taça. – Eu e Emily temos uma ótima notícia para dar. Além de Vida, a partir de agora, nossa família conta com outro bebê. Por isso eu peço um brinde, em homenagem a essa linda mulher e mãe dos meus filhos. Brinde esse que ela fará com suco.
            - Viva! Bisnetinhos! Viva! – Vovó Ângela não mais conseguiu manter a compostura.
            - Parabéns minha nora. – Giovanna abraçou ao casal. – Vocês e Vida darão um lar abençoado para esse bebê.

            O jantar seguiu até altas horas. Emily manteve-se firme e sorridente, bebendo apenas suco. Até que Jonas a convocou para ir para casa, repousar.

            - Isso mesmo. Precisa descansar. Ouça seu marido. – Leonel concordou. – As gestantes precisam de muitos cuidados. E meu Jonas vai cuidar de você.
            - Ele já cuida muito bem sim. – Emily concordou beijando o marido.


            Aos poucos a mesa foi esvaziando. No fim, Jonas e Emily saíram após colocar os avós e pais em táxis rumo ao hotel. Marta também foi encaminhada em segurança para seu lar. Depois de se despedirem de Jonas e Emily, Lorenzo e Jéssica foram com Clara até o estacionamento. A menina estava longe de sentir sono, ao contrário, apesar da hora avançada, saltitava à frente dos adultos e mostrava estar cheia de ideias. Só Lorenzo e Jéssica ouviram a colocação da pequena Chiara. Ainda bem, pois os avós iriam fazer coro ao pedido da pequena.

            - A tia Emily vai ter neném? – Clara perguntou.
            - Sim. Está na barriga dela, crescendo. Quando nascer, será um irmãozinho para Vida. Ou irmãzinha. – Jéssica explicou, pacientemente.
            - Aaaa sim. Legal. Mas e eu?
            - Você o que, Chiara? – Lorenzo questionou a filha.
            - Quando é que eu vou ter um irmão?!?! Eu quero.



            Lorenzo riu, e muito. Não só pela pergunta curiosa de Chiara, mas, principalmente, pela expressão assustada de Jéssica. Clara tinha pego a mãe completamente desprevenida. Restou a Lorenzo dar alguma explicação. Difícil era saber o que responder, sua mente dizia uma coisa bem diferente da língua falada pelo coração.

            - Quem sabe um dia o papai e a mamãe lhe dão um irmão. – Ele tentou ser vago.
            - Mas tem de ser logo papai. Porque nenê demora muito, muito, muito, muito pra crescer. Coloca logo um bebê na barriga da mamãe.
            - Clara! – Jéssica gritou. – Isso não é assunto de criança!
            - Mas mamãe eu quero um irmão.
            - Chiara, comporte-se. – Lorenzo pegou a filha adotiva no colo. – Um dia papai e mamãe lhe darão um irmão. Um dia.
            - Tá bem, tá bem. – Gostar ela não gostou, mas aceitou.

            A noite seria passada novamente no apartamento de Lorenzo. Era assim desde a aparição de Bruno. E Lorenzo jamais escondeu sua satisfação em ver Chiara e Jéssica seguras e junto dele. Se por acaso acordasse no meio da noite teria o calor de Jéssica junto de seu corpo e poderia espiar da porta para ver o sono de Chiara. Isso para ele era felicidade. Por isso, não tinha plano algum para permitir a volta de Jéssica para sua antiga casa. Tanto que já havia comunicado ao dono que Jéssica estava entregando a casa e acertado tudo para que ainda naquela semana o lugar fosse esvaziado. Tudo organizado. Faltava apenas informar Jéssica.

            - Jéssica...eu tomei uma atitude para facilitar as coisas para você e espero que não se importe. – Começou ele com calma.
            - O que foi?
            - Você está feliz aqui comigo? Nesse apartamento? Ele pode ser o nosso lar, não pode? Clara é feliz aqui!
            - Sim, ela é. Eu sou. Nós podemos ser felizes em qualquer lugar junto de você – Jéssica respondeu sinceramente. Ela não sabia o motivo se sentir uma tempestade se aproximando. E estava certa.
            - Ótimo! Será aqui então. Para sempre. Não voltarão para sua casa nunca mais. Esse apartamento é agora o seu lar, o nosso lar.
            - Não pode ser assim, Lorenzo. Eu não posso me esconder de Bruno a vida toda. Tenho de voltar para a minha casa. Minhas coisas estão lá, minha vida é lá, não aqui.

            Lorenzo não teve alternativa que não falar tudo de uma vez. Jéssica não tinha mais nenhuma casa. Porque ele tinha cuidado disso sem avisá-la, num impulso que na hora pareceu natural, mas que agora soaria para Jéssica como abusivo.

            - Irão buscar suas coisas amanhã e trarão para cá. Esse é o lar de vocês agora.
            - Não, não é. Eu tenho casa, Lorenzo. É simples, mas eu tenho.
            - Não tem mais. Eu avisei ao proprietário que você não moraria mais lá. Ele até já tem um novo inquilino.

            Jéssica se afastou de Lorenzo instantaneamente. Ele podia tê-la ajudado, ser o namorado mais atencioso possível, o sonho de pai para qualquer criança, mas nada disso lhe dava o direito de decidir sua vida. A independência pela qual tanto lutou estava se esvaindo por seus dedos por ela se permitir todos aqueles mimos. Ou acabava com aquilo agora ou se entregaria completamente para Lorenzo. E por mais que ele a tenha conquistado e fosse feliz em seus braços, não podia permitir.

            - Você não tinha esse direito. Não tem esse direito. – Ela disse firme e objetiva antes de sair da sala.

            Lorenzo antecipou o que ela faria e antes de Jéssica conseguir atravessar o corredor e abrir a porta do quarto onde Clara dormia postou-se em sua frente. Os dois podiam até brigar e gritar, mas não iriam terminar por algo tão sem importância quanto o aluguel de uma casa. E, ainda mais, não permitiria que Clara fosse retirada de sua cama no meio da noite.

            - Você não vai levá-la daqui. Se acalme e pense antes de agir, Jéssica. Eu amo vocês! O lugar de vocês é aqui. – Lhe disse colocando-se na frente da porta. – Clara vai dormir na cama dela, está tranquila, segura e aquecida. Não vou deixar que a leve para um lugar perigoso no meio da noite. E você também não vai pra lugar algum.
            - Você não pode me prender aqui. E eu nunca deixei nada de ruim acontecer com Clara. – Jéssica se defendeu. – A criei sozinha por três anos!
            - E ainda não entendeu que não está mais sozinha! Chega, Jéssica! Nós não estamos brincando de casinha aqui. Eu quero casar com você, quero ter uma família. Chiara me chama de pai! E como pai dela eu tenho o direito de lhe dar uma moradia descente!
            - E a que eu dava era indecente! Já entendi Lorenzo! – Ela estava com muita raiva, mesmo reconhecendo alguma razão mo que ele falava.
            - Não era o ideal. E você sabe disso. Então se ficou tão brava assim brigue comigo, grite, me esbofeteie se acha que isso vai aliviar sua raiva, mas você não sai daqui no meio da noite para aquela casa! Pode me chamar de homem das cavernas, mas, como a sua segurança e de Clara eu não vou brincar!

            Nesse ponto Jéssica já estava cansada da discussão e disposta a ceder. O problema era reconhecer que sozinha, por mais que trabalhasse, não conseguiria dar a Clara o que ela merecia e para Lorenzo era muito fácil.

            - Eu não quero brigar com você. E não quero te esbofetear! Só não quero depender de você, Lorenzo! Você entregou a casa em que eu moro! Não pode decidir essas coisas por mim!
            - Está bem. Eu peço desculpas. Não farei mais nada assim. Mas, entenda, você mora aqui agora, comigo. E se um dia você e Clara forem morar em algum outro lugar será porque resolvemos aumentar a família e comprar uma casa maior. Jéssica, você e Clara são a minha família, você é a mulher que eu amo. Como eu poderia não te proteger?
            - Está bem. Mas não me esconda mais nada. – Jéssica já o abraçava e enfim eles foram para o quarto, trocando beijos que antecipavam uma gostosa reconciliação. – Eu te amo tanto. Tanto que não cabe no meu peito.

            Aos poucos Jéssica aceitou que aquela personalidade protetora era natural para Lorenzo. Ele cuidava dos que amava. Era assim com o irmão, os pais e avós. Ela e Clara não seriam tratadas de outra forma. E Jéssica entendeu que assim como ela tinha uma natureza independente, Lorenzo precisava protegê-la.
            Sem perder a independência, mas respeitando o desejo de Lorenzo, Jéssica seguiu se cuidando. Suas coisas agora dividiam espaço com as de Lorenzo no apartamento e eles viviam como uma família. A casa foi entregue e o que era temporário tornou-se definitivo. Ambos sabiam que aquele relacionamento estava a cada dia mais sério.
            A família de Lorenzo a tinha aceito completamente. Principalmente Emily e Jonas. A chefe já era uma amiga e, agora que ela estava grávida, adorava lhe perguntar sobre aquele período da gravidez. Não que a gestação cheia de mimos e cuidados de Emily pudesse ser comparada com suas lembranças do período em que gerava Clara. Mas, ainda assim, os filhos as tornaram mais próximas.

            - Jéssica! – Emily a cumprimentou quando chegou no restaurante. Já era hora dela ir para casa. – Vi um certo carro esperando uma certa moça lá fora. O que acha de não deixá-lo esperando?
            - Eu já vou, Emily. Está se sentindo bem?
            - Ótima. Mais disposta do que nunca! Agora vá! Lorenzo está esperando-a do outro lado da rua. Vá! É uma ordem da sua chefe.

            Jéssica saiu pela porta dos fundos do restaurante. Deveria pegar um estreito corredor lateral, acessar a fachada principal e atravessar a rua. Logo estaria na segurança dos braços de Lorenzo. No meio do corredor, porém, sentiu uma mão apertar-lhe o braço. Bruno. Não precisou vê-lo para saber que era ele. E quando o olhou sentiu medo daqueles olhos avermelhados.



            - Sai daqui! Me solta! Socorro!
            - Vagabunda! Tava pensando que ia se safar de mim? Que ia ficar na sombra dele o tempo todo!?!?! – Em segundos Jéssica estava no chão. Bruno estava a cada dia mais violento. E ela sentiu o primeiro chute atingi-la no ombro. – Ele não vai te ajudar agora.
            - Socorro! Para! Para! Socorro!!!!!!!!!!!!! – Ela continuou gritando com toda a sua força

sábado, 29 de agosto de 2015

Vida Roubada - Capítulo 3



            Quando alcançou o salão, como todos pareciam se referir à boate, Beatriz não se sentiu surpresa. Era exatamente como seus entrevistados haviam narrado. Um lugar escuro e onde o que valia era a negociação. Um comércio de humanos. Compra e venda de prazer. A sensualidade dos corpos seminus dançando sobre balcões, servindo as mesas ou esfregando-se nos clientes sentados bebendo em mesas redondas não disfarçava a infelicidade delas. Os clientes podiam ignorar por lhe ser mais agradável. Mas era óbvio, estava nos olhos delas, que não desejavam estar ali.
            A primeira coisa que chamou sua atenção foram os mastros dourados. Eram o único ponto bem iluminado do salão naquele momento e atraiam os olhares dos clientes que chegaram cedo. Maya, a bela e exuberante loira de cabelos fartos e olhos fortes que lhe disseram ser australiana, dançava abraçada a um deles. Ela enroscava braços e pernas, subia e descia num ritmo sensual. Alguns homens mais afoitos se aproximam para tocá-la e são delicadamente impedidos. Ela os atrai e repele no mesmo movimento.



            - Me quer? – Pergunta para um mais insistente. – Sabe o que tem de fazer para eu ser só sua por algumas horas.

            Tentando entender a mecânica daquele comércio, Beatriz viu o homem aproximar-se de uma mesa onde Samantha, Gregory e outros dois homens estavam sentados. O interessado apontou para Maya e abriu a carteira. Depois de estender algumas notas pegou uma chave oferecida por Samantha e veio retirar Maya do palco. Ganhou dela um beijo eufórico. Ela realmente parecia gostar dele. Maya sabia fingir bem.

            - Maya teve sorte. Conseguiu um cliente cedo. – Natacha disse aproximando-se às suas costas. – Acho bom você circular, servir algumas mesas, mostrar serviço. Gregory vai se irritar se você ficar plantada aí a noite inteira.
            - Ela vai passar a noite toda com ele?
            - Não sei por quantas horas ele pagou. Mas dificilmente. Ele usa aliança e ta arrumadinho. A esposa deve achar que está numa reunião de negócios. Vai querer chegar cedo em casa.

            Ali as garotas dividiam os homens em alguns perfis. O pego por Maya era um dos melhores. O cliente comprometido. Não queria muito além do que variar. Não exigia nada de mais e ia embora logo depois de se satisfazer. Mas com um problema. Esse tipo de homem bebe pouco e a boate fatura muito com as doses vendidas. Samantha insistia que todas as garotas precisavam estimular a consumação. E isso ia além de seus corpos.
            Outro perfil eram os dos muito jovens. Meninos com pouco mais de 18 anos. Eles não precisavam de prostitutas, mas gostavam. E em grupo. Para se exibir. Meia dúzia de amigos pegavam duas ou três garotas e levavam para um quarto. Era arriscado e todas ali sabiam. Esses costumavam beber muito, mas o perigo era tanto que nem mesmo Gregory gostava. Se matassem uma menina o prejuízo era alto. Mas não se negava porque esses jovens, no geral, eram filhos de antigos clientes, empresários de peso na Rússia e indispor-se com eles era péssima ideia.
            O outro perfil era oposto desses meninos. Serviam para seus avôs. E costumavam ser motivo de dinheiro sem muito esforço. Eles ‘mais bebem do que comem’, dizia a piada interna. Não era bem assim, é claro que havia alguns bem fortes apesar da idade. Todos com muita grana e viúvos, no geral eles vinham buscando a atenção de uma mulher. Alguns eram tão delicados que elas conseguiam superar o nojo de tocar tão intimamente alguém com idade para ser seu avô.
            E existia o workaholic. Caras com mais dinheiro do que laços afetivos. Não que eles se importem. O sonho de muitas delas era se tornar a exclusiva de um desses. Quase impossível. Afinal, eles procuram mulher em boates justamente para não precisar mimar uma namorada. Preferiam pagar para não ter de ligar no dia seguinte. Eram adorados por Samantha. Isso porque não importava quanto bebessem, pagavam muito bem. Apenas exigiam discrição. Podiam não precisar se esconder de uma esposa ciumenta, mas muitos costumavam estampar as páginas de economia dos jornais.

            - Isso é bom, não é? Se ele quer chegar cedo Maya logo retornará ao alojamento. – Beatriz ainda observava Maya subindo as escadas junto de seu acompanhante.
            - Você é tão engraçada Bia! – Natacha riu. – Ele vai embora cedo e Maya volta para tentar pegar mais um. E esse já estará com menos dinheiro no bolso e mais álcool no corpo. Então ela terá de ficar ligada.
            - Pega...mais de um.. – Talvez as entrevistas não a tivessem preparado tão bem assim para aquela realidade.
            - Pega quantos conseguir. Entenda uma coisa, Beatriz. Aqui eles te cobram o ar que respira. Se você não der lucro, te metem numa cova qualquer. Agora, se me der licença, vou achar um cliente. Aconselho você a fazer igual.

            Achar um cliente. O conselho de Natacha teve o efeito de jogá-la de volta à realidade. Humilhante realidade da qual ela não podia fugir. Tornou a olhar na direção da mesa de Gregory. Ele lhe fez um sinal para ir até o bar e logo entendeu que um meio de se aproximar dos clientes era servindo as mesas. Era isso ou dançar. Preferiu pegar uma bandeja.

            - Isso é fim de carreira, novata. – Disse um garoto que preparava drinks do outro lado do balcão.
            - O que? – Pelo português arrastado notava-se que não era brasileiro. Mas dava para entender o que falava.
            - Esse seu corpinho lindo não foi trazido aqui para servir as mesas, meu bem. Gregory não vai gostar dessa sua ideia.
            - É...só que não sei bem como fazer para agradá-lo. – Nem queria. Mas entendia que prostituir-se era sua única alternativa se quisesse se manter viva. Fazê-los crer que tinha aceitado seu destino para então escapar. – Qual seu nome?
            - Jean. Vou te ajudar. Mas é só hoje. Não se acostume.

            Jean pegou dois copos e colocou gelo e limão num deles. Depois completou com uma bebida de cheiro forte. Ela não reconheceu. Deveria ser algo muito apreciado ali. Havia muitas garrafas daquilo.

            - Leve para última mesa à sua esquerda. Lá tem dois homens de meia idade. Um deles deve se interessar por você. Não é do tipo que curte garotinhas angelicais. Trate-o bem por mim, ok?

            Beatriz seguiu o conselho e aproximou-se dos homens. Falavam, mas suas vozes eram abafadas pelo barulho da boate. E só perceberam sua aproximação quando estava junto da mesa, estendendo as bebidas.

            - Aqui está, senhores. – O que deveria dizer numa situação daquelas?
            - Кто ты? – Um deles respondeu.
            - O que? Eu não entendo. – Bia respondeu tentando imaginar se aquilo era russo.
            - Кто ты? – Ele repetiu um grunhido que aos ouvidos dela não significou nada. Enquanto esperava uma resposta observou-a. Então tomou um gole da bebida de cheiro ruim e aproximou seu rosto dela. De alguma forma ela soube que a próxima fala daquele homem era uma ordem para esperar por ele. - Это не имеет значения. Бонита. Жди здесь.
            Quando ele se afastou e foi até Samantha pegar a chave e pagar, Beatriz já sabia que ali não estavam sendo colocados apenas o custo da bebida. Ela era a mercadoria principal. E teria de fazer valer aquele dinheiro.
            O homem que ela não fazia ideia de como se chamava tinha um palmo a mais que sua altura, cabelos grisalhos e barba grossa. Seu hábito estava quente pela bebida em quanto retornou carregando uma chave nada mais lhe disse. Provavelmente foi avisado de que não falava sua língua. Antes de tocá-la ele virou o restante do copo e engoliu rapidamente. Não fazia ideia do quem ela era, do drama que vivia. Talvez pensasse se tratar de uma vadia, não uma escrava. Talvez soubesse de tudo e apenas não se importasse.
            Ela usava uma saia curta junto de um espartilho que apertava sua cintura e forçava seus seios a ficarem empinados e cheios. No rosto a maquiagem forte tornava-a outra mulher e escondia o pânico que viveu quando aquele homem colocou a mão por debaixo de sua saia e tocou a minúscula calcinha fio dental que usava. Ele sorria, satisfeito em tê-la comprado. O grito ficou preso em sua garganta, queria empurrá-lo para longe, gritar que não faria nada.
            Jean aproximou-se deles e lhe entregou uma garrafa de bebida enquanto o cliente ainda lhe alisava e apalpava à frente de todos. Não veio apenas trazer a bebida. E Beatriz sabia.

            - Gregory quer lembrá-la que quando o Yerik descer deverá estar satisfeito com você. Se não quiser que ele mesmo a ensine a trabalhar aqui. Se aceita um conselho pessoal, esqueça de tudo e pense nisso como um trabalho. Vá lá, faça e depois esqueça.

            Ao menos ela soube que o homem se chama Yerik. Quase riu do conselho de Jean. E tinha alguma alternativa? Já sabia que teria de transar com ele. Faria isso. Esquecer seria mais difícil. Como esquecer o toque de alguém que não conhecia e não desejava? Impossível. Aquilo ficaria em suas lembranças para sempre.
            Yerik puxou-a pelo braço e a fez subir uma escadaria. Logo estavam dentro de um quarto limpo e bem decorado. Não parecia em nada com as dependências onde as garotas dormiam. Era quase com um quarto de hotel fino.
            Não houve carícia, nem afago. Yerik tirou as próprias roupas rapidamente e fez um sinal para que ela fizesse o mesmo e fosse para a cama. Quando sentiu suas mãos tocarem a pele nua entendeu o que antigas garotas de programa falavam ao lhe afirmar nas entrevistas que era diferente, não comparável com nenhum relacionamento. Dali não surgiam relacionamentos porque não havia sentimento. Ele estava pagando pelo alívio. Apenas isso. Poderia ser qualquer uma.
            Deixou-se ter todo o corpo usado naquela satisfação, mas não conseguiu esquecer quem era. Não pode imaginar-se com um homem agradável. Era impossível. Assistiu-o se excitar diante de seu corpo enquanto ela seguia fria, sem desejo ou prazer algum. E tinha consciência de que precisava disfarçar aquilo ou teria problemas. Segurando-a pelos cabelos, Yerik apontou para o chão e a bile subiu por sua garganta enquanto foi obrigada a acariciá-lo ajoelhada à sua frente. Não poderia haver nada tão humilhante.



            Quando a puxou de volta do chão foi apenas para afundar-se nela e como um touro bravo e egoísta desfalecer sobre ela alguns instantes depois. A bebida fez efeito. E logo ele mais parecia um doente em coma. Ela ficou ali, olhando para o próprio corpo e para o que havia se transformado. Alguém de quem não se orgulhava.
            Pela primeira vez desde que foi sequestrada Beatriz se questionou se valeria o sacrifício apenas para se manter viva. Talvez fosse mais fácil aceitar a morte e manter alguma dignidade. Então sua consciência lembrou-a de Eva. Prostituta ou não, escrava ou não, infeliz, decepcionada, humilhada, nada disso era motivo o bastante para fazê-la desistir de um dia rever Eva.
            Aproveitou-se do sono de Yerik ergueu-se da cama ignorando as dores deixadas por ele em seu corpo. Se os homens que procuravam mulheres ali era assim tão discretos e exigentes quanto às garotas e Gregory falaram, aquele seria um dos poucos momentos em que não teria vigilância, seja por guardas ou câmeras. Não havia janela e um ar condicionado mantinha a temperatura agradável. Por ali não conseguiria escapar. Havia um pequeno banheiro junto do quarto e nele, junto do teto, uma janela. Mas essa era tão estreita que mesmo se não tivesse grade, seria impossível sair.

            - Não. Por aqui é impossível. – Disse e forçou sua mente a se manter controlada. Teria de encontrar outra forma.


            Em São Paulo, Patrícia não conseguia se satisfazer apenas ajudando Elizabeth e Matheus nos cuidados com Eva. Ao contrário deles, sabia exatamente pelo que Bia passava. Se fechasse os olhos podia visualizar, voltar aquele tempo de sofrimento e humilhação. E não podia permitir que ela se tornasse aquilo sem tentar ajudar. Não sem ao menos tentar fazer alguma coisa. Por isso ela procurou Liz sem Matt saber.

            - Estou disposta a ajudar. Com o que precisar. – Avisou a amiga.
            - O que está me oferecendo, Paty?
            - Qualquer coisa. Eu sei que você desconfia que é na Rússia que eles agem. Posso ir para lá. Tentar procurar por Nicolay. Faço qualquer coisa para poder ajudar Bia. Aquilo não é vida para ninguém.
            - Eu acho bonita a sua demonstração de lealdade e amizade por Beatriz, Patrícia. – Elizabeth estava em sua sala na Polícia Federal, cheia de casos para resolver e sem conseguir se concentrar em nada além de Bia. – Mas a menos que tenha mentido em seus depoimentos, passou não mais do que algumas horas na Rússia.
            - Sim, é verdade. Eu apenas troquei de voo lá. Trabalhava na Grécia. Mas a base dos negócios de Nicolay é na Rússia.
            - Você não fala russo, Patrícia e, por mais duro que seja afirmar, não posso garantir que Bia está na Rússia. O meu instinto diz isso, mas não posso provar. Não posso nem mesmo afirmar que está viva.
            - Você sabe que está! Estão escravizando ela. Como fizeram comigo!
            - É no que eu acredito. Mas não posso colocar você em risco sem um indício mais concreto. – Irritada ela se levantou da cadeira e passou a caminhar pela sala. – Nem posso investigar sem estar cometendo uma infração.
            - Mas você não vai desistir, não é?
            - É claro que não. Fique tranquila, Paty. Eu vou encontrar um meio. Não vou parar. E vou precisar de você. Por enquanto, vá para sua casa e cuide de Eva ao lado de Matt. Meu amigo deve estar preocupado também.
            - Muito, desde que Bia sumiu ele não dorme bem.
            - Eu sei como é. Há uma semana eu também não durmo nem como direito. Só penso em Beatriz.
            - Mas tome cuidado. Você tem esse bebezinho aí para zelar.

            Sim, ela tinha aquele bebê. Devia ser culpa dele aquela sensação de enjôo permanente e um cansaço que parecia acompanhá-la dia a dia. Nunca foi tão sonolenta. E jamais cuidou da alimentação, mesmo sendo diabética. Sempre comeu qualquer coisa que a mantivesse de pé. Agora via as olheiras se aprofundarem em seus olhos, sentindo fome e não conseguindo comer e sem dormir bem apesar do cansaço. Foi para casa preocupada. Encontrou um apartamento vazio. Preparou uma xícara de chá e seguiu trabalhando num silêncio absoluto. Estava revisando as anotações de Bia para suas matérias, o notebook da irmã estava em seu colo e ela conferindo cada arquivo. Não podia desistir. Seria mais uma longa madrugada de trabalho.
            Miguel também estava acordado apesar do avançado da hora. Todos lhe diziam que ele não podia mais se dar ao luxo de entregar-se para o álcool. Agora não mais era um profissional liberal que respondia apenas por si. Havia uma corporação inteira a qual suas decisões mantinham os empregos. Então em todas as manhãs ele se levantava, fazia a barba e ia para a BTez. Isso não o impedia de passar madrugadas remoendo-se em arrependimentos.



            - Miguel, meu filho. Você tem de tocar a vida em frente. – Rúbia entrou no quarto do filho ao ver que ele seguia iluminado. – Eu não aguento mais te ver assim.

            Rúbia sofria vendo Miguel desabar com o fim do casamento. Jamais diria para ninguém, mas chegava a se arrepender de ter ido contra aquela união. Ao menos seu filho estava feliz e não entregando-se ao álcool e ao sofrimento. Ele apenas lhe encarou, nem mesmo mandou-a deixar o quarto como costumava fazer sempre que ela vinha conversar.



            - Não pode se entregar assim, meu filho. Reaja. Agora você tem um filho a caminho. Ele pode lhe dar tantas alegrias. Deixe Elizabeth no passado e retome o caminho da sua vida. – Orientou.
            - Desista mãe. – Miguel disse e, para surpresa de Rúbia, sua voz era tranquila, quase serena. Apesar da garrafa de bebida ao seu lado, Miguel não estava alcoolizado. – Elizabeth não será esquecida. Ao contrário, encontrarei um meio de trazê-la de volta, de reconquistar sua confiança. Só assim eu serei feliz novamente.
            - E Alejandra? E seu filho?
            - Não quero saber de Alejandra. Ela desceu muito baixo para forçar uma reconciliação que não existe. Jamais voltarei para Alejandra. Agora não a quero nem mesmo para amiga.
            - Mi nieto não tem culpa disso. É seu filho, Miguel.
            - Eu sinto pena dele. Não merecia nascer dessa forma. Mas não vou me casar com Alejandra. Quando nascer eu o registro e lhe darei uma generosa pensão. Mas é só.
            - Mi hijo. – Rúbia acariciou os cabelos do filho. – Não faça assim. Um dia olhará para trás e veja que Elizabeth não é tão importante. Importante é o seu filho, seu sangue está nas veias dele. Isso é algo a que sempre o ligará com Alejandra. Algo santo, um amor eterno. E que Elizabeth nunca esteve disposta a lhe dar.
            - Me deixe sozinho, mamãe. Por favor. Pode levar a garrafa. Eu não vou mais beber.

            Rúbia encarou aquilo como um bom sinal. Seu filho parecia estar reagindo. Logo iria despertar para a paternidade e buscaria um acordo com Ale. Um acordo que os reaproximaria. E talvez então ele encontrasse a felicidade novamente, agora formando a sua família junto de uma mulher digna e a quem sempre apoiou.
            Ela estava muito enganada. Miguel havia sim decidido não se entregar à bebida. Mas não por começar a esquecer Liz nem por decidir aproximar-se de Alejandra. Isso não aconteceria jamais. Porém, beber não lhe traria Liz de volta. E sóbrio conseguia pensar com mais clareza em como reconquistá-la.

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Diaba Ruiva - Passado Revelado: Cap 20 Part II


             Neal não foi longe. Caminhou apenas algumas quadras e apertou a campainha cujo o dono é chato, implicante e cheio de manias,mas nunca lhe deixou na mão. A porta dos Burke estava sempre aberta para ele desabafar, com direito a uma xícara do café preparado por Elizabeth e alguns conselhos.

            - Quer dizer que Rachel arriscou a vida dela, dos seus filhos e dos meus filhos também. E você finalmente viu que ela não é minimamente controlada. – Peter resumiu tudo o que ele lhe contou.
            - Querido! – Ell chamou a atenção do marido. – Eu tenho certeza que Rachel não quis nada de ruim. E as crianças nunca estiveram em risco.
            - Eu não sei, Ell. – Neal disse, um pouco desanimado. - Às vezes penso que, por mais que a ame, e amo muito, não basta.
            - Você está pensando em se separar, Neal? – A voz surpresa era de Peter. Muito ele já implicou com Rachel. E por isso mesmo jamais imaginou Neal levando-o a sério.

            Elizabeth e Peter trocaram um olhar desconfiado. Neal estava diferente, desanimado. Seria muito estranho vê-lo longe de Rachel agora. Eram complicados, ousados, inconsequentes, mas, claramente, uma dupla. Rachel e Neal se amavam, seria muito ruim vê-los divorciados.

            - Eu não sei se vou me separar. Mas eu me pergunto como teria sido a minha vida se Rachel Turner não tivesse aparecido. Ela mudou tudo. Eu...eu não me reconheço mais. Penso naquele Neal de anos atrás, sem regras e sem limites, e não vejo ele. Eu estou sempre preocupado com ela. E se eu nunca tivesse conhecido Rachel?



            - Como você estaria? – Peter sentou-se à frente de Neal. A conversa tinha ficado séria demais. – Estaria livre do FBI, em outro país, talvez cometendo mais roubos. Teria muitas mulheres na sua cama. Mas não teria uma parceira na vida, nem seus filhos.
            - Eu não me imagino sem eles. Nem sem ela. Mas não quero essa vida, sempre com receio do que ela fará. Se vai conseguir superar o passado ou ficará presa nele, de vingança em vingança até destruir tudo o que temos. Eu também queria saber o que aconteceu com meus pais. Mas não vou tornar isso uma obsessão.
            - Acalme-se Neal. É a primeira crise no casamento. Acontece, mas não acabam com o amor. Esfrie a cabeça Neal. Durma um pouco. Amanhã a tempestade já não lhe parecerá tão grave.

            Elizabeth preparou o quarto de hospedes. Foi em vão. Para a preocupação de Peter ficou um pouco mais séria quando Neal avisou que iria embora, não para casa e sim para um hotel. Ele queria pensar.

            - Vou pensar e decidir a minha vida. Como está, com Rachel arriscando-se por John não podemos ficar.

            Pela primeira vez Peter realmente pensou que ele passava por uma crise. Neal Caffrey não sabia como resolver seu problema conjugal e estava prestes a cometer um grande erro.
           

            Quando o dia clareou Rachel ainda estava em choque pela reação de Neal a tudo o que acontecia. Ele tinha lhe deixado sozinha, sem nada lhe obrigar a isso, pela primeira vez desde que decidiram ficar juntos. Não ligou para avisar que dormiria fora. Nem para conferir se George e Helen estavam bem. Isso magoou, mas ela engoliu aquele amargo sentimento. Se Neal queria assim, faria sua vontade e lhe daria todo o espaço do qual necessitava.

            - Só não espere que eu fique parada esperando você. – Resolveu olhando-se no espelho e finalizando a maquiagem que escondia as provas da noite mal dormida.



            Logo cedo Rachel apertava a campainha da embaixada inglesa em NY. Seu objetivo era conversar com Melissa. Antes, porém, cumpriu outra obrigação. Agradecer Nohan. Apesar de tudo, ele a tinha ajudado quando precisou e, mesmo envolto nas mentiras de David Williams, lhe saltou a vida e lhe possibilitou sair da cadeia logo após o nascimento de Helen. Nohan merecia um agradecimento.

            - É bom vê-la, Rachel. Não lhe procurei porque entendi que você tinha suas razões para estar chateada comigo. E também porque Neal não gostaria. Fico feliz em encontrá-la.
            - Vamos deixar Neal fora dessa conversa, Nohan.
            - Vou ignorar esse seu tom amargo para falar de seu marido porque já vi muito de perto do que você é capaz por ele.



            - É...melhor ignorar mesmo. Mas me diga uma coisa Nohan. Quando você me cobiçou, me cortejou, era tudo mentira? Até hoje me pergunto por que jogou seu charme para cima de mim, mas jamais me propôs algo concreto. Foi apenas uma cortina de fumaça?
            - Rachel, Rachel...coloque-se no meu lugar. Um grande homem, meu mentor e conselheiro, me coloca na missão de protegê-la. E eu me deparo com a mulher mais linda que já vi na vida. E, além de linda ela é brilhante, corajosa e surpreendente. Não era uma tarefa fácil.
            - Você não respondeu.
            - Verdade...digamos Rachel que se eu nunca te propus nada foi por saber que jamais largaria de Neal Caffrey. Ele é o seu parceiro. E eu não gosto de jogar para perder. Só tentaria algo se acha-se que você me daria uma chance.
            - É...bom...eu vim ver Melissa. Posso...
            - Claro, ela está na sala dela. Venha nos visitar quando quiser e saiba que continuo à sua disposição sempre, Rachel.

            O clima no mesmo ambiente que aquele homem continuava pesado. Era estranho, parecia, parecia que o ar era diferente. Talvez porque ele não fugisse do seu olhar, respondia na mesma medida, no mesmo desafio.
            Deixando isso de lado, foi até a irmã, por mais que ainda não estivesse pronta para chamá-la assim. Quando bateu na porta levemente e entrou sentia o coração galopar. Podia sentir raiva do pai, podia ter uma relação distante com a mãe, mas não conseguia sentir raiva por Melissa. Ela já tinha lhe salvado a vida, namorava seu melhor amigo e olhando-a se via também. Melissa era um pedaço dela. Uma parte que desconhecia, mas sempre sentiu a falta. E agora elas estavam ainda mais parecidas.

            - Você não está mais morena! Está ruiva...fica bem assim. – Disse de forma quase  espantada.
            - Agora não tenho mais que esconder nossa semelhança. Entre Rachel. E sente-se. É bom tê-la aqui.
            - É, eu também acho.
            - O Henry ontem me pediu para te ligar, mas eu achei que deveria esperar o seu tempo.
            - Você tem sorte de ter encontrado Henry. Ele é o homem mais especial que já vi.



            - Sim, ele é. Mas não acho que você tenha vindo aqui para conversar sobre Henry.
            - Tem razão, vim porque quero te conhecer melhor. Quero ouvir sobre Chiara. E também saber como você pode ser uma advogada e ainda assim atirar tão bem quanto eu.
            - Bom...será uma longa conversa. Vou lhe servir um café primeiro.

            A conversa foi longa, mas fluída apenas como dois irmãos conseguiam. As vocês se conheciam, se aceitavam e se ouviam  calmamente. Melissa contou da infância em Londres, do cuidado estremo de Brígida e David com sua segurança, dos guarda costas que nunca a perdiam de vista e das aulas de defesa pessoal. Ali começou o seu interesse por armas e lutas.

            - Muito jovem, assim como eu. – Rachel comentou.
            - Sim, mas ao contrário do que houve com você, papai nunca gostou ou estimulou. Ele preferia que eu seguisse uma profissão mais administrativa enquanto mamãe queria que eu fosse bailarina. Aliás, ela foi ao delírio ao ver um vídeo seu dançando.
            - Então você se tornou advogada para agradar David? – Rachel fugiu do assunto.
            - Sim, em parte. Sempre gostei de leis. Mas...elas me levaram a conhecer o crime. E eu percebi que desejava mais. Então passei a atuar no serviço de inteligência Britânica. Por pouco nós não atuamos juntas na MI5.
            - E por menos ainda você não esteve na equipe que me procurou.
            - Também é verdade, Rachel. Mas então eu me afastei e assumi na embaixada com tarefas que iam além das jurídicas. Sempre foi muito cômodo ter alguém tão capacitado junto do embaixador. Ele não precisa de guarda costas.

            A conversa continuou para temas mais pessoais e Melissa contou sobre Carl, o pai de Chiara. Um homem que saiu de sua vida tão rápido quanto entrou. Haviam se conhecido durante um processo jurídico. À época Melissa ainda tinha atuação a agência, mas já se afastava do serviço mais pesado e perigoso, principalmente por insistência da família. Carl era um agente dos mais eficientes e duros em serviço. Ela se encantou por sua força e logo estavam juntos. Quando veio Chiara nenhum deles estava preparado e ele mostrou que não tinha tanta força sem orgulho assim.

            - Disse que não estava pronto e que iria para uma missão do outro lado do país. Eu sabia que ele estava fugindo.
            - E você permitiu?
            - O que eu poderia fazer? Forçá-lo? Não. Disse-lhe que fosse em paz, porque não nos faria falta.
            - E ele? – A história de Mel fez o orgulho de Rachel por Neal crescesse um pouco.
            - Ele foi. E nunca voltou. Morreu durante a missão. Talvez tivesse se aproximado da filha caso tivéssemos mais tempo. Não foi possível. Eu deixei definitivamente a agência e fiquei na atividade diplomática, sobretudo por pensar em Chiara. Ela já não tinha o pai ao nascer, precisava e ainda precisa muito de mim.
            - Eu sinto muito.
            - Agora sou eu que lhe digo, Rachel. Você tem sorte de ter um homem como Neal ao seu lado. Ele pode não ser perfeito, mas  ele é um grande homem e ama sua família.
            - Sim, eu sei. Mas nem tudo é bonito no meu casamento. Eu...eu...não sou exatamente como Neal gostaria. Minha impulsividade o incomoda.
            - Ninguém perfeito. Tenho certeza que Neal sabe disso. E ele te ama tanto que é impensável imaginá-los separados.

            Só que não foi necessário imaginar. Rachel e Neal estavam separados. Desde a noite anterior seus pensamentos seguiam rumos diferentes. Agora também seria assim fisicamente. Neal pensou muito durante aquela noite. E tomou uma atitude difícil. A única possível para conseguir acabar com aquele problema. Iria deixar a casa onde vivia com a esposa. Não tinha plano, ao menos por enquanto, de oficializar o divórcio, mas não mais viveria junto dela. Rachel podia não reconhecer agora sua atitude dolorosa, mesmo assim ele seguiu com o plano.
            Seu objetivo era conversar com ela calmamente. Dizer que não conseguia conviver com toda aquela incerteza e que, pelas crianças, deveriam se separar ao menos por um tempo. Tudo saiu errado. Rachel não apareceu no FBI a manhã toda, por tanto ela, que deveria ser a primeira a saber, acabou sendo a última. E todos os outros se colocaram contra ele. Até mesmo Mozz.

            - Não! Ela...é a sua...Diaba Ruiva, são perfeitos, no casamento e no crime...e as crianças...não! – Disse o amigo, pra lá de surpreso.
            - Chega, Mozz. Não está em discussão.

            Peter, que sempre implicou com Rachel e que muito torceu por um divórcio entre eles também não aceitou bem a notícia.

            - O que? Mas...Neal...você está drogado?
            - Não! É...melhor assim. Não consigo mais. Ela é imprevisível demais.
            - E foi isso que te atraiu. Neal...ela é a parceira que você sempre desejou e se rendeu logo ao encontrá-la.
            - E agora vi que não devo me render dessa forma. E chega desse assunto. É pessoal, é a minha vida.

            Aquilo estava muito estranho. Peter não conseguiu juntar os fios, mas havia algo pronto a surgir. Neal sempre foi muito bom em mentir, fazia isso usando sempre a mesma técnica. Ele mentia usando fatos reais, misturava verdades e invenções para criar um delírio do seu interesse. Logo que teve uma oportunidade Peter chamou Diana e lhe pediu para ficar de olho em Neal.



            - Como assim se separar? O Neal? – Diana também achou muito estranho.
            - Exatamente. Não é isso...tem algo errado. Observe, tente descobrir o que Neal está aprontando. Eu aposto que é algo sério e tão grave que nem mesmo Rachel foi convidada a participar.

            Peter e Diana poderiam até acreditar que havia uma razão escusa para aquela atitude, mas, para Rachel, ela era clara. Chamava-se falta de amor. Se Neal era capaz de abandoná-la daquela forma ele não a amava tanto quando um dia pensaram. Talvez devesse manter a elegância e fingir que não fazia diferença. Talvez fosse melhor apenas sorrir e lhe desejar felicidade ao lado de outro alguém. Nenhum daqueles ‘talvez’ combinava com ela. Se a razão oferecida por Neal era sua personalidade difícil, ele estava prestes a confirmar o quão impetuosa podia ser.



            - Então é isso? Você quer o divórcio?
            - Eu estou saindo de casa, Rachel. Não quero mais continuar com você, não consigo mais conviver com você.
            - Engraçado, até dois dias atrás, na cama, você estava bem satisfeito.
            - Não é de sexo que eu estou falando...é de algo muito maior. Vou em casa pegar minhas coisas.
            - Vá! Mas vá agora e leve tudo. Porque se eu chegar em casa e encontrar algo seu, sou capaz de destruir tudo. – Ela estava sangrando por dentro.
            - Faria isso? Por pura vingança infantil?
            - O que? Retalhar as suas gravatas italianas? Por fogo nos sapatos? Pode apostar que sim. Mesmo sabendo que isso não reduziria a raiva que eu estou sentindo.
            - Não fique assim...um dia você...
            - Saia da minha frente Neal Caffrey! Eu te odeio mais que tudo no mundo!

            Neal e Rachel seguiram na difícil tarefa de trabalhar juntos, mesmo estando separados. Para desespero de Peter, isso não era tão simples. Rachel lhe pediu autorização para mudar de casa, ir para um hotel ou algo similar. O FBI precisava autorizar já que ela ainda usava uma tornozeleira de rastreamento.

            - Eu vou pensar nisso, Rachel. Não estamos falando só de você mas, também de duas crianças. – O chefe respondeu.
           
            Se os passos de Rachel continuavam monitorados pelo FBI. E Neal também, apesar dele ter algumas regalias por não responder mais por nenhum crime grave. Desde que voltou da França com Rachel e se entregou ao FBI já prevendo um acordo, sua situação com a justiça é tranquila. Ele poderia seguir os caminhos que desejasse, sabendo que muito raramente alguém se preocupava em revisar seus registros. Isso o fazia até esquecer que era monitorado. E também enganava quem, por ventura, resolvesse seguir seus passos.
            John Turner contava ao observar Neal caminhar pela noite sem que o FBI pudesse saber onde estavam. Cada passo de Neal era um passo de John. Neal não sabia que ele aparecia ali naquele momento, mas o esperava. Aquele encontro estava marcado há tempo demais.



            - Vai parar de me seguir e dizer logo a que veio, John? – Gritou quando teve certeza que apenas ele ouvia.

            - Neal...é bom vê-lo. Já não era sem tempo.