domingo, 25 de setembro de 2016

Vida Roubada - Capítulo 27



            Gabriela via e não acreditava. A todo o mais poderia suportar, entender e até mesmo vencer, mesmo que para isso fosse obrigada a guerrear em algumas batalhas. Havia perdido seu dinheiro e o status de invisibilidade social enquanto liderava ações muito lucrativas no crime internacional. Agora seu rosto não mais despertava apenas o desejo dos homens e a inveja das mulheres. Ser reconhecida seria sinônimo de um futuro bem menos glamoroso, vivido entre grades. Por isso deixara o Brasil às pressas e rumara para Rússia, onde teria em suas boates condições de estabelecer-se ou garantir recursos para uma fuga definitiva. Encontrou, porém, um cenário muito distinto do que havia deixado por lá, tempos atrás. Com um estabelecimento fechado pela polícia, ela recorreu ao outro para ser, além de sua fonte de recursos, esconderijo. Sua fortaleza, porém, já não existia.


           

            - Senti-se, Gabriela. Não posso me dizer surpreso da sua chegada, afinal, vi seu rosto algumas vezes hoje enquanto via os jornais internacionais. Nas editorias policiais, é claro. – Gabriela teve de ouvir de Nikolay, enquanto esse agia como se ela fosse a visitante e não ele, um invasor.
            - Eu não posso dizer o mesmo. Saia daqui, Nikolay. Faz muito tempo que não tenho o desprazer de encontrá-lo. E hoje não é o melhor momento. Vá e volte, se quiser, quando eu estiver melhor disposta.



            Por mais de uma década ela teve Nikolay como um concorrente. Um respeitoso concorrente. Ambos conheciam as vulnerabilidades e a ousadia do outro e respeitavam-se por isso. Ele jamais entrou no seu negócio na Rússia e ela respeitou que a Grécia era território dele. E como ela jamais teve interesse no tráfico de drogas sintéticas, permitiu a ele reinar sozinha nesse segmento. Apesar de nutrirem uma inimizade mútua, mantiveram-se bem dessa forma.

            - Creio que você não entendeu, minha cara. Você não pode me mandar sair, porque esse lugar agora é meu. – Nikolay encarou uma Gabriela descrente, quase sem chão, como jamais a tinha visto. Para tirar-lhe o pouco que restava de serenidade, chamou a pessoa responsável por ajudá-lo a chegar até ali e que agora invertia as posições frente a Gabriela. – Samantha, querida, venha aqui esclarecer as coisas para nossa... convidada.



            - Eu digo que é um prazer, Gabriela. Um esperado prazer. Assim que soube do seu sumiço, imaginei que viria buscar esconderijo aqui, e esperei, ansiosa, para tê-la em minhas mãos. – Samantha disse.
            - Suas mãos? Não seja imbecil. – Gabriela respondeu. – Chame Otto agora, quero esclarecimentos do que se passa aqui. Agora.

            O riso de Samantha. O deboche de Nikolay. A bebida servida em um copo polido pela empregada. A postura vitoriosa de ambos. Tudo aquilo dizia a Gabriela que aquela onda de notícias ruins ainda não chegara ao final.

            - Otto não existe mais, Gabriela. É passado. Tão passado quanto você ter o direito de dar ordens. Agora, quem dá as cartas sou eu. – Samantha disse antes de se aproximar de Nikolay, acariciar seu peito e beijá-lo nos lábios. – Não é verdade, meu querido.

            Sentindo que a situação era muito grave, Gabriela pensou que dar um passo atrás fosse mais seguro. Iria embora e daria a Nikolay a falsa sensação de vitória. Seria apenas uma estratégia, até interar-se do que realmente ocorrerá ali, enquanto ela focava sua atenção no Brasil. Seus planos eram colocar fim em Samantha o quanto antes. Pegou sua bolsa e caminhou para a porta sem deixar transparecer sua derrocada. E sentiu a espinha gelar quando a um estalar de dedos de Nikolay, dois de seus antigos funcionários – que porém jamais souberam que era ela no comando – interromperam a saída. Samantha aproximou-se e arrancou-lhe a bolsa.

            - Você não vai embora, Gabriela. Você pertence a esse lugar agora. – A negra explicou.
            - Você só pode estar louca, olhe bem para mim!
            - Nós estamos olhando, Gabriela. – Nikolay afirmou, buscando colocar ordem na discussão daquelas mulheres belas e tão iguais em seu entender. Uma estava a passos de assumir o lugar que já fora da outra. – Eu estou lhe fazendo um favor em aceitá-la aqui. Essa boate, que você sempre tratou como de ‘segunda classe’, cujos clientes são mais pobres e indelicados, terá de lhe servir de abrigo. E estou disposto a lhe oferecer isso.
            - Esse lugar é meu! – Gabriela gritou em resposta.
            - Não é o que os funcionários pensam. E, acredite, eles já me são muito fiéis. É a parte ruim de manter a identidade em sigilo, minha querida. Aqui, você não é ninguém, Não é nada além de uma vagabunda qualquer a procura de uma cama pra dormir em troca de trabalho. A sua sorte é que eu estou melhorando esse lugar. Quero melhorar a freguesia e...o seu talento corpo é perfeito para o que tenho em mente.
            - Jamais! Seu porco nojento! – Gabriela atirou-se contra ele, buscando atingi-lo no peito, mais para extravasar a raiva do que para ferir. Teve os punhos segurados com facilidade por Nikolay. – Largue-me! Não sou uma dessas vadias! Você não sabe do que eu sou capaz!
            - Não se faça de santa. Você é sim uma dessas vadias, só que usou da sua condição social para galgar alguns degraus.
            - Você não sabe de nada!
            - Sei mais do que seu pai sabia ao morrer! Sei bem dos homens que você seduziu para alcançar o seu posto na sociedade americana. Não foi com seu curso superior que você alcançou o top, querida. Foi usando desses belos e fartos atributos físicos que possui. Você apenas terá de voltar nas origens.
            - Jamais! Não tem como me obrigar.
            - A não – Foi Samantha, muito habituada a cumprir aquele papel, a retomar a palavra. – Você está presa aqui, Gabriela. Tão presa quanto qualquer outra que você trouxe para a Rússia para se prostituir. Estou com seu passaporte. Sua cara está estampada nos jornais. E se eu quiser, ligo para a polícia e você passará décadas presa. Não há escapatória para você.

            Mesmo desnorteada, Gabriela teve sensatez o bastante para aceitar a derrota. Manteve-se calada em aceitação. Ao menos temporariamente, não tinha alternativa que não baixar a guarda e aceitar a humilhante posição. De Samantha não tinha medo algum. Uma mulher fraca que sempre esteve às sombras de homens quase tão fracos quanto ela. Seu único arrependimento quanto a Samantha fora não ter lhe matado quando teve chance. Algo que ainda pretendia corrigir. De Nikolay sim, tinha de manter uma distância inteligente. Ele era capaz de ser tão cirúrgico quanto ela nas decisões, capaz de matar friamente ou deixar viver apenas para fazer sofrer.

            - Leve-a para o seu aposento, Samantha. E prepare-a para a nova...ocupação. – Nikolay riu e observou-a. – Esse tom de cabelo não me agradou. Vai descolorir completamente. Os cliente irão gostar. Depois irei vê-la, Gabriela.
            - Posso ser reconhecida por alguém caso saia por aí com o mesmo visual que usava antes. – Ela argumentou. Na vida, confiou seu cabelo a poucos profissionais. Não se agradava Samantha ter essa incumbência.
            - Com isso não precisa se preocupar. Ficará bem diferente do que estava. – A frase soou como ameaça. Ainda assim, Gabriela seguiu, de cabeça erguida, seguindo os passos de uma sorridente Samantha.
           

...

            Sabendo que a paciente teria ao lado em tempo integral o mais atento dos médicos, a obstetra de Elizabeth permitiu que ela fosse repousar em casa após poucos dias de internação. O tempo por lá, porém, mesmo que pequeno, serviu para estressar Elizabeth. Sobretudo pelo momento em que aconteceu. Ela estava com mais de oito meses de gestação e por conta de seus problemas de saúde poderia dar à luz a qualquer momento. Isso por si só já a enervava porque representava a chegada concreta de um ser que seria de sua total responsabilidade. Além disso, tudo ocorria num momento em que sua vida profissional necessitava de toda a atenção da investigadora enquanto Beatriz precisava da irmã. Infelizmente, todas elas eram a mesma mulher. E, como Miguel costumava repetir muito, agora era a hora de ser ‘mãe’ acima das outras funções.

            - Além disso, para ser minha esposa, investigadora, irmã de Beatriz e mãe de Benício, você precisa ter saúde.  É hora de se cuida, Liz. E eu estarei o tempo todo ao seu lado a partir de agora.



            Bem perto. No primeiro dia em casa após uma semana no hospital, Miguel manteve-se tão imóvel quanto Elizabeth, não dando a ela desculpa para deixar a cama. As orientações da médica são de que, salvo alguns passos pela casa, Elizabeth deveria manter-se deitada. Sua pressão seguia muito alta, apesar da medicação; e o atentado promovido por Gabriela, além de ter colaborado para que ela tivesse um sobressalto gigantesco, também a deixou com algumas escoriações.

            - Quando será que o Drº Miguel não dará alta, bebê? – Liza brincou, acariciando a barriga.
            - Nunca. Estou aqui para cuidar de vocês. Benício e a mamãe dele precisam da atenção do papai. – Ele já a tinha ajudado no banho, secado seus cabelos e massageado seus pés. – São 11hs da manhã e nosso almoço será entregue logo. O que quer fazer enquanto isso?
            - Cuidado, Miguel.
            - Com o que?
            - Não posso sair dessa cama. Você está aí, gostoso como nunca, sem camisa e ainda me apalpando. Posso ter ideias bem criativas do que fazer, querido marido.
            - Esse tipo de ideia está proibida até Benício nascer. Você ouviu a doutora Francisca, acabaram os sustos e estripulias. Agora é tranquilidade até o parto.
            - Está bem. Não pode me cuidar por tentar. – Liza ainda provocou. – Achou que você pode me trazer o notebook para eu revisar meus e-mails enquanto o almoço não chega. E então, eu prometo, após o almoço eu dormirei. E você terá um tempinho para cuidar da BTez.
            - Eu deixei pessoas responsáveis pela BTez. Não preciso trabalhar quando minha esposa está prestes a parir. São as vantagens de ser patrão. – Miguel provocou antes de beijá-la.



            - Vou buscar o seu computador, senhora Benitez. Mas sem exageros, combinado?
           
            Elizabeth bem que tentou manter-se calma, apenas conferindo algumas obrigações burocráticas que deveria ter feito antes de sair de licença, mas que não conseguiu. Também tinha certeza de que Rebeca iria lhe manter atualizada nas investigações. E acertou. Em dois e-mails extensos, Beca a avisou que fora pedido bloqueio das contas de Gabriela e, também, a quebra do sigilo bancário e telefônico. Essas informações provavelmente a ligarão com outras pessoas e, com sorte, darão um rumo às buscas.

            - Como ela pode ter desaparecido dessa forma? – Miguel ainda não havia aceitado o fato de sua prima, com quem cresceu ser uma criminosa internacional.

            E entendera menos ainda como ela pode parar uma rodovia, forçar um acidente jogando um carro sobre uma policial federal e, ainda assim, desaparecer no mundo. Gabriela Alencastro, junto de seu pai, havia deixado um rastro de falcatruas que prejudicaram muito a BTez. E agora ela atentara contra a vida de Elizabeth e, por consequência, de Benício. Ao que tudo indicava, por mais difícil que lhe fosse acreditar, fora Gabriela a mandante da morte de Willian. Seu amigo e colega de medicina morrera por um capricho de Gabriela. Seu intuito era ter domínio sobre Elizabeth por meio de Beatriz. E a vida de sua cunhada ainda era uma incógnita que mantinha Elizabeth sem paz.

            - Sou capaz de apostar que ela já está na Rússia. – Liz trouxe seus pensamentos para a conversa novamente.
            - Mas como chegou lá?
            - Não é fácil saber. Mas existem meios. Ela é mais esperta do que pensávamos. Por tanto, já deve ter vindo ao Brasil portando documentos falsos ou tendo um plano de saída alternativo. E não nos faltam fronteiras disponíveis a uma fuga.
            - Eu te conheço, Liz. Você tem uma teoria. O que faria no lugar dela?
            - É, você me conhece bem demais até. – Miguel decifrara a forma bem sucedida de Elizabeth desvendar seus casos. Ela conseguia se colocar no lugar do criminoso, antecipar seus passos e alcançar a resposta que procurava. – Acho que ela pegou um voo interno, já que imaginou que em São Paulo teria uma vigilância superior. Foi até o Espírito Santo ou Minas Gerais e de lá deixou o Brasil por ar. Ou, quem sabe, foi até o Rio Grande do Sul e, por terra, alcançou a Argentina e de lá seguiu para Europa.
            - Mas há algum indício de que a Noxotb tenha sido reaberta?
            - Não. Está fechada e sob olhar atendo da polícia russa. Mas Rebeca tem conseguiu sérias indicações de que Noxotb não era a única boate liderada por Gabriela. Existiria pelo menos mais uma. O nome dessa é o que ainda não temos. É nesse lugar que Gabriela está, pode acreditar.

            Muitos e-mails foram apagados, alguns sites visitados, redes sociais atualizadas e, de repente, Liz resolveu conferir uma conta de e-mail mais antiga, que usava mais raramente. Viu que tinham várias propagandas, algumas mensagens automáticas e...uma única mensagem a qual ela reconhecia o remetente. Reconhecia a ponto de ter as mãos tremendo no momento em que clicou no ‘abrir’.

            - Miguel...Miguel...olhe isso. É Bia. É uma mensagem de Bia! – Elizabeth não acreditava naquilo. E a internet, de alta velocidade, pareceu lenta em abrir o texto.
            - Acalme-se, Liz. – Ele não precisava medir a sua pressão para saber que estava nas alturas. - Tem muitos arquivos. Pode ser apenas uma brincadeira de mau gosto ou vírus.
            - Não! Bia conhecia essa conta. Sempre usou-a, apesar de ter meus contatos mais recentes.



            Liz foi abrindo os arquivos um a um, passando os olhos nos textos e anotações, reconhecendo o texto e a forma de organização mental imposta por sua irmã a cada matéria. Havia Beatriz em cada uma daquelas linhas rascunhadas. Nas fotos apareciam ruas de prostituição de São Paulo, nas quais caminhavam suspeitos que ela investigava. Beatriz estava lhe enviando informações valiosas, o que tinha de significar alguma coisa. Ela deveria ter conseguido escapar de Sebastian Gonzáles, talvez estivesse escondida em algum lugar, passando necessidade.

            - Veja se há algum texto no corpo do e-mail, Liz? – Miguel estimulou, vendo que o nervosismo a fazia perder coisas obvias.

“Minha irmã, enfim consigo me comunicar com você. Precisamos conversar. Compre um chip de celular e me envie o número. Não pode ser o seu, nem nenhum outro que a polícia possa rastrear. Preciso da sua ajuda
Bia”

            - Como assim? Eu sou a polícia! Porque ela não quer ser rastreada? Não faz sentido. – Liz não entendera nada.
            Miguel também não. Mas ele conseguiu sair mais rapidamente do torpor que envolveu a ambos. Ele tinha um chip de celular uma gaveta e entregou à Liz. Antes mesmo de instalá-lo no aparelho, ela respondeu o e-mail de Bia, passando o número e pedindo que ela ligasse o quanto antes. Depois disso, Miguel aceitou que não existiria chá, banho ou massagem capaz de acalmar Liz. Ela ria e chorava ao mesmo tempo, num nervosismo feliz.

            - Ela está viva! Viva! Eu sempre soube! Minha Beatriz está viva! – Elizabeth repetia e abraçava Miguel sem parar.

            Elizabeth chamou Rebeca e Tom para o seu apartamento. Se ela não podia vir a Polícia Federal, eles teriam de mudar o escritório para o apartamento dela. E todos se surpreenderam com o que viram no e-mail. Ao que parecia, Bia tinha conseguido liberdade o suficiente para acessar os arquivos em nuvem que utilizava para manter suas pesquisas profissionais. Ali ela tinha materiais brutos, que não conseguira editar para publicar porque fora sequestrada antes.

            - Com alguma sorte, aqui nessas imagens haverá alguém que nos leve até a outra ou as outras boates de Gabriela ou até a pessoa que a vem escondendo. – Tomas afirmou.
            - Sebastian Gonzáles deve ser o nosso primeiro suspeito. – Liz lembrou o chefe. – É provável que ele tenha ido ajudar Gabriela, abrindo espaço para Bia fugir.
            - Ele não saiu dos EUA, nem Gabriela entrou lá. – Rebeca informou. - Aliás, minhas fontes afirmam que ele não sai de casa há dias.
            - Mesmo assim. Bia esteve com ele...ou ainda está!
            - Fique calma, Liz. Ela vai entrar em contato e vai esclarecer tudo. – Rebeca estava ansiosa para que Miguel voltasse a ficar ali, junto de Elizabeth naquele momento difícil. Mas, ao que parecia, não seria assim.

            Depois de seu telefone tocar muitas vezes em sequência, ele pediu licença para atender a ligação e desapareceu na cozinha do apartamento. Liz, muito nervosa, não percebera, mas Tom e Rebeca estranharam a demora e os passos nervosos que ele dava no outro cômodo. Quando voltou ao quarto, ele sentou-se ao lado da esposa, acariciou seu rosto como que pedindo desculpas. Liz, que vivia sua própria tempestade emocional, percebeu no toque diferente e nas mãos vários graus mais geladas, que havia algo de muito errado.

            - O que há? Miguel, você está bem? – Ela perguntou.
            - Me perdoa...eu deveria ficar aqui, com você, do seu lado, oferecendo ajuda. Mas...
            - O que houve? Quem ligou?
            - Era madre. Alejandra está dando à luz. – E a notícia o deixou com a consciência pesada. Uma filha sua estava vindo ao mundo e ele pouco lhe deu de atenção durante toda a gravidez de sua mãe, devido a inúmeras coisas que ela não tinha culpa. – Virá prematura...e...eu...
            - Eu compreendo, Miguel! Vá. – Elizabeth estava tentando passar uma calma bem superior a que realmente sentia. Saber que o marido estaria na cabeceira de outra mulher, que ele via outro bebê nascer e que esse era um elo eterno entre ele e Alejandra, não representava uma alegria. Ainda assim, o dever era superior. – Rebeca e Tom estão aqui. Vá ver sua filha nascer.
            - Perdoe-me! – Ele pediu novamente.
            - Vá! Não está fazendo nada de errado. – Liz repetiu e viu Miguel sair do quarto.


            Não lhe faltavam razões para estar nervosa. Entre elas, seu marido sendo pai...de um filho que não era o abrigado em seu ventre. Jamais reconheceria, mas a dor estava ali, provando-a que já não era uma mulher tão fria quanto gostava de pensar.

domingo, 18 de setembro de 2016

Alguém Para Perdoar - Capítulo 12


   Em seu silencioso mundo, Maria Fernanda aproveitou o primeiro abraço de seu pai sabendo que não seria o último. Ela não entendia algumas coisas que ele insistia em falar pela boca, ao invés de usar as mãos. E agora, emocionado e chorando, ela não conseguia entender o movimento de seus lábios. Não teve importância alguma. Milena observou-os apenas de longe, sem interferir. Achava que, independente dele não saber libras, iriam se entender porque falavam a língua do amor.
            Um amor que não bastou para manter ela e Nathan juntos, mas que seria forte o suficiente para que ele jamais deixasse a filha novamente. De longe, viu Nathan afagar Maria Fernanda e a menina, sorridente, passar os braços pelo pescoço do pai e passar as mãos pelos seus cabelos, tão mais escuros que os da mãe.

            - Eu nunca, jamais, ficarei longe de você novamente. Eu juro. Você vai para sempre contar com seu papai. Eu vou estar velhinho e você já ser um mulher, linda e forte feito sua mãe, e, ainda assim, sempre que me quiser por perto, eu estarei aqui. – Entre lágrimas Nathan repetia, sabendo que a menina não o compreendia.

            E não apenas por sua surdez. Maria é muito jovem para entender os problemas dos adultos. Caso fosse um pouquinho mais velha, talvez nem mesmo conseguisse aceitá-lo tão facilmente. Provavelmente guardaria as mágoas e tristezas de sua mãe e exigiria explicações. Mas sendo aquele anjo inocente, deixava o passado para trás, sem questionamentos nem recriminações e o recebe disposta a ter amor.

            - Eu te amo tanto filha. – Nathan disse, muito lentamente e à frente de Maria, torcendo para que ela, ao olhar o movimento de seus lábios conseguisse captar a mensagem.



            Maria entendeu o que Nathan, o seu papai tentava falar entre algumas teimosas lágrimas. Soube entender e, também, responder, mas ao seu modo. Primeiro acariciou a face de Nathan, secou as lágrimas e o fez abrir um sorriso, para então juntar as pequeninas mãos a frente do peito e também sorrir. Era a sua forma de dizer que ele já habitava aquele coração infantil.
            Depois ela correu para o balanço novamente, era hora de brincar. E claramente disse ao pai que queria sua companhia na brincadeira. Quando Nathan percebeu, já não mais chorava. Apenas empurrava o balanço de Maria Fernanda, que se divertia sentindo o vento em seus cabelos. Passando um tempo, Nathan a pega no colo, fazendo-a entender que é hora de ir para casa. Já brincaram demais. É hora de reencontrar Milena e, a partir de agora, seguirem como uma família.



            Se ganhar a confiança da filha fora fácil, não seria bem assim com Milena. Já dentro de casa, Nathan percebeu que tinha de resolver questões práticas. Umas das mais urgentes era conseguir levar a sua vida, sem criar dificuldades para Milena e, ainda assim, conseguir conviver com Maria. O problema era como quando viviam em estados distantes. Milena era necessária em Bento Gonçalves já que seu trabalho tanto na administração da vinícola quanto no turismo rural em hipótese alguma poderia ser feito à distância. Já ele precisava estar no Calderone. Depois de tanto tempo tocando dois restaurantes sozinha, agora Emily enfim contava com o sócio. Não podia simplesmente sumir.
            Logo que chegaram a casa, Nathan disse para Milena que precisavam acertar algumas coisas. Ele tinha responsabilidades em São Paulo, ela no Rio Grande do Sul, mas manter-se distante de Maria não era mais alternativa possível. Ela se esquivou do assunto. Disse que precisava pensar e pretendia fazê-lo com calma.
            - Está bem. Por esse final de semana consigo ficar aqui. – Nathan concordou, sabendo que precisava ser paciente. – Eu vou para um hotel e amanhã nós conversamos.

            Os Vicentin, porém, não concordaram. Vovó Ângela não admitiu que eles, tendo uma casa tão grande, não recebessem o pai de sua bisneta. Já Milena, porém, não gostou muito da ideia. A presença de Nathan a abalava demais e tê-lo ali por muito tempo a deixava desconfortável. Pena que não teve alternativa.

            - Eu vou para o hotel, vovó, sem nenhum problema. – Nathan reafirmou, percebendo o constrangimento de Milena.
            - Você não incomoda nada, meu filho. E vai ficar na casa de Maria, perto dela, que é o seu lugar. – Ela olhou para a neta. – Acomode-o no quarto de hóspedes. E veja se está tudo bem para que ele consiga ficar confortável.

            Olhando o constrangimento em todos os presentes, Milena tentou argumentar. Nem mesmo Giovanna ou Leonel conseguiram fazer com que a vovó interferisse um pouco menos na vida dos netos e bisnetos, permitindo que eles escolhessem o que fariam. Mas nada adiantou.

            - Vamos! Não vou falar novamente. Maria acabou de conhecer o pai. É seu direito ter ele por perto. Você fica.

            Vencida, coube a Milena aceitar. Maria Fernanda e Nathan têm que se conhecer melhor.

            - Você está certa, vovó. Eu te acompanho até o hotel para pegar as malas. E esse final de semana você passa conosco. O futuro, na segunda-feira nós decidimos. Maria vai adorar tê-lo aqui.

            No sábado, muito antes de seu horário habitual de deixar a cama, Rafael se levantou silenciosamente. A casa ainda adormecida não o viu sair. Mas, quando a cama ficou fria e, quase que por um hábito formado no decorrer dos anos, Melissa, ainda em sono, esticou o braço para tocar o marido, ela então percebeu que havia fica sozinha logo cedo. E ficou magoada. Seu marido a tinha deixado num sábado, coisa que jamais fazia. E antes de sair nem mesmo um beijo de despedida lhe deu.
            Triste, olhou-se no espelho pensando que talvez a crise conjugal que por anos pensou que jamais teria, enfim, alcançou seu casamento. Talvez Rafael já não a amasse como no passado. Talvez hoje eles sonhassem coisas distintas. Talvez agora a felicidade dela já não mais lhe interessasse. E talvez ele tenha preferido ir passar aquele sábado num futebol entre amigos. Ou, ainda pior. Talvez ele já tivesse encontrado outra parceira na vida.
            Triste, porém, sem se entregar para a derrota, arrumou-se com o mesmo cuidado de sempre. Escondeu as marcas das lágrimas sob uma maquiagem perfeita e acordou Táles para o café da manhã.

            - Cadê o papai? – O menino perguntou quando viu só a mãe à mesa.
            - Não sei.
            - Como assim, mãe?
            - Eu não sei Táles. Seu pai saiu sem avisar nada para mim e eu não pretendo ligar. Caso faça questão, ligue você para ele. Fim do assunto. – Irritada, foi a resposta de Melissa.
            - O sábado começou bem hem. Vou jogar vídeo-game no meu quarto.

            Antes dele subir as escadas, porém, Táles viu a porta da frente se abrir. E por lá, além de Rafael, passar uma pessoa tão esperada quando inesperada por todos. Mel viu Isabely e não acreditou. Carregando sua mochila e indo alguns passos à frente de Rafael, ela parecia constrangida em estar ali, mas segura ao lado dela. Como Rafael conseguiu isso? Entre lágrimas e sorrisos Melissa recebeu a menina.



            - Oi tia. – Foi tudo o que Isabely ofereceu de cumprimento.
            - Oi Isabely. – Melissa lembrou-se das palavras de Marta e tentou agir de forma natural, sem pressionar a menina. – Seja bem vinda em nossa casa.



            - Valeu... -  Tímida, Isabely não sabia o que dizer ou como se comportar.
            - Ei! Que mochila é essa? – A pergunta foi feita por Táles e despertou a curiosidade e a felicidade de sua mãe. – Você veio passa o final de semana?
            - Vim sim...seu pai me convidou.
            - Que legal Isa! Então vem conhecer o meu quarto! Eu ia jogar videogame!

            Os dois foram com a única recomendação de que Táles passasse na cozinha e levasse um lanche, já que Isa deixou o orfanato muito cedo, sem tomar café. Quando ficaram sozinhos na sala, Melissa e Rafael se olharam, reencontrando a simplicidade que esteve junto deles nos últimos anos. Com um olhar provocador, ele a desafiava a criticá-lo, mas sabia que a esposa jamais assumiria ter ficado chateada ao acordar sozinha.



            - Como? E por quê? – Ela perguntou, de forma direta.
            - Conversei com Marta e com Isabely e lhes propus que ela se torne nossa afilhada afetiva, nada mais do que isso. Isa concordou porque gosta de Táles e porque lhe garanti que não vamos forçá-la a ser nossa filha. E também prometi que não vamos mimá-la nem tratá-la como se fosse uma criança abandonada. Por isso, controle a sua fúria consumista. Temos que fazer com que ela se sinta em casa e não perceba que muda a nossa rotina em nada. Depois vemos os próximos passos.
            - Está bem. Vou me controlar. E arrumar o quarto de hóspedes para ela, sem mimos, apenas o básico. – Ela concordou, considerando que alguns mimos todo hóspede recebe. Isso é básico, pelo menos no seu modo de receber alguém. – E porque fez tudo isso em segredo. Podia ter me dito onde foi
            - Você estava em greve de silêncio comigo, me castigando simplesmente por eu não pensar como você. – Rafael começou a explicar. – Achei melhor agir sozinho. Agora eu vou tomar um banho. Não tomei antes para não te acordar.

            Ele sempre fora assim, Mel pensou ao vê dar-lhe às costas e subir as escadas. Ele sempre pensava nela e em seus desejos acima de qualquer coisa. Sentindo-se um pouco culpada, Melissa foi atrás do marido e encontrou-o separando as roupas para tomar banho. Sem camisa e lindo como ela nunca se cansava de observar, ela o abraça pelas costas antes de virá-lo para lhe dar o beijo que há dias não oferecia. Rafael retribuiu, acarinhando-a com mais paixão do que ternura, extravasando a paixão que, depois de tantos anos de casamento, às vezes ficava escondida atrás do companheirismo e amizade criados no passar do tempo. A verdade é que Melissa tornou-se sua companheira, melhor amiga, parceira, mãe de seu filho, organizadora da sua casa e sua maior fonte de segurança, mas, ela jamais deixou de ser a sua namorada e a amante perfeita. Mesmo que esquecessem disso de vez em quando.



            - Me perdoa? – Foi ela a dar o braço à torcer assim que a tempestade passou. – Eu não tenho o direito de forçá-lo a ser pai mais uma vez. Adotar uma criança é algo difícil, você tem todo o direito a não desejar isso nessa altura da nossa vida, em que Táles já está criado.
            - Você estava certa sobre Isa, Mel. Ela vale todo o esforço que fizermos. Fui eu quem errou e, por isso, fui conversar com ela.
            - O que te fez mudar de ideia?
            - Eu pensei muito e conversei com alguns amigos... Isa É uma menina que só precisa de amor e carinho. Nós podemos dar isso a ela. Hoje ela pode negar a querer vir viver aqui, mas, aos poucos, vamos conseguir. Eu enxerguei isso conversando com ela. Isabely já ama sinceramente Táles. Ela é uma menina doce, com sentimentos. Eu acho que ela só se nega a estar em uma família porque não deseja perder Marta e os irmãos que têm no orfanato. Ela tem medo de largar tudo por nós e, talvez, também nos perder um dia, caso não mais a quisermos e a devolvermos.
            - Não sei como alguém pode adotar uma criança e devolver...onde ficam os laços?
            - Isabely nunca se recuperou de ser abandonada pela família adotiva e não quer novos pais. Mas ela nos aceitou como padrinhos. Isso significa que ela pode passar finais de semana aqui, feriados e até viajar conosco nas férias. Isso tudo sem perder o seu lar lá no abrigo. Vamos dar o que ela está pronta para receber.
            - Sim...vamos. – Ela voltou a beijar o marido. – Obrigada, Rafa. Não sabe o quanto você me faz feliz. Eu...nunca me senti tão...tão completa.
            - Fiz porque te amo acima de tudo. E vê-la triste me machuca. Eu não sei viver de outra forma, além de fazendo-a feliz, Melissa. Sei o quanto você fez pelo nosso casamento, quando abandonou as passarelas para ser a minha mulher, a mãe de meu filho e a minha anfitriã. Dar-lhe tudo que a faz feliz é a minha obrigação.
            - Você me faz feliz, sempre fez. – E aquela é a mais completa verdade de todas.

            Foi um sábado de surpresas também para Joaquin. Acostumado a ficar com a babá enquanto a mãe se trancava no escritório para adiantar coisas do trabalho, naquela manhã ele a viu sentar-se ao seu lado para tomar café. O sorriso de sua mãe também o surpreendeu. Havia algo de muito diferente nela naquele sábado. Mas parecia bom, então resolveu aproveitar.

            - O que você quer fazer hoje, filho? – Ela perguntou.
            - Acho que eu e Nath vamos no parque. – Ele respondeu, repetindo o que a babá tinha lhe dito dois dias antes.
            - Nath está de folga, meu amor. Se quer o parque, vamos eu e você. Você quer dizer o parque da praça ou o de diversão?
            - O com a roda gigante, mãe. Mas...você não tem nada de trabalho pra fazer?
            - Não. Meu dia hoje é seu, filho. Só seu! Termine seu café para irmos.

            Feliz, porém um pouco desconfiado, Joaquin trocou de roupa e saiu com a mãe. Ela estava mesmo diferente. Brincou, sorriu, correu com ele pelos brinquedos, como doces e até sentou na terra com ele. As roupas ficaram sujas e ela nem se importou. Parecia a sua mãe de antes, quando eles moravam com o papai.



            Na hora do almoço, ela o deixou escolher o que comer e também a sobremesa. E então, quando já estava bem cansamos, resolveram que podiam ir para casa, assistir a um filme juntos. Lá no fundo, ele ainda não entendia o porque da estranha forma da mãe se comportar.

            - Mamãe, você está bem? – Joaquim não resistiu e teve de perguntar.
            - Sim, meu filho. Uma mãe não pode querer passar um tempo com seu filho?
            - Pode...mas você sempre trabalha tannntooooo. Hoje não tem trabalho
            - Não, Joaquim. Hoje não tem trabalho. E daqui para a frente será assim. A mamãe vai encontrar tempo para ficar com você. E tem mais. Eu quero te pedir desculpas, meu filho, por não ser a mãe que você merece, por deixar meus problemas com seu pai afastarem você.
            - Vocês brigaram de novo? – Talvez isso explicasse o estranho comportamento dela.
            - Não. Nem vamos mais brigar. – Ela riu entendendo o quanto Joaquim compreendia o que se passava entre ela e o ex-marido. – Acredite, você é a pessoa mais importante da minha vida.

            Joaquim sabia disso. Sempre soube, mesmo quando a mãe passava mais tempo trabalhando ou brigando com o papai. Ele entendia que ambos o amavam muito e, talvez por isso, discutissem cada vez que ele ia ou vinha da casa de um para a do outro. Chegou a pensar que talvez ele fosse o culpado de tantas discussões. Ele então se virou para a mãe e beijou seu rosto, como fazia todos os dias. Esse beijo, porém, pareceu mais especial.

            - Eu também te amo muito, mamãe. – Disse, sincero, em retribuição à mãe. – Também amo meu papai. Você não fica triste com isso, né?
            - Não filho, claro que não. Papai ama você também. Muito. Ele só não ama mais a mamãe. Só isso.
            - E você ama ele ainda? – Porque os adultos são tão complicados, Joaquim tentava entender.
            - Não. A mamãe só ama você agora. – Era melhor mudar de assunto. – Acho que precisamos ir embora e tomar banho antes de ver nosso filme. Pode ser?
            - Sim. Você deixa eu comer mais sorvete enquanto vejo o filme?
            - Deixo. – Márcia respondeu.

            Apostando corrida pelo estacionamento, Márcia sentia-se mais leve e mais feliz do que há muito tempo. Tinha sido sincera com o filho. Não mais amava Alex, talvez já não o amasse muito antes do divórcio. Estava se deixando guiar pela mágoa e pelo ódio, não pelo que havia sobrado do sentimento que a levou a se casar com o pai de Joaquim. Agora sentia-se livre de todos os sentimentos ruins e com espaço aberto no peito para encher de bons sentimentos. Enquanto o filho tomava banho, num impulso quase adolescente, pegou o celular e enviou uma mensagem para Raul. Apenas uma foto feita pelo celular no parque de diversão, em que ela e Joaquim apareciam sorridentes, sujos e cansados. No texto, apenas uma palavra: obrigado. Raul não sabia, mas sua atitude de abandonar o caso e forçou a ver a vida com outros olhos.


quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Ariella: capítulo 20

Diego sentiu o rastro de dor deixado pela primeira bala que atravessou seu corpo e arrependeu-se da ousadia em tentar fazer algo. Os homens que ali estavam não aparentavam ser especialistas no que faziam. Ao contrário, mostravam nervosismo e impaciência, como se não estivessem habituados ao papel de assaltantes. Isso até poderia ser encarado como algo bom, não fosse o risco iminente de eles puxarem o gatilho por puro nervosismo. Sem saber como agir, mas pensando que permanecer imóvel poderia também ser arriscado, tentou soltar-se e lutar. Temia que, além de levar dinheiro e objetos da casa, fizessem algum mal a Ariella.


 Mal havia conseguido afrouxar um pouco aquela mordaça e tentava forçar a amarra que mantinha seus braços presos às costas de uma cadeira quando ouviu o estalar da arma ser engatilhada. Eles poderia ser inexperientes, mas não a ponto de deixá-lo sem nenhum vigia. E o homem que recebeu a incumbência de ficar de olho nele, não quis arriscar mais, atirando contra sua perna.

            Ao longe pode ouvir os gritos de Ariella e temeu que o homem fosse lá também. Com a perna queimando e o sangue escorrendo pela roupa branca, porém mais preocupado com o que viria a seguir, Diego encarou o homem que continuava lhe ameaçar com o revólver. Os demais, no segundo andar, pareciam despreocupados com a razão dos disparos.

            - O que você tá querendo, gringo? Não era pra tá aqui. Veio atrapalhar o nosso papo com a artistazinha.  A gente foi legal e resolveu só levar umas coisinhas...por enquanto vocês dois tão vivos. Tá querendo o que?
            - O que vocês querem? É dinheiro, eu sei. Posso...
            - Pode nada! Vai calar a boca e ficar quieto aí antes que eu canse de olhar pra sua cara e resolva te apagar. Tu e a bonequinha de porcelana. Um tiro em cada cabeça.
            - NÃO! Só não machuca ela, por favor. Leva o que quiser e não nos machuca.
            - Ótimo, fica aqui então, bem quietinho, enquanto a minha galera procura o que nos interessa. E vê se sangra menos...tá sujando o tapete da bonequinha.

            Diego levou algum tempo tentando ouvir o que se passava no andar de cima e antecipar os próximos passos daqueles homens. Só quando ouviu o celular de um tocar e ele atender referindo-se a pessoa do outro lado da linha como “minha linda” é que chegou a uma teoria. Carla, a golpista que se infiltrou na casa como empregada doméstica e passou detalhes da vida e da rotina de Ariella ligou para saber o que havia ocorrido. E foi surpreendida pelo que ouviu.

            - Não. Um gringo apareceu com seguranças....não....já disse que não. Vamos defender o que é certo. Pegar o que der e sumir. – Diego ouviu o homem afirmar.

            Sua chegada os fez desistir do plano de sequestro e contentar-se com o roubo da residência. Para isso, não hesitaram em matar os dois seguranças e, temia Diego, não lhes custaria nada puxar o gatilho fatalmente contra ele ou a proprietária da casa. Já sentindo os efeitos de ter perdido tanto sangue, Diego ouviu coisas se quebrarem no andar de cima e começou a temer ainda mais. Ao que percebeu nesse tempo por ali, Ariella vivia de uma forma muito simples e ele não acreditava que ela guardasse grandes quantias de dinheiro ou joias em casa. Eles procuravam um cofre...e Diego não sabia se iriam encontrar algo. Caso a resposta fosse negativa, a chance de irem embora deixando-os vivos era menor ainda.


 

            Naquele momento, Diego repreendia-se por não ter ligado para Murilo e explicado porque continuava no Rio de Janeiro. Caso o tivesse feito, não estaria agora à mercê da sorte para salvar a ele e Ariella. O amigo não tinha razão alguma para desconfiar de que havia algo de errado em sua viagem e devia crer que ele e Ariella estavam se acertando – o que realmente parecia estar acontecendo – ou que ele fora curtir o Carnaval sozinho pelo Rio de Janeiro. Qual fosse a razão, estava sem saber o que fazer.
            Ao contrário de Diego, porém, Ariella havia telefonado para Dulce. Sua melhor amiga e confidente de tantos momentos especiais não apenas sabia da chegada inesperada de Diego ao Rio de Janeiro, como de vários detalhes do que vinha acontecendo. Elas tinham trocado diversas mensagens em que Ariella pedia para a amiga conselhos de como evitar deixar-se enredar pela sedução de Diego mais uma vez. Dulce, que jamais negou sua antipatia por Diego depois do que ele fizera a Ariella na juventude, preferiu não dar nenhuma sugestão à amiga. Afinal, também ela estava em dúvida. Por mais que recriminasse as atitudes de Diego, hoje, tantos anos depois e convivendo com ele, reconhecia que ele realmente a amava. E via que a distância do ex-marido jamais tornou Ariella uma mulher completamente feliz.

            - Faça o que seu coração mandar. – Foi tudo o que Dulce disse.

            A amiga não foi, porém, completamente sincera. Assim que Ariella lhe disse o que acontecia ela comprou passagens para o Rio de Janeiro e exigiu a presença de Murilo. O marido argumentou que eles precisavam de um tempo a sós para resolver os próprios problemas e ter amigos por perto não ajudaria em nada. Porém, Dulce não estava nenhum pouco preocupada com isso.
            Desembarcaram na capital carioca numa manhã de sol forte. Como era meio do feriado, o aeroporto estava tranquilo. Difícil foi encontrar um táxi disponível para levá-los até o apartamento que mantinham na cidade. Apesar da vontade de correr para a casa de Ariella instantaneamente, Dulce concordou em esperar até aquela noite.



            - Diego ficou de me ligar agora a tarde, vamos aguardar. – Ele pediu. – Enquanto isso, eu vou no hotel ver como está tudo por lá. Sem confusões, Dulce, por favor.
            - Não sei por que me pede isso. Eu não causo confusões, meu amor. Apenas respondo a elas à altura.
            - Sei, claro. – Aquilo simplesmente não era verdade. E fazia parte do encanto de Dulce. Culta, linda, elegante e requintada, ela sabia fazer um escândalo como ninguém. Era só desagradá-la. Diego já tinha experimentado isso em outros momentos e ele esperava não ter uma nova dessas cenas agora. – Aproveite a praia nessa tarde. Depois nós vamos visitar Ariella.



            Aproveitar a praia para colocar o bronzeado em dia não era nenhum sacrifício para Dulce. Muitas vezes ela e Ariella aproveitaram aquelas areias juntas. Hoje, porém, viu o sol se pôr com um sentimento de angústia dentro do peito. Ligou para Ariella e não conseguiu falar com ela. Era início de noite quando encontrou-se com Murilo e dividiu com ele toda a sua angústia. Sentia que algo estava errado.

            - Está bem. Vou tomar um banho e nós vamos. – Murilo respondeu. Também estava preocupado. Normalmente muito atento aos negócios, Diego dessa vez não cumpriu o combinado nem atendia ao celular.

            Foi a chegada de Dulce e Murilo que forçou os assaltantes a saírem da casa. Na área distante e silenciosa em que Ariella vivia, um carro se aproximando sempre gerava alerta. Diego enxergava pouco e tinha pensamentos confusos. Ouviu o carro se aproximar, mas pensou estar delirando. A perda de sangue o tirara as forças e ele já parecia habitar um mundo paralelo. Percebeu claramente algo estar ocorrido quando todos os homens desceram as escadas correndo, em fuga. Eles carregavam sacos, o que indicava ter encontrado peças valiosas. O que ia à frente gritou para o último a ordem que Diego gostaria de ter ouvido errado.

            - Acaba com ele. – Ordenou indo em direção aos fundos da residência.

            O mesmo homem que atirado antes, agora lhe apontava a arma. E Diego não teve dúvida de que ele finalizaria o serviço. Agradeceu, porém, ao fato de que nenhum dos bandidos pareceu interessado em procurar por Ariella. Ele morreria ali, aceitou ao olhar nos olhos de seu carcereiro. Porém, iria com a esperança de que Ariella sairia viva. E teria a chance de ser feliz com um outro alguém, que lhe daria o que ele não soube oferecer. Dois tiros foram disparados. O primeiro, com mira feita calmamente, atravessou seu abdômen. E no instante que a porta da rua começou a ser esmurrada, já em fuga, outro disparo foi feito, dessa vez encontrando seu peito.
            Quando Murilo e Dulce ouviram tiros e gritos no interior da casa, começaram a forçar a porta. Quando enfim conseguiram entrar, porém, tudo o que encontraram foi muito sangue pelo chão e Diego, ao chão, balbuciando palavras confusas. Histérica, Dulce ouviu os gritos de Ariella e foi até ela, destrancando a porta facilmente já que apenas uma cadeira bloqueava a fechadura. Não soube, porém, o que dizer a amiga. Conhecia Ariella o bastante para saber que ela já sentia o que ocorria, percebia o sofrimento de Diego. Ariella, depois de ouvir tantos tiros e ver Dulce abraçá-la em um silêncio doloroso, entendeu que algo grave ocorria. Também em silêncio, ela correu até chegar ao local em que seu coração exigia estar.



            Deparou-se com um Diego com as roupas avermelhadas pelo sangue. E isso fazia intensificar a palidez de seu rosto. Abraçou-o, beijou sua face e o viu abrir os olhos. Estavam perdidos, como se não a visse. Na lateral, Ariella observava Murilo ligar para a emergência e pedir uma ambulância com urgência. Estavam distantes de tudo, porém. E Ariella sabia o quanto dependia deles salvar a vida de Diego. A dificuldade de caminhar foi esquecida e ela correu de volta ao banheiro em que esteve presa, dessa vez para pegar toalhas e cuidar de Diego.



            Sem dar atenção a nada além de zelar por ele, circulou sua perna e pressionou o abdômen e peito com as toalhas. Ele não podia seguir perdendo sangue enquanto os paramédicos não chegavam. Depois secou o suor que umedecia seu rosto e o acariciou, beijando a testa do homem que horas antes lhe oferecia amor. Qualquer um que os visse naquele instante não acreditaria que uma década antes eles guerrearam feito inimigos e que as marcas hoje carregadas por ela no corpo eram responsabilidade dele. Diego, porém, jamais esquecia.

            - Ariella...Ari... – Buscando forças de onde não tinha, ele tentava lhe dizer coisas que não podiam ser deixadas para outra oportunidade. Porque essa talvez não existisse.
            - Não fale. Descanse. Você ficará bem.
            - Ariella....preciso...pre...preciso que ouça. – Ele parou e tomou fôlego. – Preciso que diga...diga que me perdoa.
            - Diego...agora não é hora...
            - Posso não ter outra chance. Diga...por favor...diga...
            - Diego eu... – Ela não sabia o que responder. Perdão era algo forte demais. – Você vai viver e então conversaremos.
            - Talvez não. – As lágrimas se misturaram ao sangue. – Eu... eu te amo. Preciso que saiba disso. Sempre vou te amar. Mesmo se eu morrer hoje, vou continuar te amando. Perdoe-me pe...pelo mal que te fiz.
            - Perdôo. Não pense mais nisso agora. Só pense em ficar bem. Só viva, apenas viva!

            Apenas viva. A frase transformou-se em um mantra para Ariella. Tudo passou muito rápido dali em diante. A ambulância chegou e Diego seguiu para o hospital. Ela foi, levada por Murilo e Dulce. Logo, porém, lhe disseram que teria de ir na polícia depor a respeito do crime e informar a seguradora de tudo o que se passara. Revoltou-se, disse que de nada adiantaria tudo isso quando a única preocupação verdadeira em seu coração era a sobrevivência de Diego.

            - Mas você nem sabe o que levaram da sua casa. Nem mesmo foi ao segundo andar. – Murilo lembrou-a com a calma que um homem de negócios costumava manter em momentos difíceis.
            - Pois poderiam ter levado tudo. Não me importo. – Ela respondeu e seguiu sentada no chão da emergência hospitalar, sem forças para levantar.



            Sua mente estava em turbilhão. Foi avisada de que uma longa cirurgia de emergência ocorria, sem hora para terminar. Ela seguiu ali chorando. Primeiro em um pranto silencioso, depois numa explosão atormentada. Inexplicavelmente, sofria mais do que quando fora ela a machucada. No passado, culpou Diego por suas dores. Hoje, porém, não tinha a quem culpar. E revoltava-se contra a vida que injustamente ameaça lhe tirar a felicidade que teve a chance, apenas, de avistar chegando num horizonte incerto.

            - Ariella, venha comigo. Você precisa lavar o rosto e se erguer. Diego vai sobreviver. – Dulce tentou afagá-la.
            - Você não entende...é injusto demais. Ele voltou pra mim, por mim, para me defender, para a minha proteção. E agora está morrendo! Por mim! Não quero! Preferiria estar eu lá! Não ele!
            - Tem razão. Não é justo. Mas quis a vida que fosse assim. Você se ergueu uma vez, quando esteve nunca cama hospitalar, muito ferida. Diego também será forte para se erguer. – A amiga falava sério, olhando em seus olhos.
           
            Ariella ouviu Dulce e seguiu o conselho da amiga e de Murilo. Era precisa manter-se forte para ajudar Diego. Ariella aceitou falar com a policial que veio hospital. Depois da queixa feita, autorizou Murilo a assumir questões burocráticas ligadas ao seguro e, na companhia de  Dulce foi para casa banhar-se. Não aceitou comer nada nem descansar.

            - Não consigo. É impossível. – Explicou.

            Dulce não questionou a amiga. Mas estava muito preocupada com ela. Primeiro porque ela estava emocionalmente muito frágil, até mesmo confusa mentalmente. Depois porque apesar de nunca reconhecer, ela tinha limitações físicas e precisava de cuidados. Uma atenção que raramente dedicava a si mesma. Quando a cirurgia de Diego teve fim, quase 10 horas depois, Ariella já estava de volta ao hospital, sem planos de sair. A conversa com o médico, no entanto, não trouxe nada de animador. As balas foram retiradas, mas o fígado e o pulmão tinham sido seriamente comprometidos. E a grande hemorragia estava exigindo o recebimento de muitas bolsas de sangue.

            - Por enquanto, tudo o que podemos fazer é esperar. Os próximos dias serão decisivos. – Afirmou o especialista. – Cada dia é uma vitória.

            Dulce e Murilo definiram que ficariam bastante tempo no Brasil. Ele colocou outro executivo para cumprir suas funções e as de Diego em Madri. E Dulce assumiu Ariella como sua responsabilidade. Murilo teve muito mais facilidade de se adaptar do que Dulce. Porque a empresa seguia o mesmo ritmo de sempre, mesmo com seu fundador entre a vida e a morte. Já Ariella estava fora do eixo. Os primeiros quatro dias passaram com ela dormindo poucas horas sobre uma poltrona da recepção hospitalar. Alimentar-se era algo raro, o que fez seu rosto afinar rapidamente. Ariella caminhava de um lado ao outro, ansiosa por boletins hospitalares, sem perceber que as horas passavam e seu andar tornava-se mais irregular conforme o cansaço crescia.

            - Você precisa se acalmar, Ariella. Por favor, vamos comer algo. – Dulce repetiu naquela manhã.
            - Nada desce na minha garganta, Dulce. Vá você. – Ela respondeu.
            - Você ouviu o médico, Diego está em coma. Pode ficar muito tempo assim. Você tem de suportar, para estar bem quando ele acordar.

            Quando. E não ‘se’, Ariella percebeu a otimista escolha de palavras feita por Dulce e sorriu. Sim, Diego sobreviveria. Era tão saudável, tinha tanta vontade de viver, de ficar ao lado dela. Não se entregaria à morte naquele momento. Não quando, enfim, tinham reencontrado um os braços do outro.

            - Vá comer, Dulce. Eu ficarei aqui. – Ela disse, sorrindo.



            Dulce foi, mas Ariella não ficou muito tempo só. Após alguns minutos solitária na recepção, enquanto rezava, ouviu um leve caminhar, muito lento, mas que ela não tardou em reconhecer. Apesar de terem se visto pouco e conhecido em um momento turbulento, aquela boa alma vinha como um anjo lhe acalentar. Anita a olhou com preocupação, mas também com serenidade. Já tinha vivido muitos momentos preocupantes na vida, tinha sofrido a morte dos pais de Diego e visto seu neto cometer erros perigosos para então sofrer com as consequências. Agora, via aquela jovem chorar mais uma vez em um hospital e percebia o quanto aquela dor machucava. Aquela moça, mais do que ninguém, tinha razões para odiar Diego, talvez para desejar sua morte. No entanto, ela estava ali rezando pela sua sobrevivência.

            - Anita...é bom vê-la. – Ariella ergueu-se para abraçar a idosa senhora.
            - Minha menina...vim apoiar meu neto e também a você, minha nora. – Anita acariciou a face de Ariella enquanto explicava o que disse. – Ao menos em parte, tive de cobrir a falta que a mãe de Diego lhe fez. Então o considero um filho.
            - Eu não sou mais a esposa dele, para ser a sua nora, Anita.
            - Ele jamais deixou de considerá-la assim. E se você está aqui, rezando por ele, é porque o seu coração deve ter a mesma opinião. Quem essa velha aqui é para discordar de dois corações enamorados?


            Ariella não ousou questionar. Apenas apertou os braços à senhora que no passado lhe estendeu a mão. Juntas elas choraram esperando que um dia o destino lhes fosse mais generoso.