terça-feira, 26 de abril de 2016

Ariella - Capítulo 8

Olívia convidou Ariella a entrar em um quarto. Convite esse que Ariella aceitou por não ter alternativa. Era um ambiente tipicamente masculino, claro e muito arejado. No ar era possível sentir o perfume de Diego. Ele deseja desconhecer aquele cheiro, mas esse estava gravado em sua memória. Sim, ele tinha a petulância de esperar que dividissem o mesmo quarto, a mesma cama.

- Então você o viu crescer? Deve tê-lo assistido se transformar em um monstro. – Ariella disse para Olívia, que apenas a observava com certo pesar no olhar. Aquela pena irritou a argentina ainda mais. – Não me olhe assim. Não pense que sou um cão acuado. Diego vai pagar caro pelo que está fazendo.

Algo na expressão, ao mesmo tempo dura e delicada, da esposa de Diego, fez Olívia acreditar naquela ameaça. Ela é sim delicada, com um aspecto frágil, mas parecia uma guerreira de cabelos de fogo. Podia até estar enganada, mas, sua intuição dizia que Ariella não se encaixava no papel de vítima e Diego não teria águas tranquilas para navegar por sua vingança.
Apesar de não ter passado mais do que alguns minutos junto da jovem, Olívia a compreendeu muito bem. Ariella estava pronta a iniciar uma tempestade. Já tinha relevado demais de seu marido, mentiroso e manipulador. Pessoalmente, pensava que não tinha nada a perder. A gota final de desespero foi quando Diego lhe apresentou o contrato que ela, ingenuamente, havia assinado na cerimônia de casamento civil. Ela estava ligada a Diego até que lhe oferecesse um filho. Depois disto poderia ir embora, mas não poderia levar a criança.

- Você é um demente. Um psicopata. – Afirmou encarando-o nos olhos, assim que ele entrou no quarto.
- Longe disso, querida. Sou um obstinado. Luto pelo que desejo. Apenas isso.
- E me deseja tanto assim?
- Não seja prepotente, Ariella. Não desejo você. Desejo a justiça, ou a vingança, caso prefira chamar assim.  Coisas que só você pode me dar. Apenas isso. – A frieza dele calou fundo dentro de Ariella.

As coisas não estavam acontecendo como imaginava, pensou Diego. Teria que tomar muito cuidado com o que sua esposa faria. Ariella estava se mostrando muito esperta e o fato de estar tão calada não demonstrava aceitação, mas sim que já estava pensando em como ludibriá-lo para escapar da armadilha. Ariella era menos ingênua do que imaginava e muito mais corajosa. Seus planos, organizados passo a passo com muito cuidado, foram modificados assim que Ariella pôs os pés naquele lar. Não fariam os Bueno serem humilhados novamente.
Com segurança, ele lhe afirmou que não haveria chance de fuga. Com o tempo ela se habituaria à vida de casada e poderia lhe dar algumas liberdades, mas, por agora, todos os seus passos seriam vigiados. Porém, tinha pouca esperança de que ela aceitaria aquilo fácil. Ariella parecia indócil demais para isso.
Enquanto isso, ao menos uma parte do plano foi cumprida à perfeição e lhe trouxe um gigantesco prazer. Afonso havia se mostrado desesperado por não saber onde a filha estava e quando soube do casamento e de quem se tratava o noivo, ficou tenso. Diego até mesmo imaginou que ele iria se oferecer para devolver o dinheiro, mas, ao que parecia, seu amor pela filha não era tão grande quanto ao apego pelo dinheiro.



- É Ariella quem irá fazer com que você pague pelo que fez! – Avisou numa breve ligação telefônica feita assim que Ariella foi instalada em seu quarto.
-Não! – Todo seu desespero não havia ajudado em nada. Teve de aceitar que sua jovem filha ficaria na Espanha, com o marido, por muito tempo. E que se desejasse notícias, teria de ser um sócio muito bem disposto na empresa, que agora também lhe pertencia.

Diego não podia negar que as reações de Ariella o estavam deixando louco. Ele a encontrou novamente mais tarde, após deixá-la sozinha por várias horas. Afonso implorou para falar com a filha novamente e ter certeza de que estava viva e bem, então Diego concordou em colocá-los em contato mais uma vez. Esperava que enfim ela extravasasse a raiva, o ódio ou o medo. Acreditou que após aquele falso show de coragem, ela enfim mostraria alguma fraqueza. E surpreendeu-se, mais uma vez. Ao invés de chorar e pedir socorro como qualquer outra jovem faria, Ariella mostrou já ter armado seu escudo. Ela havia muito cedo percebido que sua intenção era deixar Afonso preocupado e durante todo o telefonema foi uma mulher controlada. Até mesmo aparentou gostar de estar na Espanha.




- Fique tranquilo, papai. – Teve a ousadia de afirmar.
- Como tranquilo? Não sei como você está sendo tratada!
- Muito bem, papai. Diego é um príncipe ao falar comigo. E independente das divergências entre vocês, eu o amo e ele me ama. Por isso, não faça nada apenas para me salvar de meu marido. Eu fico aqui quanto tempo for necessário.

Logo após desligar ela começou uma discussão e terminou mandando-o sair da suíte. Deixou-o envergonhado mais uma vez. No primeiro dia de casada, sua mulher, que deveria estar assustada, acuada por tudo o que lhe fez, mostrava coragem e petulância o bastante para desafiá-lo. O que seus empregados iam pensar?

- Chega de fiascos! Basta! Não quero mais ouvir nenhum grito. Já chega desse seu showzinho ao telefone. – Diego afirmou segurando-a pelo braço.
- Ou o que? Vai me bater. Bata! É só o que falta mesmo. Mas mesmo que o faça, saiba que eu não cairei em sua armadilha. Não vou ajudá-lo a chantagear meu pai. Você foi atrás da vítima errada, Diego Bueno!

Ele deveria tê-la agarrado ali mesmo e a feito engolir as palavras, rendendo-se ao casamento. Mas não o fez. E agora estava sentado, à beira da piscina, com uma garrafa de whisky ao lado, e com uma esposa revoltada deitada em sua cama.
O tempo passou e a garrafa, dose por dose, foi se esvaziando. A cada gole surgia uma nova lembrança e, aos poucos, elas foram se embaralhando. Lembrava da infância solitária e também dos momentos junto de Ariella. Recordava-se da tristeza do pai e logo depois o sorriso da esposa preenchia aquele vazio. Sentia raiva, depois vinha o afeto. E ele ficava cada minuto mais afogado no álcool e nos sentimentos embaralhados.



Quando voltou para o quarto estava inseguro quanto à maneira de enfrentar aquela situação. Pensava que iria encontrar uma esposa adormecida. Ariella o havia observado da janela do quarto e por mais revoltada que se sentisse, não conseguiu expulsar de seu coração a pena que sentia dele. Não poderia de maneira alguma dizer em voz alta, mas sabia amar aquele homem e acreditar em seu casamento. E, lá no fundo, pensava na triste infância que Diego deve ter tido quando a mãe acabou com o casamento ao trair seu pai com Afonso.
Claro que isso não lhe dava o direito de sair por aí sequestrando pessoas. Porém, era algo capaz de bagunçar a cabeça de qualquer um. E o pai de Diego não parecia ter sido do tipo que supera a dor em nome da prole. Não apenas seguiu sofrendo, como deixou sua dor alcançar e marcar Diego terrivelmente.
Quando ele chegou ao quarto, Ariella fingiu estar adormecida e ficou ouvindo o som vindo do chuveiro até que ele saiu e a viu desperta. Ariella tinha os cabelos despenteados e profundas marcas de cansaço nos olhos. Era reflexo da viagem e da exaustão emocional em que se encontrava.

-Esperando seu marido para mais uma parte da lua de mel? Quer ir direto para o sexo ou prefere champanhe e uma sessão de massagem? – O álcool o deixava mais amargo e debochado.
-Você está tão bêbado que não conseguiria me massagear!
-Mas você poderia! - Ele foi se aproximando da cama aos poucos e sabia não estar tão bêbado ao ponto de não conseguir satisfazer sua mulher. – Mas podemos deixar isto para outro dia e ir direto ao sexo.
-Não o quero! – Mentirosa, pensava. – Não depois de tudo que disse hoje.
-Quero seu corpo e você também quer. Deseja extravasar o ódio que sente de mim. E sexo é a melhor maneira. Não ouse negar, eu posso ver nos seus olhos. – Ele já passava as mãos por suas curvas. – Além disso, tenho que colaborar para que você esteja grávida logo. – Diego disse e arrependeu-se quando a sentiu enrijecer.
-Está delirando se pensa que vou gerar uma criança e deixá-la para trás com alguém feito você para lhe criar.

Talvez fosse o álcool em excesso, mas Diego a achou ainda mais bela assim, defendendo seus direitos por uma criança que nem mesmo fora gerada. Por um, apenas um, instante, comparou-a com Silvana. A mãe que deixou-o para trás seguindo as ordens de Ramón e foi correr atrás de Afonso sem pensar duas vezes. Se não tivesse encontrado com a morte no meio do percurso, poderiam ter passado anos juntos e felizes, enquanto ele sofria sozinho. Nesse caso, Afonso talvez nunca conhecesse Martina e Ariella nunca teria nascido. O destino, no entanto, fez outras escolhas e cumpriu outros caminhos e ali estavam ele e Ariella, loucos para satisfazer um ao outro, mesmo quando não havia chance deles serem nada mais do que inimigos.

- Não disse em nenhum momento que precisa ir embora, somente lhe ofereci esta opção. – Enquanto falava coisas tão duras, suas mãos eram carinhosas e Ariella percebeu que já estava com a camisola enrolada em um tira envolta a sua cintura. – Mas chega de conversa.

Ariella não queria responder. Desejava poder gritar e se rebelar contra ao que ele estava fazendo, mas as lembranças de tantas noites felizes em seus braços estavam vívidas em sua mente. Quando ele tocou seus lábios, de alguma forma, houve mais carinho que rancor.

- Não minta pra você mesma, Ariella. Você quer. É inegável.
- Eu quero...mas eu vou deixar de te amar. – A frase foi dita quase como uma promessa.

A noite foi longa e prazerosa, cheia de descobertas entre o casal. Era como se eles realmente fossem um casal entre aqueles lençóis, desde que esquecessem todo o resto. E eles conseguiram isso. Não pensaram, apenas tocaram. Ariella adormeceu nos braços do marido, que também logo entregou-se ao sono. Quem não os conhecesse poderia jurar que eram um casal. Um completo engano.
Quando o amanhã chegou, todas as desconfianças vieram junto com o sol. Ariella abriu os olhos já sozinha no leito. Foi surpreendida com uma batida na porta e a entrada de Olívia, carregando uma enorme bandeja de café da manhã. Ela ficou vermelha enquanto escondia o corpo com o lençol.

- Eu trouxe seu café da manhã, Srª Ariella. – Disse a empregada, um tanto constrangida.
- Só Ariella, por favor. Onde está meu marido, Olívia?
- Trabalhando. Saiu logo cedo e pediu que lhe trouxesse o café e avisasse que não vem almoçar. Disse também que a senhora não tem autorização para deixar a casa, nem fazer ligações fora da sua presença. – A cada absurdo dito, mais constrangida Olivia se tornava. – Se eu puder fazer algo para...
- Para tornar meu cativeiro menos sofrido? Eu avisarei caso me lembre de algo. Não se preocupe.

Depois de despachar a mulher com um tímido agradecimento, Ariella provou de todas aquelas delícias e se vestiu para sair. O fato de estar proibida pouco lhe interessava. E, no mínimo, alguns contratempos geraria ao marido. Diego estava muito enganado se pensava que ela permaneceria ali, quieta e discreta enquanto ele retomava a vida de executivo. No mínimo todos na Espanha saberiam que ele escondia uma mulher em cárcere privado.
Ao voltar para a sala de estar da bela casa que administrava, Olívia estava pálida e assustada. Ao ver a esposa, Ítalo pensou que ela passava mal. Mas não. Olívia estava apenas em choque por tudo o que acontecia naquele lar. Estranhamente, ela que sempre julgou conhecer o jovem patrão quase como uma mãe reconhece o filho, percebia agora que ele fazia coisas perigosas e beirava a crueldade.
Se fosse justa com o que acreditava, deixaria aquela casa e ajudaria Ariella a escapar daquele cativeiro. Acima disso, no entanto, estava sua lealdade para com os Bueno. Principalmente Silvana. Ela lhe pediu para cuidar de Diego minutos antes de entrar naquele carro. Morreu. E as atitudes de Diego eram prova de em algum momento errou com aquele menino. Não conseguiu suprir sua carência de ou. Ou ele não teria se tornado esse homem amargo e vingativo. E agora, por mais que ele estivesse errado, não podia abandoná-lo.

- Temos que ajudá-lo a melhorar, a superar isso. – Olívia afirmou. – Ou ele vai se destruir, Ítalo. Sei que vai. E não vou aguentar.
- Nós não podemos fazer mais nada, Olívia. Lhe demos afeto e atenção durante todos esses anos. E ele nunca conseguiu tirar esse rancor de dentro do coração.
- Como? Se Ramón nutriu esse sentimento dia após dia? Diego não é mau, sei que não. É apenas um menino perdido no mundo.
- A decisão agora é dele, meu amor. Se ele seguir por esse caminho, nada poderemos fazer. – Ítalo abraçou a esposa e mudou de assunto. – Murilo está? Quero vê-lo. Senti sua falta por todos esses dias.
- Está tomando café. Tem uma reunião com Diego logo cedo na administração dos hotéis. Diego está dando mais responsabilidade ao nosso menino. Ele, apesar de tudo, tem um lado muito bom.

- Vou vê-lo antes que saia. Sossegue seu coração. Tudo irá se acertar. – Ítalo disse à esposa quando bem lá no fundo também não acreditava.

domingo, 24 de abril de 2016

Alguém Para Perdoar - Capítulo 4

       - Boa tarde, enfermeira. Sou Emily Fruett Vicentin. Fique sabendo que uma amiga veio aqui porque atropelou uma criança. Preciso vê-las. – Com classe e uma pitada de altivez na voz, Emily sabia impor seu desejo. Ela fazia um pedido, mas soava como ordem.
           
            Não que fosse algo planejado pela chefe de cozinha. Era apenas uma característica natural, cultivada ainda muito jovem quando, saída de um abrigo, foi morar no exterior e precisou impor-se para ser respeitada. Esse jeito delicado e mandão ao mesmo tempo, também era característico da amiga que agora procurava. Mas no caso de Melissa, a qualidade vinha de berço. Nascida em família abastada, Mel construiu a própria fortuna brilhando em passarelas internacionais. Depois, abandonou a carreira para casar-se com um renomado engenheiro civil. Rafael era sócio de Jonas na JRJ Construtora e completamente apaixonado com por Mel, com quem se casou há quase 15 anos.



            - Emily! Estou aqui! Ainda bem que você chegou! – Melissa gritou no corredor.
            - Claro que eu vim! Você está bem? Conseguiu falar com Marta? – Até onde Emily sabia, a criança atropelada era uma das muitas acolhidas por sua mãe de criação no mesmo abrigo onde ela cresceu.
            - Sim. Ela está vindo. Eu não me feri gravemente e nem a menina, mas o susto foi grande.
            - Dos males o menor então. Agora me conte como uma criança estava sozinha fora do Lar de Amparo.

            Era uma longa história. Que Melissa e Emily só entenderam completamente com a chegada de Marta. A senhora que, mesmo com a idade avançada, não conseguia abandonar o cansativo trabalho de administrar um abrigo para menores em situação de vulnerabilidade social, explicou tudo com a ajuda de uma xícara de chá. A criança atropelada chama-se Isabely, tem 12 anos e uma longa trajetória de abusos físicos e psicológicos. O atropelamento aconteceu durante uma fuga da menina da casa da família que a tinha acolhido. Uma de muitas.

            - E agora, após essa nova fuga, a família informou a assistente social que não mais deseja ficar com ela. – Triste, Marta contou. – Isabely voltará ao abrigo comigo. Eu sofro porque sei que essa menina é uma criança boa, apenas não consegue conviver com um pai e uma mãe.
            - E a família natural de Isabely? – Emily perguntou.
            - Ela foi retirada deles pela primeira vez aos cinco anos, quando confirmou-se uma denúncia de abuso sexual por parte do companheiro da mãe. – A senhora disse e ambas as mulheres se arrepiaram. – Depois ela retornou à mãe, mas tornou a vir ao abrigo quando ela se entregou às drogas. Deixava a filha sozinha em casa e ia às bocas de fumo. Ela perdeu os direitos sobre a filha e não há outros parentes. A menina foi indicada para adoção. Mas na sua idade é raro alguém se interessar.
            - E ela também não quer. – Emily disse. – É provável que ela fique no abrigo até completar 18 anos. Como eu.



            - Sim. – Marta confirmou. – Mas é diferente. Você foi deixada lá ainda bebê, não teve pai, porém, também não foi traumatizada por maus tratos. E ela está numa fase complicada...está no momento em que toda a menina precisa de uma mãe para aconselhá-la e ouvi-la. Ela não tem ninguém.
            - Ela não quer, mãe. E eu sei que você pode ser a melhor mãe do mundo.
            - Já estou muito velha. – Marta respondeu à filha de criação.
            - E porque você acha que ela foge do lar adotivo se no abrigo não faz isso? – Melissa, vinda de uma família tradicional, sentiu-se muito tocada com a história de Isabely.
            - Quem já foi muito machucado na vida, costuma ter dificuldade em amar. Ela teve um pai que a abandonou, outro que a usou da pior forma e uma mãe que escolheu as drogas a cuidar dela. Que motivo ela tem para confiar em um casal?

            As três esperaram por Isabely na saída da emergência. Viram surgir uma menina muito magra, naquela fase em que as garotas espicham e têm o corpo um tanto desproporcional. Ela não era mais uma criança, muito devido a tudo que já passou na vida. Também estava longe de se tornar uma mulher.



            - Oi Marta. Eu vou com você? – Havia um pouco de esperança naquela pergunta.
            - Sim, vai. O senhor e a senhora Vieira se disseram tristes pela sua última fuga. Resolveram que se você não os quer como pais, aceitarão e não mais tentarão convencê-la a morar com eles.
            - Que bom. Não queria mesmo ser filha deles. Não preciso de pai e mãe. Tenho você.
            - Como está seu braço? – Marta preferiu ignorar.
            - Não foi nada, só torci o cotovelo. Nem doeu muito.
            - Que bom. Agora cumprimento Emily e agradeça Melissa. Foi ela quem lhe prestou socorro quando você causou esse acidente. E nunca mais saia correndo numa avenida movimentada. Na próxima, pode encontrar alguém menos gentil que ela.
            - É, eu sei...mas tinha que fugir deles. E foi bom que assim aqueles idiotas desistiram de me adotar.
            - Isabely! – Marta repreendeu.
            - Tá bem, tá bem! Oi Emily, legal te ver. E valeu pela ajuda aí moça...desculpa se amassei seu carro.    

            Cada uma foi para o seu lar. Marta cuidar de Isabely, Emily organizar seu jantar com amigos e Melissa seguir com sua vida perfeita ao lado da família dos sonhos. Naquela noite, porém, seu pensamento estava longe. Tanto que até mesmo Tales, de apenas 14 anos, percebeu que a mãe não estava atenta e concentrada como sempre. Ela nem reclamou quando ele devolveu o prato sem comer a salada. E ao contrário de todas as outras noites, ela comeu uma farta porção de sobremesa. Quando Tales se recolheu ao quarto, Rafael perguntou à esposa o que a estava perturbando tanto.




            - Eu atropelei uma criança hoje, uma menina de 12 anos.
            - O que? Como? Porque não contou antes? Foi grave?

            Quase arrependida de ter falado algo, Melissa contou tudo ao marido, incluindo a estranha coincidência que inclui Emily e sua mãe de criação no caso. E também a história da menina. Ela viu choque nos olhos do marido ao revelar o que aquela menina já havia sofrido na vida. E também percebeu compreensão ao lhe dizer que ela era um tanto agressiva e não gostava de conhecer pessoas.

            - É natural. Ela sofreu muito. É uma criança traumatizada.
            - Sim...e eu fiquei tocada por Isabely. Quero fazer alguma coisa por ela.

            Quando a esposa falou, Rafael pressupôs que ‘alguma coisa’ fosse lhe comprar alguns presentes, oferecer um passeio ocasional ou, quem sabe, patrocinar um tratamento psicológico junto de um profissional renomado da área. Nada disso chegava perto do que passava pela cabeça de Melissa.
            Há cinco anos, quando Emily e Jonas ainda eram noivos, uma criança recém nascida fora jogada por sobre o muro de uma das obras realizadas pela JRJ Construtora. Ela e Rafael cogitaram adotar aquela menina e criá-la como sua, junto de Tales, com todo o amor que merecia. O plano só não foi colocado em prática porque Emily criou laços instantâneos com a menina e convenceu Jonas a adotá-la. Vida, como foi batizada, tornou-se uma Vicentin e eles nunca mais falaram em ter mais filhos, seja naturalmente ou por adoção. Agora, aquela ideia voltava a tomar sua mente e coração. E de uma forma fulminante, daquelas que surgem da alma, sem deixar margem à dúvida.
            Melissa preferiu deixar de lado a conversa por alguns minutos. Não por desistência nem por medo. Era apenas estratégia. Ela colocou o filho na cama, banhou-se e esperou na cama até que Rafael veio para junto dela. Então deu início aquela conversa tão especial.

            - O que você acha da ideia de nos tornarmos uma família acolhedora? De adotarmos...uma criança? – Dessa vez ela não foi direta, como sempre agiu com o marido. Preferiu preparar o terreno. Não adiantou muito.
            - Acho ótimo. – Rafael respondeu. Ele entendia exatamente o que acontecia. – Mas temos de tomar cuidado. Com Vida, Emily e Jonas tiveram sucesso, mas nem sempre é assim. Eu sei o que você está pensando e...por favor Mel...conheço você! Está sufocada pela história de abandono da menina e...
            - Porque não podemos ser uma família acolhedora para Isabely? Ela só precisa de amor...do amor de uma família...e...
            - Ela é uma criança problema, Melissa. Se você quiser um bebê, ou uma criança pequena, ok. Mas não uma pré-adolescente que dará muito trabalho e fugirá de casa a cada semana tentando nos fazer desistir dela. Essa menina não quer um lar! E já levando em conta os problemas familiares dela, é compreensível. Ajude-a lá onde ela está. É o melhor.
            - Não! – Melissa enfrentou Rafael. – É o mais cômodo para nós!

            Mel conhecia muito bem o marido. Aquela reação não representava sua maneira de agir normalmente. Ele podia sentir medo, podia estar desconfiado. Mas jamais Rafael ficaria insensível diante de uma injustiça social como aquela. Isabely merecia uma família e cabia a ela mostrar ao marido que eles poderiam ser aquela família.

            - Ela não é um problema. É uma criança, como Tales. Só que não teve a chance de conviver com um pai descente e amoroso como você sempre foi para o nosso filho. Se ela tivesse amor, não agiria assim. Ela foge porque ainda não encontrou pais em quem possa confiar. Só isso.
            - Mel...
            - Não precisa responder agora. Só pense na ideia, por favor.
            - Está bem. Eu vou pensar. Agora vamos dormir. – Mas então ele viu a esposa pegar o celular do móvel ao lado da cama. – O que está fazendo?
            - Mandando um e-mail rápido para minha advogada. Quero que ela me informe como ocorre o trâmite de adoção.
            - Melissa! Você acabou de dizer que eu poderia pensar...e agora já decidiu que vai falar com a advogada? – Dessa vez Rafael se irritou.
            - Você pode gastar o tempo que quiser pensando, meu amor. – Com um sorriso, Mel acalmou o marido. – Eu durmo ao seu lado há 15 anos. Te conheço tanto que sei muito bem qual será a decisão final. Você não é do tipo que escolhe o mais fácil. Já estou vendo sua resposta...e é por isso que eu te amo.

            O estranho acidente daquela tarde também foi assunto no jantar na casa de Emily e Jonas. Ali estavam muitas crianças e os adultos presentes sentiram-se tocados pela história de Isabely. Ainda assim, não condenavam os pais que, agora, desistiam dela. Lidar com uma adolescente rebelde e revoltada não era tarefa fácil. Emily, Jonas, Jéssica, Lorenzo e Milena estavam sentados na sala de estar da casa enquanto os filhos, Vida, Bernardo, Clara, os gêmeos Vicente e Cecília, e Maria Fernanda, brincavam tranquilamente.
            Nathan chegou atrasado. Vestido informalmente, ele preparou-se para um encontro entre amigos. Mas estava se sentindo como se fosse ser julgado por eles. Estava nervoso com aquele encontro. Ao mesmo tempo em que estava ansioso por rever Maria e sua mãe, também tinha receio da conversa que precisa ter com Milena. Temia a confirmação de que Maria Fernanda era sua porque isso representava muita responsabilidade. Porém, estranhamente, reconhecia que se, por acaso, outro homem fosse o pai daquela garotinha, ficaria com um amargo gosto de decepção na boca.



            Tinha as mãos tremendo ao tocar a campainha. E isso não melhorou quando Jonas abriu a porta. Ao fundo pode ver Lorenzo abraçado à sua esposa, enquanto Emily servia algumas taças. Impossível não pensar que ali era um mar de casais perfeitos enquanto ele destoava. Ele e Milena eram os peixes fora d’água. Poderia ter sido diferente, pensou. Se há alguns anos tivesse tomado a decisão de abandonar Valentina para assumir Milena, hoje eles poderiam ser três casais perfeitos, com crianças à sua volto e sorrisos infinitos.
            Essa não era a realidade. Talvez ele fosse o pai de Maria, mas seria o pai ausente a quem Jonas e Lorenzo iriam odiar por não ter tido honra o bastante para assumir a própria filha. Como ele poderia afirmar a Jonas e Lorenzo que a irmã deles lhe escondeu a paternidade por vingança ao ser enganada e abandonada? Não podia. Seria magoá-la mais uma vez. No fundo tudo o que ele sentia ao olhar Jonas e Lorenzo era uma profunda inveja. Porque eles conseguiram vencer os obstáculos que apareceram no caminho e assumiram suas mulheres.

            - Boa noite, Nathan. Entre. – Jonas lhe estendeu a mão.
            - Boa noite. Obrigada Jonas. Boa noite Lorenzo e...desculpe...
            - Jéssica. – Sorridente, ela mesma respondeu. – Faz bastante tempo que não nos vemos.

            Nathan viu Milena levantando-se do sofá para vir cumprimentá-lo e iria lhe abraçar, queria tocá-la e torcia para que ela agora o trata-se com um pouco menos de frieza. Mas tudo foi interrompido quando Maria Fernanda ergueu-se do chão e correu até ele, abraçando-o enquanto pisava em seus sapatos. Tudo o que ele pode fazer foi sorrir e devolver o carinho tão facilmente oferecido pela menina. Ela lhe tocou o rosto com a palma das mãos, muito suave, quase como uma pluma. E Nathan sentiu que deseja receber aquele afago todos os dias.



            Não demorou para Milena vir tirar Maria Fernanda de seus braços e numa trama rápida de sinais, mãe e filha discutiram. Nathan fez uma anotação mental para pesquisar o significado daqueles sinais, mas Emily não tardou a traduzir.

            - Ela disse à mãe que você é seu amigo. – Ela disse ao amigo e viu-o sorrir como poucas vezes na vida.
            - Ela está certa. Nós já cozinhamos juntos...então posso afirmar que somos amigos. – Mesmo sabendo que Maria não entenderia, Nathan lhe disse o que seu coração desejava expressar. – Você é muito linda, princesa. Molto bella principessa.

            De alguma forma, Nathan e Maria Fernanda se reconheciam e compreendiam. Parecia que conseguiam se comunicar pelo olhar. Ela não falava, ele não conhecia libras. Mesmo assim, a comunicação fluía sem sobressaltos. Aquilo assustou Milena. Não era justo Nathan chegar do nada e conquistar a filha tão facilmente. Talvez de forma vingativa, foi quase instantâneo ela pegar a filha dos braços daquele quase estranho.



            Sorrindo, ela se afastou disfarçando enquanto orientava a filha a não pular sobre os pés de ninguém. Mesmo que esse alguém fosse seu mais novo e querido amigo Nathan. Feliz, a menina não retrucou a mãe. Mas ninguém na sala duvidava de que, até o final daquela noite, ela desejaria a companhia dele novamente.
            O disfarce de Milena funcionou. Mas não passou despercebido por duas pessoas. Emily, por já ter razões o bastante para ficar de olho em Milena e Nathan. E Lorenzo. O irmão mais velho de Milena nunca observou nada de estranho nas reações um tanto mal humoradas que ela por vezes tinha. Sempre achou Milena um tanto ‘bicho do mato’, por isso não estranhou a reação dela. Era com Nathan que ele estava preocupado. Até agora não entendia a vinda daquele homem para o Brasil, no luto por uma relação mal explicada. Mesmo abraçado em Jéssica e mantendo-se afastado dos demais, ele ficou observando o chefe de cozinha. E o olhar dele e de Milena por vezes se cruzava, apenas para ser desviado no segundo seguinte.



            - Algum problema? – Jéssica perguntou.
            - Não. Apenas notei que Nathan e Milena não se dão bem. Olhe como eles se evitam. Ela não é disso...me pergunto se ele foi grosseiro com ela em algum momento.
            - Estranho...mas não deve ser nada. – Jéssica minimizou. – Ela é uma mulher crescida, sabe se cuidar. Lembre-se disso.
            - Eu sei, eu sei. – Lorenzo deixou o assunto de lado e voltou a beijá-la.

            O jantar foi servido e todos comeram tranquilos. A conversa fluiu entre português e italiano. Falaram sobre comida, bebida, artes e viagens. Recentemente, Lorenzo esteve no Chile com Jéssica e sugeriu a Nathan uma viagem pela América Latina, agora que estava mais próximo.

            - Argentina, Uruguai e Chile têm vinícolas fabulosas, além de todos os outros atrativos. As belezas naturais são fantásticas e a gastronomia é capaz de fazer qualquer um se render à gula. – Lorenzo enumerou.

            Jonas tocou no delicado assunto da morte de Valentina. Ele queria entender o que acontecia com Nathan e o que realmente o trouxe para o Brasil tantos anos depois. Todos esperaram que ele fugisse do assunto. Não foi assim. Com muita tranquilidade, Nathan respondeu.

            - Ela estava muito doente há tempo demais. Agora, enfim, poderá ter paz e descansar.
            - Como ficará o seu restaurante na Itália? – Emily quis saber.
            - Tudo irá ficar no comando de um amigo de confiança, enquanto eu me dedico ao restaurante no Brasil. – Para ele soava simples. Pela primeira vez na vida não estava se preocupando tanto com a parte profissional de sua existência. Se perdesse o prestígio, tudo bem. Já o tinha usufruído por muito tempo. Já de felicidade não. E era por isso que agora queria lutar.

            Quando as horas foram passando, uma a uma as crianças foram cedendo ao sono e ganhando o colo dos pais para repousar, antes de serem colocados nas camas. Porém, quando Maria quis colo, Milena estava ocupada oferecendo seus braços a Vicente já que Lorenzo e Jéssica estavam ocupados com os outros filhos. Ela não ligou mesmo. Veio novamente para os braços de seu mais novo amigo.
            Depois que Vicente foi colocado na cama improvisada no quarto de hóspedes de Emily, Milena se ofereceu para pegá-la, mas Nathan garantiu ser desnecessário. Ali ela ficou até estar em sono profundo. Então, foi o próprio Nathan a levá-la ao quarto, seguido de perto por Milena. Maria, como um anjo, encostou a cabeça no travesseiro e seguiu seu sono enquanto Nathan lhe tirou os sapatos. Sabendo que Milena estava às suas costas, ele falou as palavras que Milena esperava não ter de ouvir.

            - Nós precisamos conversar. E você sabe o motivo. – Disse, apenas.
            - Não. Você tem é que nos deixar em paz.

            - Eu deixo. Mas antes você vai responder as minhas perguntas. Porque não me disse que esperava Maria Fernanda? – Perguntar se era o pai já não fazia sentido algum. Estava respondido em seu coração.

Vida Roubada - Capítulo 19

O frio da Rússia não fez a última manhã de Elizabeth naquele país ser menos desagradável. Ela encarou as paredes do hotel no silêncio típico do amanhecer como quem procura uma razão para ter esperança. Lá no fundo sua consciência dizia haver sim uma razão para estar feliz. Acabara de receber confirmações de que sua irmã está viva. Isso já era sem dúvida um alento. Porém, viva e escravizada por alguém capaz de adquirir um ser humano. Alguém cujo nome parecia ser Sebastian.

            - Quando eu colocar as mãos em você, Sebastian, vou colocá-lo numa cela bem trancada. Pode apostar.

            Miguel não acordou com a voz da esposa que, aos sussurros, fazia planos. Ele sentia seu espírito preocupado. Elizabeth parecia não desligar a cabeça das preocupações nem mesmo quando adormecida. Por isso tinha o sono tão leve e interrompido muitas vezes ao longo da noite e também se levantava tão cedo, assim que o sol surgia. Isso o preocupava muito. Ela não oferecia ao corpo o descanso devido.

            - Não estou gostando de competir com esse Sebastian. – Comentou, sorrindo, enquanto a abraçava. – Nem mesmo pelos seus pensamentos.
            - O amor é seu, sempre será. Mas enquanto eu encontrar esse homem e recuperar Bia, esse homem não sairá da minha cabeça. O nome dele é tudo o que eu tenho, Miguel.
            - E a indicação de que é muito rico. O bastante para comprar uma pessoa.
            - Porque diz isso? – Liz estranhou. – Não sabemos o valor da transação.
            - Nem precisa. Garanto que é muito dinheiro, ainda mais se for verdade o que a garota lhe disse: Bia estava envolvida com ele. Ou seja, ele foi ao leilão comprar a ela e não a qualquer garota. Sendo assim, aposto que lhe arrancaram grana alta. E tem mais. Não é qualquer um que tem dinheiro para esconder alguém. Certamente ele não a levou para a residência oficial.
            - Miguel, você poderia ser policial. Tem raciocínio rápido. Quando quiser, lhe contrato como meu assistente.
            - Dispenso, meu amor. Nesse momento prefiro o posto de marido. Vou pedir o café da manhã enquanto você se troca. Enjoada?
            - Nem um pouco.
            - Ótimo. – Então lhe beijou, enfim, e sussurrou um bom dia junto de sua boca. – Nosso vôo sai às 15hs. Não esqueça.



            Elizabeth não esqueceu e até por isso passou o dia todo olhando para o relógio. Tinha muito a fazer ainda. Primeiro buscou por informações de Gregory e descobriu que ele conseguiria sobreviver e assim que possível seria deportado ao Brasil, onde responderia por seus crimes. Lá, ela esperava que ele confessasse e entregasse cúmplices. Mas a tarefa mais importante era a coleta de dados. Quase tudo já fora feito por Rebeca. A colega fez cópias digitais de muitos dos documentos e fotografou os cômodos do grande prédio onde a boate operava. Com aquilo Liza já podia trabalhar. Ainda assim, a grande pergunta continuava.

            - Você encontrou alguma referência a alguém chamado Sebastian?
            - Não, infelizmente, Liza. Quase não há nomes. Apenas apelidos e números. Teremos um imenso quebra-cabeça à montar se quisermos chegar em alguém.
            - Montaremos ele então, Beca. Conseguiu as imagens de câmera de segurança?
            - Sim. Só uma câmera na quadra e outras três na principal rua de acesso. – Rebeca respondeu.
            - Ótimo. Vou revisar take por take e duvido que não encontrarei um certo grisalho, de altura mediana e muito charmoso entrando várias vezes nesse lugar. E aí eu descobrirei quem ele é.

            Sem saber que sua irmã já iniciava uma caçada contra Sebastian, Beatriz habituava-se à sua cela revestida em ouro e luxos, porém privada de liberdade. Nos dias que seguiram sua chegada aos EUA, Sebastian não apareceu. Ela passou manhãs olhando pela janela a vista muito distante vista do décimo quinto andar. Limpava aquele apartamento já reluzente. Lia revistas nas quais não tinha interesse algum. E se arrumava para um homem que nunca chegava.
            Na primeira vez que a porta se abriu o coração de Beatriz saltitou no peito. Foi até a boca e voltou ao lugar, decepcionado, quando Francisco passou pela porta. Ele vinha carregando uma sacola e parecia constrangido em lá estar. Sem nada dizer, largou as compras que ela não precisava sobre o balcão da pia e sentando-se na sala apenas olhando-a. Também sem nada a dizer, Beatriz guardou as compras sem nada falar.



            - Deixe de ser birrenta e sente aqui comigo. – Francisco incentivou. – Vamos conversar.
            - Porque você veio aqui. Eu não precisava de nada disso.
            - Mas está há dias sozinha aqui sozinha e uns minutos de prosa não vão te fazer mal. Me conte...gostou do novo lar?
           
            Beatriz sentiu-se um tanto ridícula. Gostar ou não gostar, naquelas circunstâncias, pouco interessaria ao motorista de seu...seu proprietário. Nesses dias ali presa, chegou a odiar Sebastian. Logo depois, voltava a desejar sua presença. Não deveria apreciar sua companhia. Nem mesmo quando ele lhe tratava bem e afagava porque a culpa de ali estar era apenas dele. Por mais carinhoso que fosse, por mais saboroso que fosse seu beijo ou sentisse prazer no toque, ainda assim, Sebastian era tão criminoso quanto Gregory.

            - É difícil gostar de uma prisão, por mais agradável que ela seja. Não adianta você dourar a pílula, Francisco. Não entendo porque Sebastian me quer aqui se nem mesmo vem ver se estou viva. Não passo de um capricho dele. – Disse ao funcionário de confiança, sabendo que aquela tristeza chegaria em Sebastian. – Não vem e me mantém presa aqui. Até na cadeia os presos têm direito a banho de sol, eu nem isso.
            - Você tem uma ampla sacada em que o sol bate todas as tardes, bela Beatriz. Mas compreendo sua tristeza. – Ele mais do que compreendia. Sentia-se mal em participar daquilo, ajudando o patrão a manter uma mulher em cárcere privado. Ainda assim, tinha por ele um profundo senso de lealdade. – Mas não seja injusta com o patrão. Ele preocupa-se sim com o seu bem-estar. Estou aqui a pedido dele.
            - E porque ele não apareceu aqui?
            - Sebastian é um homem muito ocupado, Beatriz. Nem mesmo à família ele dá atenção diariamente. Obviamente, também não poderá vê-la sempre.
            - Família? – Aquilo despertou a curiosidade de Bia. – Ele é casado? Por isso não me levou para casa? É isso?

            Francisco não podia trair o patrão informando a Bia coisas que ele não discutia com ninguém. Então manteve-se calado. O que apenas deixou a jovem à sua frente ainda mais interessada no assunto.

            - Não vai falar. Eu já imaginava. – Ela provocou-o. – Mas eu vi uma foto da menina. É filha dele né? – Mais uma vez, recebeu apenas silêncio como resposta. – Aposto que ele é um péssimo pai.

            Naquela tarde Francisco estava à frente do escritório de Sebastian com o carro ligado quando o patrão entrou no veículo. No caminho para casa, além de dirigir, ele contou seu breve encontro com Beatriz. Contou quase tudo, omitiu apenas a referência a pequena Luísa.

            - Então ela está entediada e mal humorada? Ótimo. – Disse ele, irônico. – É tudo o que eu precisava para completar o grupo de insatisfeitos comigo. Pedi que fosse ver se ela estava bem, não para lhe oferecer uma sessão de análise, Francisco. Era para levar comprar e não conversar.
            - Fiz um bem a ela, patrão. Ficar isolada por tantos dias é algo difícil para qualquer um. E...se me permite...
            - Você sabe que eu permito. Diga de uma vez.
            - Ela está certa ao menos em uma coisa: não pode lhe manter preza assim, num lugar fechado, por muito mais tempo.
            - E o que me impede?
            - Seria desumano. E você não é assim. – O funcionário disse, com franqueza.
            - E o que acontece se ela fugir e ir parar na embaixada brasileira? Eu serei preso e ficarei desmoralizado no mundo todo. Comprei aquele apartamento por possibilitar passeios no condomínio, mas não confio nela para deixá-la livre ainda.

            Francisco não respondeu. Já tinha opinado. Tentar mudar o pensamento do patrão era um passo além. Um passo que ele não pretendia dar. Ainda assim, percebeu que ele tinha mais a falar.

            - Está nervoso, patrão. Problemas nos negócios?
            - Os de sempre. Já na vida...fiquei sabendo que a Noxotb foi invadida e fechada pela polícia. Alguns clientes foram presos...e papeis apreendidos.
            - Acha que algo pode vinculá-lo ao lugar?
            - Não. Mas... a notícia que li a respeito me chamou a atenção por um detalhe. A investigação não é russa...é da polícia brasileira.
            - E qual a diferença?
            - Nenhuma...só achei curioso. Vou me manter informado disso tudo. Difícil é ter tempo para tudo. Minha mãe e minha filha também não estão nada satisfeitas comigo...ninguém parece estar. – Dessa vez ele falou mais para si mesmo que ao motorista.

            Desde o dia em que chegou de volta aos EUA, instalou Beatriz e foi para casa, já enfrentou problemas com a família. Assim que chegou em casa, viu Luísa com a avó  brincando. A pequena largou tudo para ir lhe abraçar enquanto a mãe não perdeu a oportunidade de reclamar por um longo período distante de casa.

            - Quem é vivo sempre aparece. – Comentou a idosa. 
           
            Logo ele estava repreendendo Angelina por falar daquela forma na frente da neta. Isso serviu para dar início a mais uma discussão e, estando ele cansado e bastante irritado com problemas acumulados, não estava nem um pouco disposto a suportar a intromissão da mãe.

            - Vou tomar banho e ir para a empresa. – Informou, irritado.
            Luísa tinha outros planos. Pretendia brincar com o pai que pouco via. E ao vê-lo discutir com a avó e já querer sair novamente, magoou-se. Aos prantos, Luísa correu para o seu quarto, gritando não gostar mais de seu pai, já que ele não gostava dela. Sebastian até tentou conversar com a filha, mas nada conseguiu. Quando queria, Luísa era tão rebelde e teimosa quanto ele.

            - Eu não quero falar com você. Vai embora. – Ela gritou quando ele apareceu na porta para lhe entregar um presente. Outra das bonequinhas russas que ela tanto gostava.

            Amava a filha. Mais do que já havia amado qualquer mulher. E certamente mais do que amaria qualquer pessoa que viesse a entrar em sua vida. Se vivia mais afastado dela do que gostaria, era porque a vida lhe exigia isso. Jamais por falta de sentimentos. Mas isso tudo era muito difícil para tentar explicar a uma menina tão pequena. Ele tinha esperança de que conforme crescesse. Luísa entendesse seu amor e sua forma de amar.
            Ele saiu de casa direto ao escritório central de seus negócios. Grande parte de sua vida foi dedicada a criação de um império hoteleiro ao redor do mundo. Hoje percebia que aquele império não o fez feliz. Trouxe dinheiro e status, é verdade, mas tomava grande parte de seu tempo, afastava-o da família e não o ajudou a construir um lar feliz. Agora, porém, não havia mais o que fazer. Muitas pessoas dependiam do sucesso de seus negócios. Por isso, passou os dias que se seguiram dedicado aos negócios, de reunião em reunião, vistoriando instalações do novo hotel e aprovando investimentos em unidades mais antigas. Aprovou também a venda de um deles, que já não se mostrava vantajoso. E ficou sem ver Beatriz por todos esses dias.
            O plano era não vê-la hoje também. Justo hoje, não. Aquele era um dia muito triste em sua vida, no qual, caso pudesse, evitaria ver qualquer pessoa, ainda mais uma mulher. Naquele dia completava-se quatro anos da morte de Lílian. Os que o viam, achavam que aquela tristeza era luto. Dor pela perda do grande amor de sua vida.

            - Tolos. – Sebastian sempre pensava.

            Era raiva. Por alguém que, mesmo morta, seguia endeusada e preservada de todos os seus pecados. Enquanto ele tinha de lidar dia após dia com as consequências. Era dele que Luíza se ressentia e a ele quem Angelina cobrava por estar ausente. Se Lílian tivesse se portado como uma boa esposa, Luísa teria uma mãe e ele poderia ser um pai e marido como qualquer outro, sem estar sempre em dívida com a filha. E, principalmente, seria um marido fiel, não teria conhecido nenhuma das garotas da Noxotb. E não teria comprado uma mulher que mantinha presa e afastada de todos, também magoada por sua ausência.
            Naquela noite, bebeu sozinho em um bar antes de chamar Francisco para buscá-lo. Entrou no carro sentindo as pernas trôpegas. Não deveria ir ver Beatriz...mas foi para lá que orientou o motorista a seguir. Precisava dela, do calor de seus braços. Mesmo que não fosse a melhor das companhias, sabia que ela o acolheria. Lá no fundo de sua consciência, pensava que talvez isso ocorresse porque ela não tinha alternativa.

            - Ela é minha, Francisco, só minha. Eu fiz bem em comprá-la. Assim ela não pode me abandonar. – Falou, quase que para si mesmo, durante o trajeto. O funcionário nada respondeu.

            Sebastian não conseguiu nem mesmo chegar ao elevador sem auxílio. Francisco teve de lhe oferecer apoio, além de abrir a porta. Prometeu esperar no carro, mesmo que para isso tivesse de passar a madrugada toda acordado. Beatriz entendeu o recado.

            - Não se preocupe. Não vou me aproveitar do estado dele para fugir. – Respondeu.

            Tonto, Sebastian esteve irreconhecível naquela noite. Agarrou-se a ela, tentou tirar-lhe a roupa, mas os dedos não conseguiam abrir os botões da roupa. Estava tão bêbado que mal conseguia falar. Coube a Beatriz, tirar a roupa e os sapatos dele e o colocar para dormir. Depois ela jogou-se sobre seu peito e também adormeceu. Dormiram nus, com muita intimidade, mas nenhuma intenção sexual. Ele estava bêbado demais, ela triste.
            Quando o sol clareou o dia, Beatriz levantou-se cedo e tomou banho. Esperava que Sebastian continua-se dormindo até tarde devido ao álcool, mas ao deixar o banheiro com os cabelos ainda molhados, o viu acordado e já de pé, mesmo que com os olhos enovelados pelo álcool. Beatriz esperava ter de lidar com um homem irritadiço e talvez violento. Mas não. Sebastian foi calado ao banheiro, tomou um banho e voltou com o cabelo molhado e um sorriso no rosto. Beatriz jurou guardar aquela imagem na memória quando fosse embora. Ele podia ser uma pessoa difícil, mas também era charmoso como poucos.



            - Bom dia. – Ainda nú, beijou-a. – Não me lembro de ter chegado aqui, mas imagino que você tenha tirado minha roupa e cuidado de mim. Obrigada.
            - Não precisa agradecer.
            - Acho que deveria ligar para Francisco. Ele passou a noite no carro, de vigia para que eu não fugisse enquanto você estava em coma alcoólico.
            - Eu liguei para ele assim que acordei. – Sebastian passou a mão nos olhos. – Me dê um comprimido para dor de cabeça, por favor. Ela parece que irá explodir.

            Indo até a cozinha, Beatriz não se surpreendeu em encontrar facilmente uma caixa de primeiros socorros. Lá havia um vidro com comprimidos para dor. Ela ofereceu um a Sebastian.

            - Vou preparar um café da manhã. Quando estou sozinha, faço a versão brasileira, só com café e pão com manteiga, mas imagino que você tenha o costume dos americanos. Tem ovos e bacon, se quiser.
            - Não, meu cardiologista desaprovaria. – Nem mesmo a dor de cabeça lhe tirou o humor do dia, garantido ao acordar ao lado de Beatriz. – Não faça café. Há uma cafeteria discreta a uma quadra daqui. Quero ir lá com você. Vista uma roupa discreta e quando chegarmos lá evite demonstrações de afeto ou falar com estranhos.

            Talvez fosse apenas carência, ou o resultado de tantos dias longe dele, mas um sentimento de afeto tomou conta de Beatriz ao vê-lo abrir a porta do apartamento e sair com ele para a rua. Ele olhava em volta, parecia ter receio de ser visto junto dela, mas não se afastava. E ela enfim pode ver pessoas, ouvir vozes e aproveitar um pouco da companhia dele. E, o mais incrível, é que não haviam transado. Não foi por sexo que ele veio ali, foi pela atenção e carinho dela.



            - Obrigada por me trazer aqui. – Ela lhe disse enquanto comiam.
            - Não quero seu mal, Beatriz. Se você conseguir ser discreta e se comportar bem, farei o possível para vê-la feliz.
            - Eu sei. – A resposta não era uma promessa de obediência. Simplesmente porque ser discreta e comportar-se bem não estava em seu planos. Mas, naquele momento, o melhor era não entrar em atrito junto de Sebastian e conquistar toda a liberdade que ele pudesse lhe oferecer.

            - Ótimo. Termine seu café. Quero levá-la a um parque próximo daqui. Você tem razão, é linda demais para eu lhe privar do sol.