domingo, 27 de novembro de 2016

Capítulo 14 parte 2

            Enquanto na Serra Gaúcha Nathan era muito bem recebido pelos Vicentin, em São Paulo, ninguém sabia onde o chefe de cozinha estava nem estava preocupado com isso. Lorenzo acreditava que tudo estava muito bem na vinícola e só pretendia passar por lá no final do próximo mês, quando algumas vistorias de vigilância em saúde ocorreriam e ele desejava estar presente. Por enquanto, pretendia cuidar de sua esposa e filhos. E isso, apesar de ser a grande prioridade de sua vida desde que conheceu Jéssica, era tarefa bastante árdua.



Com nove anos, Clara é uma menina ativa, cheia de energia e ansiosa por chegar a adolescência. Muito parecida com a mãe, já não era raro lhe ver caminhando – ou tentando caminhar – com os sapatos altos de Jéssica ou lambuzando-se em suas maquiagens. O tempo estava passando rápido demais. Ainda bem que ao menos os gêmeos ainda não se importavam de agir feito crianças. Vicente e Cecília estavam com quatro anos e não podiam vê-lo sem que alguma brincadeira começasse logo depois. Como Jéssica costumava dizer, eles sabiam que o pai jamais se negava a brincar, por isso logo encontravam algo para fazer.



Não que ele estivesse reclamando. Ao contrário, aos 49 anos, se tivesse de abrir mão de qualquer atividade profissional para dar atenção à família, o faria sem nenhum sofrimento. Porém, com apenas um pouquinho de esforço ele e Jéssica conseguiam conciliar e, ainda assim, ter momentos a dois. Eles trabalhavam em horários alternados e que possibilitavam tempo livre quando as crianças estavam fora da escola. Jéssica tornara-se braço de confiança de Emily na administração dos restaurantes, já que a chefe de cozinha por muitos anos teve de administrar dois estabelecimentos sozinha. Agora, com a volta de Nathan ao Brasil as coisas se acalmaram e tanto Jéssica quando Emily agora tinham mais tempo. Além disso, tendo Emily e Jonas morando muito perto, eles conseguiam conviver bastante com Bernardo e Vida. Ótimo já que os primos tinham quase a mesma idade.



Para a vida ficar perfeita, Jonas e Lorenzo concordavam que só faltava não precisarem ter a família tão distante. Ambos sentiam muito a falta dos pais, avós e de Milena. E as crianças perguntavam muito pela prima Maria Fernanda. Quanto a isso, porém, nada podiam fazer. A vida de seus antepassados, muito mais do que apenas os negócios. Se sugerisse ao se pai vender a vinícola e vir para São Paulo ele o acusaria de estar enlouquecendo. E estaria certo. Porque ele mesmo não conseguia imaginar-se totalmente fora do campo. Era a Vicentin que oxigenava sua vida e os momentos em que levava toda a família para sul eram os seus dias mais felizes, junto de Jéssica, dos filhos e sua terra natal.

- Tudo bem? – Jéssica perguntou, vendo-o pensativo. – Você está muito quieto.



- Sim. Eu liguei a pouco para Jonas. Eles veem jantar aqui. Tudo bem, não é?
- Claro. Mas por que está tão quieto? Não é por um convite para jantar. Conheço você. – Ela insistiu.
- Sim, verdade. – Ele sorriu antes de puxar a esposa para um beijo. Às vezes até ele surpreendia-se com a relação que construíram. Mesmo tão jovem, Jéssica conseguia lê-lo e compreende-lo como ninguém mais. – Conhece mesmo. Estou preocupado com Milena. Sinto que minha irmã não é feliz. E queria fazer algo por ela. Mas Milena não se abre.

Jéssica tinha as próprias conclusões da vida da cunhada. Emily já tinha lhe confidenciado algumas coisas e, ao que tudo indicava, Milena estava mais próxima da felicidade do que já contara aos seus irmãos. Na véspera Emily lhe disse que passaria mais tempo no Calderone na próxima semana porque Nathan viajou sem prazo para voltar. Jéssica desconfiava que Milena tinha a ver com isso, mas não se intrometeria nas escolhas da cunhada.

- Milena sabe o que faz de sua vida. Dê-lhe espaço. É o que ela necessita. – Foi tudo o que Jéssica afirmou sobre o assunto. – Porque não convida Rafael e Melissa para também vierem hoje a noite e faz aquele churrasco que há dias me promete?
 - Ele não pode...parece que estão com uma convidada em casa. Mas, se minha mulher quer churrasco, eu providencio. – Lorenzo confirmou.

Jantar fora estava, por enquanto, fora dos planos da família Gomide. É que, a partir de agora, sempre que Isabely estivesse com eles, ela seria a prioridade. E nessa difícil adaptação, não era hora de levar a menina para festas familiares, cheias de crianças sorridentes por terem o carinho de pais e mães dedicados. Naquele momento, após uma noite de muita agitação, a família tomou café unida. Surpreendeu Melissa e Rafael o clima triste. Inicialmente, apenas Tális entendeu o que se passava com Isa.



- O que querem fazer hoje? – Rafael perguntou. – Podem aproveitar a sala de jogos do condomínio ou podemos sair.
- Se vocês quiserem, podemos almoçar fora e depois eu os deixo ir aonde desejarem. – Melissa complementou.

Mas Isabely, muito cabisbaixa, não se importava diante de qualquer resposta.

- Pode ser mãe. – Tális concordou. – A gente joga agora e depois vamos almoçar. Quero comer sushi. Posso?
- Só se Isa gostar ou quiser experimentar. – Rafael respondeu.
- Você gosta Isa? É bem gostoso. E tem doce também!
- Nunca comi...mas pode ser sim. – Ela não esboçou muita animação com a ideia.
- Faremos assim, Isa vai olhar e provar, se não gostar, ela pede outra coisa. Não se preocupe Isabely.
- Obrigada, dona Melissa.
- Só Mel, Isa. Agora vão brincar.

Melissa ficou preocupada com aquele comportamento. Porque fora um sábado lindo, de alegria e diversão. E assim deveria ser o domingo. Porém, Isabely parecia tomada por uma profunda tristeza. Enquanto os adolescentes se divertiam na parede de escalada da sala de jogos, Mel e Rafael conversavam. Estavam satisfeitos com aquela primeira aproximação, mas ansiosos por conhecer melhor a menina que, sonhavam, um dia seria sua filha.



- Temos que dar um tempo para ela. Não deve ser fácil. – Rafael lembrou à esposa.
- Eu sei.
- Então porque essa carinha triste? Quase tão tristonha quanto a de Isabely?
- Por que eu sou ansiosa. Sempre fui uma garota mimada que pensa poder ter tudo o que deseja do dia para a noite. Não é isso que todos pensam ao meu respeito?
- Só os que não a conhecem como eu. – Rafael não tardou a contradizer a esposa.

A vida de modelo trouxe a Melissa muitas coisas boas. E ruins na mesma proporção. Essa é uma carreira que não se escolhe, acontece. E depois que surge, dificilmente se consegue parar porque a ânsia por alcançar as passarelas internacionais e desfilar para as grandes grifes segura as jovens profissionais como se fossem as garras de um animal selvagem.
No caso de Mel, fazer carreira não importava pelo dinheiro. Era apenas o sonho de uma realização pessoal. Trouxe dinheiro, é claro. O que fez com que a menina rica pudesse dispensar o dinheiro de família. Mas, acima de tudo, fez com que a menina rica aprendesse a se virar sozinha entre um trabalho e outro. Porém, trouxe holofotes e críticas quando ela ainda era muito jovem. Chamada de fútil por ser uma consumidora assídua de grifes caras e comprar peças para logo depois desfazer-se. Dita como inconsequente depois de, aos 19 anos, bater o carro estando alcoolizada. Muitos ainda mantinham aquela Melissa na memória, mesmo mais de duas décadas tendo passado. E ela ainda mantinha o ressentimento do que leu sobre si nas revistas.

- Você é uma mulher decente, forte, digna e linda. A minha mulher e a mãe do meu filho. O resto é tudo inveja de quem não consegue ser como você.

Um sorriso surgiu em seus lábios. Ele sempre conseguia isso. Conheceu Rafael quando tinha 24 anos e estava desfilando para grandes marcas. Porém, há 10 anos rodando o mundo a trabalho, ela já se sentia um pouco cansada daquela vida andarilha. Ele soube conquistá-la. Mandou flores que ela guardou com carinho. Depois enviou chocolates. Esse seu agente a proibiu de comer. Afinal, os centímetros na cintura eram inimigos de quem modelava. Quando ele lhe telefonou, porém, afirmando que queria levá-la para jantar, não soube dizer não.

- Eu nem me importo se você escolher um lugar que só tenha saladas e grelhados. – Ele ainda brincou.

Comeram massa com frutos do mar. E só por isso já seria uma noite inesquecível para ela. Há meses não comia massa, muito menos após às 20h. Mas qual a mulher que conta calorias quando está diante do homem de sua vida? Ela esteve radiante como nunca antes. Acabara de encontrar o homem capaz de virar-lhe a cabeça e fazê-la esquecer de tudo. Seu agente foi para ela se afastar porque ele tiraria sua concentração profissional. Estava certíssimo. As passarelas já não importavam. E quando ele a pediu em casamento, jogou a carreira para o alto e tornou-se a esposa de Rafael Gomide. Arrependimentos aconteceram no decorrer dos anos, momentos isolados e saudosos, mas que eram descanteados quando olhava para Rafael e via em seus olhos o mesmo sentimento daquele dia no restaurante.

- Eu te amo tanto. Não sei como me aguentou por todos esses anos...mas sei que tenho uma sorte danada! Vou tomar um banho.
- Vai lá. Estarei no escritório.


Nos momentos em que ficaram sozinhos, Isabely contou para Tális a razão e sua tristeza. Na verdade ele já imaginava. É que depois de ser muito reticente em aceitar a atenção dos Gomide, ela descobriu que era muito legal estar ali, tendo jogos, diversão e muita comida gostosa. Agora ela se sentia dividida e um tanto culpada. Queria estar com Marta no abrigo, tomando o café da manhã só com leite e pão, sem todas aquelas delícias, mas com aqueles que realmente se importavam com ela. Por outro lado, quando voltasse para lá, sentiria falta daquele lugar.

- Você vai voltar em vários finais de semana. Não precisa ficar chateada. – Tális arriscou.
- Eu sei. É que...sinto falta deles também. O lar não tem sala de jogos, mas é a minha casa.

Eles não mais conversaram. E Isa disse que voltaria para a casa enquanto Tális ainda guardava algumas das coisas que usaram. Ela entrou na casa e chamou pela mãe de seu amigo. Ela não estava na sala nem na cozinha. Então abriu a geladeira, pegou um copo de suco e subiu as escadas. Queria ir para o quarto no qual dormiu, mas, ao passar no corredor, viu que a porta do quarto de Melissa e Rafael estava aberta. Um tanto tímida, espiou e viu uma grande cama no centro do cômodo. De um lado duas portas fechadas. Do outro uma poltrona que aparentava ser bem macia e uma penteadeira, daquelas dignas de uma princesa cheia de coisas de beleza, bijuterias e joias. Não resistiu a entrar e olhar de perto.
A penteadeira branca é alta e com um grande espelho. Sobre ela, numa maleta, três andares de cosméticos. Do outro lado, vários porta joias com colares, brincos e anéis. Nunca tinha usado nada daquilo, nem tinha vontade. Eram coisas que só meninas bobocas usavam para tentar ser o que não eram de verdade. Mas ela pegou um batom apenas para olhar mais de perto. Depois a pera de uma pulseira lhe chamou a atenção e ela a colocou sobre o pulso. Mas era apenas curiosidade não vaidade.

- Deve ser cara...ela não usa nada barato. – Disse, um tanto encantada com o brilho da pedra esverdeada.
- Na verdade eu uso sim. – Mel afirmou, saindo do closet e indo ao encontro de Isabely. – Mas essa é sim um joia, presente de Rafael no nosso décimo aniversário de casamento. Ficou bem em você.
- Desculpe pegar. – Isa devolveu ao lugar. – Eu não ia roubar nada. Só estava olhando.



- Eu não disse que roubou. Jamais diria. Você está aqui porque confio em você, Isa. Não posso lhe dar essa pulseira, porque tenho muito carinho por ela. Mas podemos escolher uma que combine com você. O que acha?
- Não...eu não gosto dessas coisas...é de mulherzinha. Desculpa aí.
- Tudo bem...acho que você vai mudar de ideia no futuro. – Mesmo tão diferente dela na infância, Isa fez Mel lembrar de si. – E maquiagem? Também é só de mulherzinha ou você aceita que eu passe um batom cor de boca em você?
- Porque você gasta dinheiro com um batom cor de boca?
- Boa pergunta...vamos ver se você descobre depois de passarmos. Se não gostar, a gente tira, está bem?



Elas não tiraram, nem mais discutiram. E quando saíram para almoçar havia uma cumplicidade diferente entre as duas. Assim como nascera uma nova Melissa ao encarar as passarelas, agora nascia uma diferente Isabely ao encarar a vida real. A adolescente ainda não sabia, mas estava prestes a descobrir em Melissa o modelo de mulher que lhe faltava até então.

Aquela manhã familiar foi bem diferente da vivida por Raul. Depois de acordar diante de uma jovem com quem passou momentos agradáveis, mas que, na verdade não o conhecia de verdade. A noite foi agradável. Começou com uma sessão de cinema em que nenhum deles importou-se com a história, continuou num bar onde comeram rapidamente e culminou em sexo quase profissional. Não que tivesse algo contra o sexo pago, já fizera uso dele algumas vezes. Porém, naquele caso, apesar de satisfatório, o encontro casual pareceu ter deixado um sabor amargo. Não foi pleno. Não o atingiu completamente deixou-o com aquela estranha sensação de vazio. Não da cama vazia, mas, bem mais grave, de uma vida cheia de espaços não ocupados.

- Vou ver você qualquer dia desses? – A bela garota lhe questionou ao procurar pela calcinha pelo chão do quarto.
- Cíntia...eu...
- É Cibeli. – Ela corrigiu, já menos sorridente.
- Cibeli, claro. Ato falho. A resposta é não. A noite foi boa e tal...mas eu não vou te ligar e...vou ignorar qualquer mensagem de WhatsApp sua que chegar então...adeus.

A sinceridade exagerada já lhe tinha criado problemas em outros momentos da vida, mas ele não entendia qual o objetivo em fazer combinações que nenhum deles estava a fim de cumprir. Ele não iria ligar e ela não tinha nenhuma razão para acreditar no contrário. Afinal, ele esteve desconcentrado a noite toda...quase toda. Não conseguiu se concentrar desde o momento em que viu Márcia e Joaquim, no mesmo cinema, num horário muito tardio para sessões infantis.



Não gostou daquilo. Ficou constrangido por ela ter lhe visto com a garota. E agora, sozinho no apartamento, estava se perguntando por quê. Afinal, era um homem solteiro, que não devia explicações sobre com quem se relacionava. Mesmo assim, a ideia dela vê-lo com  Cíntia...ou Cibeli ou quem fosse o desagradava.

- Vou ligar para você ainda hoje. Deve estar pensando que sou um fanático pegador de menininhas. – Assumiu um compromisso para si mesmo.

O telefone de Márcia tocou quando já era perto do meio dia e ela estava organizando o guarda-roupa de Joaquin junto dele. Afinal, o menino vinha crescendo rápido e várias peças já não serviam ou agradavam o filho. A mente dela, porém, ainda estava na noite passada. Raul e aquela garota, tão mais jovem que ela, o desagradava muito. Quando viu o nome dele no celular sentiu raiva e não atendeu.

- Vá ligar para a sua garotinha! – Falou para si mesma.

            Só na terceira ligação é que ela atendeu. E, mesmo assim, o incômodo estava gravado em sua voz.

            - Achei que você teria algo melhor para fazer num domingo pela manhã ao invés de incomodar suas clientes. Aliás...a garotinha já voltou pra casa? Os pais devem estar nervosos. O que quer?
            - Está brava porque me viu no cinema com uma garota? Você é que não deveria estar lá naquele horário.
            - Por quê? Mães de família não podem ir ao cinema?
            - Na sessão da meia noite com o filho não deveriam ir. Desculpe se preocupar-me com você e seu menino é muito antiquado. – Ele respondeu assustado com aquela mulher que por vezes mais parecia uma tempestade furiosa.
            - Eu vi o quanto você é antiquado e conservador! – Acusou Márcia, mesmo sabendo que ele nada tinha a lhe explicar. – Desculpe! Eu não...não tenho o direito...
            - É, não tem. Mas eu entendo que você tenha estranhado o que viu ontem. Eu saí com a garota, mas não é nada sério.
            - Não tem o que me explicar Raul. Você é solteiro e faz o que bem entender então. Diga logo o que tem a dizer e vamos acabar com essa conversa ridícula. Porque me ligou?

Ele não sabia o que dizer, mas aproveitou para dar um aviso sério.

            - Eu só queria avisar que...que vou viajar uns dias. Visitar minha filha. Mas, quando voltar queria que almoçássemos para conversar. Afinal...sou seu advogado, não é verdade?
            - É verdade. Está bem. Nós marcamos daí...obrigada por avisar.

            Ela desligou e ficou olhando ao telefone. Deveria ter sido a conversa mais estranha que já teve com um homem. Comportou-se feito uma namorada ciumenta. E agora, também não gostava do sentimento que a viagem dele lhe trouxe. De repente, sentia-se como se ela fosse uma menininha agindo de forma desastrada por não se segurar frente ao primeiro amor.


domingo, 20 de novembro de 2016

Ariella: capítulo 23


            Com uma recuperação lenta, porém, surpreendentemente tranquila, Diego acalmou os corações mais aflitos. Enquanto ele passou a ficar a cada dia mais acordado, disposto e com o pensamento rápido que lhe era comum, sua família, amigos e contatos profissionais foram se tranquilizando. O namorado, neto, sócio e chefe havia definitivamente voltado do mundo dos mortos.
            Felizes todos ficaram. Mas ninguém, nem mesmo Ariella, experimentou uma sensação tão doce quando Anita. Apesar de ter sido muito dura com ele nos últimos anos, ela se apiedava do sofrimento do neto. E a possibilidade dele, mais uma vez, não conseguir rever de forma plena aquele amor a corroía por dentro. Mais do que o risco de vida ou de ficar com sequelas, lhe preocupava a temeridade de viver sem afeto, algo que Diego já experimentara por anos o bastante.



            - Meu menino. Enfim posso vê-lo de olhos abertos. – Ela disse quando puderam conversar.
            - Vovó...fico feliz em vê-la. Ariella me disse que se mudou para o Brasil por minha causa. Não precisava.
            - É claro que precisava. – Ela lhe afagava o rosto ao falar. – E pretendo ficar até que você esteja completamente recuperado. Não que viver nesse paraíso seja algo difícil.

            Diego observou a idosa que trazia sentimentos contraditórios ao seu coração. Era bom vê-la. Assim como era delicioso receber um afago daquelas mãos enrugadas pelo tempo. Mas também era muito sofrido. O fazia lembrar de dias amargos, quando a mãe havia desaparecido e o pai, quase que como ela, pouco era visto. Anita era tudo o que ele tinha e, mesmo nela, percebia apreensão. Depois entendeu que ela tentava distrair a única criança da família de todos aqueles absurdos impostos pelos adultos. Enquanto ela brincava com o neto na pracinha, seu filho abria mais algumas garrafas de bebida no escritório, tentando esquecer-se da esposa infiel que havia enterrado. As memórias do passado trouxeram medos do presente à conversa.

            - No tempo em que fiquei dormindo, vovó, como Ariella esteve. Ela teima em me proteger de tudo quando penso que hora dela ser protegida.

            Em grande parte, a idosa concordava com Ariella. Alguém que leva tiros e passa semanas adormecido não deve ser bombardeado de problemas assim que abre os olhos. Porém, naquela circunstância, Anita pensou se fazer necessária uma atitude drástica. Seu neto, agora, enfim poderia assumir as responsabilidades familiares pelas quais ansiava há tantos anos. Não podia lhe privar informações que poderiam por Ariella e aquele frágil bebê em risco.

            - Foram dias difíceis, meu menino. – A idosa afirmou.
            - Conte-me, por favor.



            Anita puxou uma cadeira e começou do início, com calma, como toda a conversa de neto e avó deveria ser. Falou do que a polícia investigava e do que fora divulgado na mídia brasileira e espanhola a respeito do caso. Depois chegaram ao assunto que mais interessava a Diego. As informações oficiais e as fofocas para ele pouco importavam, queria mesmo era saber da mulher amada e dos riscos que ela vinha correndo. Anita afirmou que segurar Ariella não era tarefa fácil e que, diante de tantas responsabilidades e coisas com as quais se preocupar, seria impossível não correr alguns riscos.

            - Você viu como está linda, novamente ruiva?
            - Sim, linda. – Diego concordou. – Mas cansada. Ela tenta disfarçar, mas noto o cansaço marcando seus olhos. O rosto está mais fino. E ela está mancando mais do que de costume.
            - Não foram semanas fáceis para ela. O início de uma gestação sempre desgasta a mamãe. Imagina quando o pai do bebê está em coma e, ainda por cima, ela tem de viajar a trabalho. É natural que esteja cansada.
            - É...eu entendo. Só não me conformo. – O fato de Ariella ter enfrentado problemas enquanto ele dormia o incomodava muito. – Mas é bom que ela tenha ficado fora do Brasil a maior parte do tempo e cercada por pessoas da sua confiança.

            Ele não tinha dúvidas de que aquela invasão tratou-se de algo muito além de um assalto frustrado. E não precisava da polícia para lhe afirmar que o plano era na verdade uma tentativa de sequestro. Isso sua equipe já havia descoberto antes dele vir para o Brasil. Agora, porém, ele duvidava de uma das próprias deduções. Logo no início, quando seu coração foi acelerado pela notícia de que uma funcionária de Ariella tinha envolvimento com o crime, pressupôs tratar-se apenas de um crime movido pela ganância.
            Ao abrir os olhos, no hospital. E deparar-se com Afonso ameaçando e destratando a própria filha, seu pensamento mudou. Mesmo com o pensamento nebuloso devido ao tempo adormecido, assim que saiu do sono entendeu que, apesar da ganância estar presente naquela equação, ela parecia infimamente menor que o desejo de vingança. Essa motivação, tão conhecida por ele e que o levou até Ariella 11 anos atrás, estava nos olhos de Afonso. Depois dela o ter excluído de sua vida ele quis lhe tomar o dinheiro que ela não oferecia de bom grado. E ao saber que Ariella fora capaz de perdoar o ex-marido e ter mais uma vez sido enxotado sem receber da filha o mesmo tratamento, resolveu tomar à força o dinheiro.

            - Aquele homem vai feri-la, vovó, vai tentar machucar Ariella. Por isso, assim que ela se estabelece novamente no Brasil após cumprir seus compromissos profissionais no exterior, ele veio atrás dela. Ele me odeia, agora carrega um grande rancor da própria filha. E isso só fará piorar quando Afonso souber que Ariella espera um bebê. Isso me assusta.
           
            Antes de responder, Anita observou seu neto. Ainda conseguia surpreender-se com a clareza de raciocínio que ele conseguia impor numa situação tão difícil.

            - Tem razão, meu neto. Mas cuidado ao fazer esse tipo de acusação, por mais razão que tenha. Lembre-se sempre de que Afonso é pai dela. E por mais dura que Ariella seja, lá no fundo, nutre sentimentos por ele. Tenha cuidado para não permitir que Afonso se coloque entre vocês novamente.
            - É tudo que não quero. – Ele tratou de afirmar.
            - E se fizer mal à ela mais uma vez, eu mesma lhe darei uma boa surra. – Brincou a idosa.
- Hoje sei que a amo e reconheço que sou o homem mais sortudo no mundo por ela ter perdoado.




Anita apenas se retirou porque seu neto tinha mais uma visita a receber. Murilo conseguiu esperar alguns dias, a pedido de Ariella, para integrar Diego às rotinas da empresa. Por seu gosto esperaria mais, porém os problemas se acumularam – e muito – na última semana e se continuasse postergando decisões importantes, causaria danos sérios e os quais Diego não aceitaria fácil.

O cumprimento dos velhos amigos, tão íntimo quanto irmãos, foi longo e cheio de sentimento. Já tinham se visto nos últimos dias, numa visita em grupo, numa espécie de boas vindas coletivas na qual tanto Ariella quanto Dulce mais pareciam escudeiras de seus homens. Agora era um momento diferente, menos afetivo e mais direto. E no qual era inevitável trazer assuntos sérios de volta.

- Fale, meu amigo. Parece que está engasgado em coisas para me dizer. – Diego brincou. Depois de ter voltado do mundo dos mortos, nada poderia ser tão grave. – Não me diga que em poucos meses meus hotéis faliram e eu estou completamente sem dinheiro e pronto para recomeçar do zero. Pela sua cara, soa como algo assim.
- Não. Nada tão grave...mas algumas coisas sérias ocorreram, Diego.

Minutos depois Diego já sabia da crise na empresa, alicerçada não numa administração ruim, mas nos boatos e na insegurança que seu estado causaram. Isso poderia ser ajustado em breve. Preocupou-o mais um dos empreendimentos, que decaiu bastante recentemente e merecia uma visita pessoal...caso ele conseguisse sair da cama.

- Ok, Murilo. Mas nada disso explica o seu olhar de preocupação. Fale. – Diego insistiu.

Havia entre os dois uma lealdada sem tamanho, que já tinha sido testada no passado e vencido barreiras intensas. Como quando Murilo assumiu o relacionamento com Dulce, apenas da guerra declarada entre eles. Nada fora capaz de minar a amizade nem a parceria nos negócios. Murilo valorizada o tino para negócios que Diego demonstrou desde muito jovem e por isso quis seguir seus passos. Já Diego aprendeu a valorizar o empenho daquele menino que, vindo da classe social mais baixa, mereceu cada degrau vencido. Agora, porém, Murilo o olhava como quem cometeu uma traição.

- Você estava...mal, muito mal. E eu estava com a corda no pescoço, com medo de deixar a crise se alastrar. Precisava liberar algumas coisas e...
- Vá direto ao ponto, Murilo. Nos conhecemos há tempo demais para enrolar.
- Eu contei para Ariella que ela tem parte da empresa. Precisava que ela se responsabilizasse por algumas coisas enquanto você estivesse fora e, por isso, traí sua confiança. Peço desculpas.

Diante de tudo aquilo, de tantos temores, Ariella saber que era sua parceira também nos negócios, mas em toda a vida, era pouco para gerar temor ou irritações. Talvez, diante da maturidade trazida pelas mudanças e problemas, ele tenha entendido que o importante é ser feliz, mesmo que nem sempre se conquiste tudo como deseja.

- Ela já sabe que é dona do meu coração, Murilo. Saber que é dona de parte da minha empresa não é nem de perto tão importante. Pode tranquilizar sua consciência. Agora, vamos analisar os números das unidades que, esses sim me preocupam.



Quando mal tinha acabado de verificar as duas unidades espanholas, Murilo e Diego foram interrompidos por uma sorridente Ariella. Logo, com todo o seu charme, mas, também, de forma incisiva colocou fim no assunto empresarial e deixou claro que precisava do marido para ela.

- Você já se esforçou demais. – Decretou.
- Você é quem manda. – Diego não ousou questionar, tamanha era a felicidade em seu coração. – Tem notícias sobre a minha alta.
- Logo. Foi o que o médico me garantiu. Não seja apressado.


3 semanas depois...

domingo, 13 de novembro de 2016

Vida Roubada - capítulo 28


O tempo curto pareceu uma eternidade. Minutos não passaram como deveriam, horas arrastaram-se como se cada instante fosse e voltasse inúmeras vezes apenas para deixá-lo ainda mais irritado. No fundo, não era com o tempo o seu desgosto. Ou, talvez, fosse devido a sua incapacidade de voltar nos erros cometidos. Um erro de oito meses atrás agora tornava-se uma realidade complicada e da qual ele se escondeu vergonhosamente nos últimos tempos. Aquele erro fazia com que fosse obrigado a abandonar a esposa na reta final de uma gestação complicada e rodeada de problemas familiares e profissionais para cumprir sua inadiável obrigação de ver seu outro filho nascer.

- Isso não está se alongando demais? – Perguntou à médica obstetra que acompanhou Alejandra durante toda a gravidez.
- Não estamos fora da normalidade, Miguel. Na verdade, três horas de trabalho de parto é até mesmo uma situação tranquila. Podemos dizer que sua filha é uma menina apressada. – Drª Margô afirmou. – Acredito que em meia hora ela nasça.


Então Miguel percebeu que não esteve ali por tanto tempo. A verdade é que se sentia tão constrangido, tão culpado e tão deslocado que não conseguia participar daquele importante acontecimento. Talvez fosse assim para todo homem que se via numa sala de parto. Ele, mesmo sendo médico, e por isso conhecedor do ambiente hospitalar, sentiu-se oprimido naquela sala cirúrgica diante de uma mulher que sofria e o ignorava sumariamente. Parecia que agora, em seu momento de glória maternal, Alejandra encontrara a forma perfeita de se vingar de cada uma das vezes que fora ignorada.



Era um sofrimento insuportável assistir o parto, mas não participar dele, nem mesmo da forma um tanto inevitavelmente desnecessária que cabia aos homens. Tocar as mãos de Alejandra, acariciar seu rosto ou falar qualquer palavra de incentivo poderia não servir de nada ao parto, mas o ajudaria a se manter mais calmo. Mas qualquer aproximação era rechaçada por Alejandra. Ao que parecia, a permissão para que ele estivesse ali serviu muito mais como forma de castigo do que como bandeira branca em sinal de paz. Somente quando ouviu Alejandra soltar um grito mais forte é que ele realmente acreditou nas palavras da médica e percebeu que realmente a filha estava há poucos instantes de vir ao mundo.

- Isso, descanse agora. Mais alguns empurrões e ela nascerá. – Margô disse, sorridente e segura como apenas algum que já passou por isso centenas de vezes poderia.
- Miguel...se aproxime. – Alejandra pediu com uma voz mais firme do que ele esperava.
- Estou aqui.
- Você acredita que ela é sua filha?
- Não é hora para discutirmos isso, Alê. – O assunto muito íntimo, trazido à frente de estranhos, num momento de estremo desgaste físico e emocional, incomodou Miguel.
- Quiero una respuesta. Sí o no. – Na língua mãe dela e tão comum a ele, Alejandra exigiu uma resposta direta. Com a testa úmida e os cabelos molhados escapando por uma touca já caindo Alejandra mostrava-se sem paciência.
- Sí. – Miguel confirmou, sendo ao menos parcialmente sincero. Não era hora para dizer o contrário. Sim, é minha filha. - Es mi hija.
- Quero chamá-la de Catarina. Você concorda? – Alejandra perguntou, esquecendo as desavenças do passado.
- Catarina é um lindo nome. – Miguel concordou.




            Catarina veio ao mundo minutos depois, sem exigir mais nenhum esforço de sua mãe, contrariando a expectativa da médica. Para Miguel, soou como se a menina estivesse apenas esperando seus pais selarem a paz, mesmo que deixando uma série de coisas por dizer.

            - Parabéns, papais. Catarina é uma linda menina. – Margô afirmou.
            - Obrigada. – Miguel respondeu de forma automática, vendo a filha chorar bravamente e ser acalentada por sua mãe antes de ser levada pelo pediatra. Ela nasceu antes do tempo e precisava de cuidados. – Alê, parabéns. Eu...não fui um bom marido pra você e...acho que também falhei bastante como ex-marido e como pai. Mas eu quero que tenhamos uma boa relação por Catarina.
            - Elizabeth é uma mulher de sorte. Ela conseguiu de você o que eu sempre quis...Catarina não foi um acidente Miguel, não pra mim, pelo menos. Eu queria você de volta...não... na verdade eu queria esse novo Miguel de volta, não o com quem eu me casei. Eu cobicei o marido de Elizabeth, não o meu ex. E achei que um bebê o traria para mim.
            - Esse Miguel, Alê, só existe por Liz. Ele morreria se eu me afastasse dela.
            - É. Agora eu vejo isso. Você nunca me amou. – Essa era uma verdade tão dura quanto real. – Catarina é sua, mas ela não veio por acaso. Eu sabia do risco de engravidar naquela noite. Queria usar o bebê para destruir o seu casamento. Odiava Elizabeth por conseguir ser feliz com você!
            - Vamos deixar isso no passado Alê. Catarina é o nosso presente e eu desejo ser um bom pai para ela, mesmo estando divorciado de você. Espero que consiga lidar com isso.
            - Não quero mais viver assim, sozinha e em guerra com todos. Vou voltar para a Espanha e retomar minha vida.

            Era algo que faria bem para sua vida conjugal, pensou Miguel, mas que, lá no fundo, lhe desagradava. Afinal, como cumprir com suas obrigações de pai tendo Catarina do outro lado do mundo? Por outro lado, ele não se sentia no direito de pedir nada.

            - Não decida isso agora. Você acabou de dar a luz, Alê. Você e Catarina têm tempo para decidir onde querem morar. Eu gostaria que fosse aqui no Brasil.

...

            Elizabeth acordou com a dor nas costas que costumava acompanhar todas as gestantes em fim de gravidez. Sobretudo aquelas com o corpo inchado além do aceitável e a pressão arterial permanentemente alta. Por isso, ao abrir os olhos, ela não se surpreendeu nem um pouco. Havia trabalhado intensamente junto de sua equipe, analisando os dados que por todos esses meses estiveram escondidos, mas que agora vieram à luz graças a Beatriz.
            Tanto trabalho fez que já tivessem um plano de ação completo. Rebeca estava comparando cada informação nova com a atual linha de investigação. Provavelmente, agora surgiriam novas pontos soltas. De pronto, um nome lhe chamou a atenção.   

            - Preciso revisar o primeiro depoimento do Kara Machado. Na íntegra. – Ela pediu à colega de polícia, ao revisar um arquivo de Beatriz. Na verdade, uma espécie de check-list que ela deixará, apontando assuntos que precisava esclarecer no futuro. – Eu já li esse nome antes. E acho que foi Kara quem o citou.
            - Kara Machado? – Tom questionou puxando pela memória. – Uma das escravas sexuais morta pouco depois de ser libertada?
            - Essa mesma. Ela citou um tal de “Otto” que seria importante no comando dos negócios. Esse nome também aparece nas anotações de Bia.  – Liz respondeu. Após anos lidando com esses casos, os quais ela tinha certeza estavam ligados, chegava a lembrar de cada frase registrada nos depoimentos.
            - Cuidado, Liz. – Tom argumentou. – Pode ser uma pista falsa ou coincidência. Beatriz investigou o assunto aqui em São Paulo e Kara foi resgatada de uma boate na Rússia. Dificilmente elas cruzariam com o mesmo homem.



            - É, dificilmente. – Mas Elizabeth costumava acreditar que coisas difíceis ocorriam. – Antes de morrer naquela suposta overdose, conversei com Kara. Sei que ela escondeu muita coisa por ter medo, o que depois confirmamos haver fundamento. Mas ela comentou algumas coisas importantes. Ela citou o nome Benitez e ela me disse que o negócio ia além da Rússia. Ela conheceu esse “Otto” e o temia. Beatriz o descreve como um homem bonito e escorregadio, daqueles que cativava suas vítimas para atraí-las.
            - Os perfis são similares. – Opinou Rebeca. Ela aprendeu que duvidar do sexto sentido de Liz normalmente era perda de tempo.
            - Vamos procurar outras vítimas resgatadas nessa boate, talvez alguém confirme o que Kara afirmou e nos dê uma descrição física desse homem. – Liz pediu. Por experiência própria, ela sabia que na cama, com uma mulher que consideravam sem cultura, os homens falavam demais. – Vamos encontrar Otto. Se ele tinha funções aqui e na Rússia nesse esquema, meu palpite é que Otto levava as brasileiras para lá e as inseria na prostituição. Talvez não num lugar de alto nível como a Noxotb, mas numa casa mais simples e barata. As mulheres que se destacavam e serviam para os clientes exigentes ele encaminhava para o ponto classe A.
            - Faz todo o sentido. – Tom concordou. – Vamos conversar com Patrícia. Ela pode acrescentar algo.

            Quando o cansaço tomava conta de todos e o relógio mostrava que o amanhã já chegara, a equipe impediu Elizabeth de fazer uma nova remeça de café e pôs fim ao trabalho. A grávida precisava dormir. Após negar todos oferecimentos de Beca para ali ficar, ela colocou os colegas para fora, tomou banho e se deitou. Deixou a imagem de Miguel junto de Alejandra fora de sua mente para que o sono não se fosse, abrindo espaço ao sofrimento. O ciúme do marido ainda ardia em seu peito. E a certeza daquela traição seguia como uma ferida aberta por baixo de um curativo bem feito. Podia sorrir para Miguel, deliciar-se em seus braços, sonhar em passar a vida toda com ele, mas, ainda assim, sofria ao imaginá-lo sendo pai do filho de outra.
            Pensar em Beatriz, porém, também não evocava sonhos melhores. Nada poderia ter lhe feito mais feliz do que a certeza da irmã estar viva. Mas aquele mistério lhe feria. Até agora Beatriz não respondera sua mensagem nem ligou para o número de celular seguro que lhe passou. A ideia de ouvir a voz e Bia novamente fazia seu coração disparar. Apenas ainda não entendia porque ela não procurara uma embaixada brasileira, seja lá onde estava, se tinha liberdade o bastante para usar telefone e internet. Todas essas preocupações a lhe tumultuar o sono devem ter colaborado para aquela dor nas costas particularmente ruim.

            - Bom dia, Benício. Vamos tomar café da manhã? Mamãe está com muita fome, meu bebê.

            Somente quando chegou na sala foi que Elizabeth percebeu que a casa não estava exatamente como na madrugada. A bagunça feita por ela e a equipe policial fora arrumada. Todos os copos e xícaras espalhados pelo apartamento agora estavam limpos e escorrendo sobre a pia. E sentado à mesa, com o rosto apoiado nas mãos estava Miguel, cabisbaixo demais para quem acabara de viver um momento tão importante.

- Tudo bem? – Liz perguntou. – Limpar a casa pareceu mais agradável do que dormir ao meu lado? Eu estou grande, mas ainda há espaço para você na cama.
- Estava sem sono então resolvi adiantar umas coisas. Assim você não tem de lavar louça. Como se sente? Alguma novidade de Bia?

Elizabeth observou Miguel antes de falar. Ele tinha os olhos cansados e as roupas amassadas. Estava visivelmente precisando de banho e repouso. Porém, parecia perdido em sua própria casa e sem saber como chegar ao chuveiro. Provavelmente, fugira da cama para não precisar falar do único assunto que realmente o interessava naquele momento.



- Nada de novidade. E você? Acho que tem coisas para me contar.
- Você não precisa ouvir sobre isso Liz. Te causa sofrimento. Eu compreendo e vou me manter dis...
- Me causou sofrimento você encher a cara e dormir com sua ex. O fato de terem gerado um bebê foi apenas um detalhe com o qual terei de me acostumar. É sua filha, Miguel. Não posso ignorá-la. Por isso, comece a falar. Você tem motivos para estar empolgado.

            Miguel pareceu surpreso com a reação da esposa, o que a feriu um pouco. Afinal, imaginava que ele tinha uma visão um pouco menos cruel ao seu respeito depois de tanto tempo juntos. Para ela é assim, se o perdoou a vida tinha de seguir em parceria. A surpresa de Miguel passou e, no instante seguinte estava contando a respeito de Catarina, seu choro estridente, a pele delicada, os traços ainda muito jovens para dizer claramente se trazia ou não alguma semelhança com os Benitez. Contou, também, da conversa surpreendente com Alejandra e da confissão de que tudo fora planejado para pôr fim no casamento deles.

            - O que não tem remédio, está remediado. Vamos seguir a vida, Miguel. Ao menos agora ela viu que estava errada e nos deixará em paz. Resta agora você fazer as pazes com sua mãe.
            - Acho um tanto difícil. – Para ele sempre foi mais fácil aceitar a armação da ex do que entender a negativa de Rúbia em vê-lo feliz com a esposa. - Mas me conte o que aconteceu aqui na minha ausência. - A investigação evoluiu?
            - Muito...penso que muito em breve terei Gabriela na cadeia...e Bia livre. Mas ainda espero poder encontrar cada membro dessa quadrilha e colocar um a um na cadeia.

            Um relatório mais completo, porém, ficou para depois. Depois de desabafar e relaxar, Miguel se entregou ao cansaço e Elizabeth voltou para cama para lhe fazer companhia. Era a única forma dele dormir tranquilo, tendo a certeza de que ela não fazia nenhuma estripulia pela casa.

...

            Inteligente e sagaz, Gabriela não levou muito tempo para perceber que Nikolay facilmente se tornava cego devido ao próprio ego. Eles jamais foram próximos, mas concorreram por tantos anos que, e alguma forma, ela imaginou conhece-lo bem. Errou. Somente agora, sob o seu comando e tendo de lidar com suas sádicas ações é que realmente soube quem é esse poderoso homem, movido pelo dinheiro e pelas maníacas vontades. Para conseguir algo que realmente desejava, era capaz de muito, inclusive de colocar em risco o império que construiu. O que os diferenciava, além das áreas de atuação, pensou Gabriela, é que enquanto ela passou anos mantendo as sua identidade em sigilo, Nikolay esforçou-se para fazer um nome e gerar terror em torno dele. Além disso, ele facilmente misturava negócios com prazer. Tanto que tomou uma de suas garotas como escrava pessoal e ficou destroçado depois que se livrou dela. E Gabriela sabia exatamente onde essa mulher estava. Quando começou a se incomodar com Elizabeth, passou a manter atenção sobre seus passos e soube da garota presa que foi “adotada” pela policial. Fez ligação quase que instantaneamente com a garota de Nikolay. Chegou a assustá-la, no intuito de segurar sua língua. Naquele momento, a queda de Nikolay era negativa para todos no negócio. Porém, não pode atentar a Paty porque Beatriz tornou-se um problema mais emergencial. Deixou Paty viva no Brasil, ao lado de Elizabeth. E isso agora mostrava-se uma jogada de sorte.

            - Não haverá um doce reencontro seu e de Paty, Nikolay. Se Elizabeth chegar até mim, também chega até você. E aí, basta um depoimento daquela ratinha. Vou dar a Liz alguém para colocar na cadeia e sair limpinha disso tudo.

            Enquanto isso, porém, era necessário obedecer e passar ilesa pelas garras de Samantha. Isso, é claro, até conseguir lhe cortar a garganta silenciosamente.

            - Seu cliente a espera, queridinha. Está pronta? – Samantha disse após destrancar a porta do alojamento onde agora Gabriela vivia. – Ele é brasileiro e gosta de agitação. Escolhi especialmente para você.
            - Eu posso imaginar. – Gabriela respondeu. – Desde que não me reconheça.
            - Não creio. Até porque você está diferente.



            Sim, diferente, pensava Gabriela. Mas o despeito que via nos olhos da rival lhe dizia que seguia bonita e atrativa. E se Samantha pensava que deitar-se com um homem por dinheiro iria humilhá-la, iria decepcionar-se. Passou a vida fazendo isso. Os valores é que era muito superiores, na maior parte das vezes disfarçados por jóias e alto padrão. No fim das contas, porém, era sexo prazeroso sendo oferecido em troca de algo muito valoroso. Exatamente igual.
            O brasileiro deleitou-se nela ao primeiro olhar. Seu gosto por mulheres fartas e sedutoras, daquelas que pareciam nascidas para dar prazer, era conhecido de Nikolay. Fazendeiro do Mato Grosso do Sul, bronco e pouco afeito a modernidades, João Aguirre poderia ser chamado de tudo menos de um homem moderno. As mulheres, sobretudo as que viviam do corpo, gostavam do trato de um homem forte e ele sabia lhes manter satisfeita e sob rédea curta. Essa, Nikolay lhe garantiu, era experiente na profissão e gostava de apanhar. Sem muitas apresentações, chamou-a para que se aproximasse e quis provar se ela era tão gostosa quanto a roupa oferecia.




             - Qual seu nome, minha belezura? – Ele perguntou já apalpando as curvas arredondadas do quadril farto e colocando-a sobre um balcão.
            - Pode me chamar de Gaby.
            - Bom nome para uma puta. Você é bem gostosa.
            - Não viu nada ainda, João. – Ela disse enquanto abria a camisa dele.

            E então foi surpreendida por uma forte bofetada, que a fez sentir o gosto de sangue na boca. Ele não era inofensivo, confirmou.

            - Me chame de Aguirre. E não faça nada sem que eu mande. Me desobedeça, Gaby, e te desmonto a pancada. Entendeu?
            - Sim. – Gabriela sabia que naquele momento precisaria ser assim. – O que deseja, senhor.
            - Primeiro vamos tirar essa sua roupinha.



            Somente cinco horas depois, com muitos arranhões e hematomas pelo corpo, porém, com três vezes mais dinheiro do que o combinado, Gabriela chegou a boate. Nikolay já havia ficado sabendo do “alto desempenho” de sua nova garota.
            - Você fez um trabalho arrasador, Gabriela. – O novo dono a provocou. – Posso afirmar que você nasceu para isso.
            - Vai tomar no cú! – Ela respondeu.
            - Fiquei sabendo que o seu desempenho nesse quesito foi muito bom. Adorei seu profissionalismo. No seu lugar, eu iria dormir agora, afinal logo terei outro cliente para lhe oferecer.
            - Você é um porco, Nikolay. Um porco que não conseguiu manter nem mesmo uma escrava! – Ainda não era a hora, mas tendo o ego tão machucado, Gabriela não resistiu em feri-lo com a única arma que possuí-a.  Pois saiba que nunca mais colocará as mãos nela...a menos que eu permitir.



            - Eu só não a mato, Gabriela, porque você merece coisa bem pior. – Foi a única resposta oferecida por ele.

            Seus olhos claros se tornaram mais duros. Havia emoção, mas ela foi deixada de lado rapidamente. Pensar em Paty era, para ele, algo doloroso e desnecessário. Ele havia se livrado dela quando julgou adequado. Reconhecia que depois arrependeu-se do ato impensado. Principalmente, porque nenhuma outro mostrou-se igualmente satisfatória no posto de escrava sexual. A doce Patrícia, que nada lhe negava e que sempre o esperava disposta. A menina idiota que o tratava como seu salvador, não o seu proprietário. A imbecil que ousou gerar um filho seu. E pagou o preço disso. Patrícia é o seu passado. E ver Gabriela trazê-la de volta o desagradou.

...

            Elizabeth esperava o telefone tocar para ouvir Beatriz, poder, enfim, ter a certeza da vida de sua irmã. Mas quando enfim recebeu uma ligação do exterior, ouviu a voz de um homem. Sebastian Gonzáles, reconheceu instantaneamente. Aquele homem, com o qual esteve recentemente em uma elegante festa no Brasil, agora lhe confirmava ser o sequestrador de sua irmã ou, no mínimo, um receptador. Bonito, charmoso e perigoso, Elizabeth resumiu, montando um perfil do seu suspeito. Acionou o sistema de gravação de áudio e conversou com ele.

            - Espero que minha irmã esteja viva ao seu lado Sebastian e que você passe o telefone para ela agora. Já vou indiciá-lo por sequestro e tráfico internacional, assassinato não está nos planos. – Afirmou, lutando para manter a voz firme.
            - Ela está comigo sim, Elizabeth. Eu sei que você está gravando e que isso será usado contra mim como uma confissão. E não me importo.

            Isso pegou Liz de surpresa. Ela não entendia o que Sebastian planejava.

            - Passe para ela. – A policial ordenou.
            - Não será possível. – Ele respondeu com a voz tranquila de quem é acostumado a dar ordens. – Sua irmã está dormindo nesse momento. Ela precisa descansar. Teremos momentos complicados nos próximos dias.
            - Que bondoso da sua parte. Quer que eu simpatize com você por ser um carrasco de bom coração? – Liz debochou.
             - Não sou bondoso, mas também não fui um carrasco para sua irmã. Eu...quero o bem dela.
            - Então avise as autoridades de seu paradeiro e logo ela já estará no Brasil. – Elizabeth não acreditava em uma palavra do que ouvia. Ninguém que rapta ou compra um ser humano tem bons sentimentos.
            - Ela já está em território brasileiro, Elizabeth. Estamos em meu avião, numa parada para reabastecimento. Em duas horas estaremos em São Paulo, em me entregarei à polícia e você terá Bia ao seu lado.

            Se aquilo fosse verdade, seria o fim de um pesadelo. Ainda assim, Liz duvidava. Por que Sebastian faria algo assim? Ele parecia muito seguro ao telefone. Estava decidido e sabia da turbulência que sua vida teria, mas não aparentava nenhuma disposição a desistir.

            - Por quê? – Ela perguntou, direta. – Porque está me avisando disso? E porque não é Bia a me telefonar? Eu respondi uma mensagem dela.
            - Ela precisará muito de você nas próximas horas. – Ele disse apenas. E então cortou a ligação.

            Beatriz dormia sem saber daquela ligação. Ela contatou a irmã segura de que Elizabeth ajudaria Sebastian ao conhecer toda a história. Mas ele sabia que já não restava ajuda capaz de livrá-lo da prisão. Não quando ele sempre soube fazer uso de mulheres escravizadas. Ser preso era um preço justo pela retomada da vida de Beatriz. E ele estava disposto a pagar. Temia, apenas, o sofrimento que causaria em sua família. Sua mãe e filha sofreriam ao saber quem ele era de verdade. Seu império provavelmente decairia até que ele pudesse retomá-lo. Já que, acreditava, seus advogados conseguiriam tirá-lo de trás das grades um dia. Até lá, porém, teria perdido sua filha, perdido Bia e todo o seu prestígio.

            - Bia? Minha querida. É hora de acordar. Nós chegamos. – Ele a despertou na confortável cama.
            - Estou no Brasil? Preciso...preciso falar com Liz...
            - Eu já fiz isso. Fique tranquila. Meu destino já está traçado, eu preciso apenas que você fique tranquila. Acho que teremos uma grande recepção.



            Ele estava certo. Assim que desceu do avião, sob o olhar atento de uma Elizabeth não uniformizada e agindo como civil enquanto uma dúzia de outros policiais agiam, Sebastian foi preso para o desespero de Beatriz. Liz assistiu, cheia de preocupação e angústia, a irmã chorar, se debater e rebelar enquanto os agentes a separavam do homem que a escravizou.