domingo, 30 de outubro de 2016

Ariella - Capítulo 22

            Ariella encarava Dulce como se olhasse para algo místico e não sua amiga da vida toda. A desconfiança de Dulce, de que poderia estar esperando um filho de Diego, chegou até ela com ares de bobagem. Um segundo depois já parecia muito real, talvez uma certeza tão óbvia quanto o amanhã que sucede cada dia. Não era algo tão surpreendente assim, afinal, quando se passa muitas e muitas horas na cama com um homem sem tomar quase nenhuma preocupação com contracepção, é quase como se você disse ao destino que esperava gerar uma criança.



Ela esperava? Não. Definitivamente, esse não era o seu objetivo ao transar com Diego. Objetivos, porém, pareciam frios, calculados e muito ineficazes para explicar qualquer fato de sua vida que envolvesse Diego. Assim como na década passada, agora ele novamente entrou em sua vida trazendo surpresas. Mas se ela não havia desejado ser mãe nesse momento, de Diego não poderia dizer o mesmo. Ainda lembrava-se com clareza de seu estranho amanhecer ao lado do marido após se casarem. De todos os absurdos que ele lhe afirmara, um foi mais duro de ouvir. “Você será mãe de um filho meu. Seu pai me tirou a mãe, você me dará um filho”, recordava-se. A estranha afirmação foi repetida tantas vezes que aquela antiga Ariella, ainda tão jovem, chegou a crer que ele realmente acreditava que aquela criança pudesse apagar os erros do passado. Em meio a tantas loucuras, essa foi a que mais a revoltou.
Porém, ela chegou muito próximo de tornar-se realidade. Em cada uma das manhãs de acordou após abandonar Diego, ela fez questão de obrigar sua mente a não pensar no ex-marido. Obteve sucesso. E a cada dia, percebeu ser mais fácil. O mesmo não podia ser dito da criança que perdeu antes de saber que esperava. Aquela perda foi uma dor que não sessou. No início conseguiu disfarçá-la na raiva e na mágoa que vibravam em seu peito. Foi mais fácil jogar para os ombros de Diego aquela culpa e afirmar para si mesma que ele era o completo responsável por ter gerado aquela via a qual ela jamais desejou nutrir e, igualmente culpado, por matá-la, ao obrigá-la a arriscar-se numa fuga temerária. Depois, já isolada e em terras brasileiras, veio a culpa. Infeliz e sofrendo ao ter de se acostumar ao seu novo corpo percebeu que, caso ainda estivesse grávida, a sua dor maior não existiria. Percebeu que Diego não fora o único responsável por aquele final triste. E que se como esposa não falhara, como mãe sim. E que não tinha o direito de cobrar de Diego aquela vida perdida quando ele fora o único a desejar aquela criança.
Mas e hoje? Dez anos não passavam na vida de ninguém sem deixar um rastro de amadurecimento. Qual peso uma criança traria para a vida dela? E como Diego reagiria a isso tudo? Em meio a tudo isso era preciso avaliar, ainda, qual a relação tinham. Afinal, tiveram um início conturbado, cortado por um acontecimento trágico, passaram mais de uma década sem conversar e após um reencontro efervescente, Diego entrou em sono profundo. Há dois meses Diego dormia num leito hospitalar, com o corpo enfraquecido e a mente perdida em algum lugar do qual até agora os médicos não haviam conseguido lhe resgatar. Alguma coisa, porém, a fazia ter a certeza de que, independente da relação que tinham ou teriam no futuro, ele receberia a paternidade de braços abertos.

- Vai me olhar aí para até que horas? Vamos garota! Pegue o teste e faça!

            Ariella obedeceu, mais por saber ser o certo do que por realmente ter dúvidas. Agora tudo parecia fazer sentido. Olhar para os risquinhos confirmadores a fez sorrir, mesmo tendo conhecimento de que aquela equação somente se transformava ainda mais difícil de ser resolvia, agora com mais um elemento. Porém, esse complicador que agora crescia dentro de seu ventre, por mais confusão que trouxesse, parecia uma grande notícia. Era o mundo lhe provando que sempre havia uma nova chance de concertar os erros do passado. E ela estava bem interessada em por um ponto final nas histórias do passado para iniciar um novo parágrafo com Diego. Talvez nem isso fosse o bastante. Talvez tivesse de ser um livro inteiramente novo. O importante mesmo era saber que havia muitas páginas em branco, livres para escrever o que quisessem.

            - Foi positivo, não foi? – Para Dulce a resposta também não poderia estar mais clara. – Está feliz?
            - Não poderia estar mais. – Sorrindo, Ariella respondeu antes de abraçar longamente a amiga. - É como se tudo o que aconteceu agora fizesse sentido, agora valha a pena. Pareço muito idiota?
            - Parece. Mas tudo bem, os apaixonados têm esse direito. Vá contar ao seu homem a novidade.




            Ariella, mesmo na montanha russa emocional em que se encontrava, percebeu que algo não se encaixava na postura de sua tão leal amiga. Aquela Dulce, serena, comedida e, principalmente, compreensiva ao referir-se a Diego, simplesmente não combinava com a amiga que conhecia. O encanto e Dulce pelo “conde espanhol” que conheceram naquela boate na argentina, ainda adolescentes, não durou mais do que alguns dias. A ela ele não podia se gabar de ter enganado. E depois de encontrá-la na Espanha e presenciar o triste fim do casamento, Dulce passou a nutrir por ele grande desprezo.  O fato dela ter se apaixonada perdidamente por Murilo e ele ser, além de seu sócio, ser um grande amigo, quase irmão, ajudou apenas para que Dulce aprendesse a respeitá-lo como empresário e empregador justo. Como homem, jamais. Ela nunca escondeu. “Porque um homem de verdade, não deseja manter à força uma mulher”, ela explicou quando Diego tentou selar a paz semanas antes dela e Murilo trocarem alianças, numa cerimônia a qual Ariella não compareceu. Os anos os ensinaram a conviver, não a gostar um do outro.

            - Porque sinto que você me incentivasse a dar uma chance a Diego? Há 11 anos ouço você pintar um vilão, mesmo quando reconhecia que ele era capaz de boas ações. – Ariella questionou a amiga.
            - Não gosto dele. – Dulce repetiu. – Mas gosto menos ainda da solidão na qual você se fechou. Sempre acreditei que outro homem apareceria em sua vida em algum momento e te mostraria que aquela paixão da juventude não foi nada além de amor de verão. Mas aí, o que nenhum outro conseguiu em uma década, Diego fez em um Carnaval. Eu me rendo. Não preciso gostar dele para reconhecer que ele a faz feliz.
            - Vai torcer por mim?
            - Eu sempre torço, minha amiga. – Dulce a beijou. – Quero ser a madrinha desse bebê. E assim que Diego acordar, avise que ainda posso lhe dar a surra que prometi dez anos atrás e Murilo não deixou eu cumprir. É só ele não cuidar bem de vocês.
            - Eu avisarei...assim que ele abrir os olhos.
            - Ele o fará, tenho certeza. Preciso reconhecer que ele sabe lutar pelo que deseja e, não será justo agora que a abandonará. Vá vê-lo.

            Nos contos de fada ou novelas, aquela seria a deixar perfeita para a mocinha dar a feliz notícia ao príncipe adormecido e, com um beijo nos lábios, fazê-lo despertar, feliz em saber que será pai. Infelizmente não foi assim.



            No quarto silencioso e com o coração cheio de expectativa, Ariella aguardou a enfermeira fazer suas rotinas hospitalares e anotações no prontuário médico. Ajudou-a na tarefa de banhar o paciente e certificou-se de que tudo estava bem, ou o melhor possível diante das possibilidades.

            - Seus batimentos estão um pouco mais acelerados. É bom sinal. Ele está mais perto do que ontem de acordar. – Lhe disse a jovem uniformizada. – A senhora ficará de acompanhante hoje?
            - Sim. Um homem virá visitá-lo no final da manhã e uma senhora idosa a tarde, mas eu permanecerei o dia todo. Pode liberar a entrada dos visitantes. – Ela referia-se a Murilo e Anita, pessoas que iam e vinham da Espanha nesses meses para não deixar de ver Diego. Por segurança, ela dera ordem de que, quando sozinho, Diego não recebesse visitas enquanto não estivesse totalmente consciente.
            - Sim, senhora.

            Assim que ficou à sós com Diego, Ariella lhe acariciou o rosto, deitou a cabeça sobre seu peito e fechou os olhos, fingindo estar em casa, com ele em sua cama. Parecia tão certa aquela imagem. O coração dele, tranquilo, contrastava com o galope acelerado do próprio peito. Sem pensar no que fazia e se ele podia ou não ouvir seus lamentos, contou para ele suas andanças pela Europa e os mal estares que sentiu. Percebeu que conforme o relato progredia, a voz ficava mais alegre, como que denunciando um clímax feliz naquele enredo.

            - Então hoje, Dulce me fez ver o que estava muito claro, mais eu mantinha escondido dos meus olhos. Eu...estou grávida. Você pode acreditar?! Vamos ter um bebê! Eu sei o quanto você quis isso. E tenho esperança de que essa notícia lhe trará felicidade. Nós podemos ser felizes, Diego. Só falta você acordar para...para sermos uma família e deixarmos tudo o que aconteceu no passado.

            Por um instante ela pareceu ouvir uma batida diferente, de ritmo mais intenso, vinda do peito dele. Achou que ele iria acordar. Apertou sua mão, beijou-se ambas as faces e viu as próprias lágrimas caírem sobre seu rosto. Mas ele não abriu os olhos. E ela foi trazida da ilusória esperança de felicidade para o mundo real e cheio de maldade. Uma voz há tempos não ouvia se fez ecoar pelo quarto, puxando-a de volta para 11 anos atrás.



            - Você não tem vergonha de proferir palavras tão infantilóides como essa, Ariella? Parece presa a um conto de fadas de péssima qualidade.

            Afonso olhava para a filha com expressão de decepção. Vinha lhe telefonando muitas vezes nos últimos meses, mas, sem ser atendido, precisou de uma ação mais enfática. Tudo porque o plano salvador que planejou para o feriado de Carnaval não gerou o resultado esperado. Era isso o que dava contar com auxiliares tão simplistas como empregados domésticos. Eles são úteis para acessar lugares particulares, mas, se precisassem pensar um pouquinho mais, já se tornavam ineficientes. Fora necessário mudar de estratégia. Chegar até o quarto de hospital fora até simples. Ele só não esperava ouvir aquilo que seus ouvidos registraram.

            - Então serei avô. Que decepção, Ariella. – Ele falou, mantendo a voz clara e os olhos fixos na filha. – Juro que você conseguiu me enganar por algum tempo. As notícias que li sobre você nos jornais me fizeram crer que tinha puxado mais a mim que a sua mãe. Mas não. Continua a mesma idiota manipulável de sempre.

            Ariella então saiu do choque e percebeu que mostrar-se fraca era o pior caminho frente a Afonso.



            - Manipulável, infantilóide, idiota...mas rica, querido papai. E ambos sabemos qual dessas características o trazem até sua filha.
            - Objetividade! – Ele afirmou, sorrindo friamente. – Está aí uma característica que você herdou de mim.
            - A única, espero. – Ela respondeu no mesmo tom. – Mas mantenhamos a objetividade: a torneira fechou há 11 anos, no dia em que o conheci de verdade. Nem mais um centavo do meu dinheiro. Achei que já tinha sido clara a esse respeito.

            A firmeza de Ariella mostrou a Afonso que ela era sim bem parecida com ele, ao menos quanto a lutar por algo desejado. Se no passado ela gaguejou ameaças que não cumpriu e, no final, negociou com Diego para que ele saísse ileso das acusações empresariais, com dívidas perdoadas e dinheiro no bolso, agora não parecia disposta a barganhar. Ele teria de ser mais esperto.

            - Minha menina, não seja tão dura com seu velho pai. Posso ter cometido alguns erros. Graves, reconheço. Mas sou o seu pai, mereço ser perdoado.
            - Na verdade, não merece não. – Ariella até gostaria de manter com Afonso uma relação mais amigável e assim resolver essa parte de sua vida. Mas desconfiava que afagos e visitas em feriados não eram o objetivo do pai. – O que quer?
            - Há meses eu lhe telefono, mando mensagens e contato o seu agente para mediar um encontro nosso. Na surte efeito. Qualquer aproximação minha é bloqueada.
            - Vou perguntar mais uma vez, o que deseja? – Ela desconfiava que somente o fim do dinheiro faria o pai humilhar-se assim. – Não lhe darei mais dinheiro para jogar fora.
            - Assim você me força a atitudes desagradáveis, Ariella. – Ele já não fingia com a mesma perfeição. – Você ganhou muito dinheiro nos últimos anos. Porque deixar seu velho pai passando necessidade por mágoas tão antigas quando, ao que parece, esse homem, que tanto mal te fez, foi perdoado. Eu não mereço a mesma boa vontade?
            - Não. Na verdade, toda a boa vontade que tinha por você foi gasta anos atrás, quando lhe dei uma verdadeira fortuna para saldar suas dívidas. Se desperdiçou, problema seu.
            - Mas minha filha...
            - Sua filha não existe mais! – Ela apertou o botão para chamar os funcionários do hospital. – Saia daqui por bem, ou eu chamarei a segurança.
            - Está bem...eu farei isso. Mas depois não sofra com as consequências disso, Ariella. O Brasil é um lugar a cada dia mais violento. Pessoas perdem a vida todos os dias por tão pouco.





            A ameaça ficou no ar, implícita, mantendo Ariella chocada, encarando Afonso e tentando decidir se deveria ou não levar a sério o que ele afirmava. Poderia ser algo tolo, afim unicamente de assustá-la. Ou, poderia ser real. Talvez não apenas um aviso, mas uma discreta confirmação de que o suposto assalto ou tentativa de sequestro não fora algo aleatório. O choque apenas foi cortado pelo abrir de olhos de Diego, que apesar do longo período adormecido não aparentou fraqueza nem confusão o bastante que o impedisse de encarar Afonso com a mesma força do passado.

            - Saia aqui! Pare de atormentar sua filha. – Disse com a voz fraca, porém clara e tão firme como sempre foi.
            - Volte ao seu sono, espanhol...isso é um assunto de família. – Afonso respondeu, enquanto observava a filha acariciar aquele homem.
            - Afaste-se da minha mulher. – Diego ordenou encarando o inimigo de uma vida inteira.

            Nada mais foi dito. Afonso deixou o quarto no mesmo momento em que uma apressada enfermeira entrava e logo saía dando a notícia de que o paciente havia, enfim, despertado. Ariella pouco observou de todos aqueles acontecimentos. Estava feliz em vê-lo abrir os olhos e emocionada com a forma como aparentava estar lúcido.

            - Você voltou pra mim, mal posso acreditar. – Disse ainda beijando-o na delicadeza de quem temia que ele fosse se quebrar.
            - Eu não iria embora por nada, não agora. – Diego respondeu.

            O reencontro foi interrompido pelos médicos que passaram a vir fazer testes. Todos se surpreenderam com a forma rápida com que ele obteve clareza mental ao acordar. Esperavam um período de confusão ou até mesmo esquecimento dos últimos acontecimentos. Porém Diego era capaz de contar em detalhes as últimas horas antes do assalto. De mãos dadas com Ariella, surpreendeu-se em saber que dormira por dois meses.





            - É inacreditável. – Ele então começou a aparentar algum cansaço.
            - Talvez seja melhor que durma um pouco. Tanto tempo acordado após meses dormindo são difíceis. – O médico afirmou.
            - Acho que já dormi demais, Doutor. Vou curtir minha mulher um pouco mais antes de voltar ao mundo dos sonhos.
            - Vou deixá-los a sós então.

            Eles então se observaram por longo tempo. Tanto já havia acontecido na vida deles que agora pareciam ter o direito a ficarem juntos. Ele acariciou seu rosto e afagou a palma de suas mãos, fechando os olhos ao sentir as pálpebras ganharem beijos tão leves quanto o bater das asas de um beija-flor.

            - Você precisa dormir, está cansado. – Ela entendeu que ele se rendia ao sono.
            - Deite aqui do meu lado.
            - Eu não posso!
            - Pode sim. – Diego insistiu. – Eles não negarão isso ao um Conde.
            - Você usa esse título só quando lhe convém. – Ela brincou, mas começou a tirar os sapatos. Era como se tivesse voltado a juventude.



            Voltaram a falar apenas quando ela já estava no leito, encostada ao peito dele. A mão dele serpenteou pela cintura dela até parar sobre o ventre, numa pergunta silenciosa.

            - Você ouviu! – Ariella agitou-se.
            - Do lugar onde eu estava, perdido entre o mundo dos vivos e dos mortos, ouvi sua voz me dizendo que nós seremos pais. É verdade ou eu delirei – Havia um fundo de dúvida na pergunta. Ele temia estar delirando.
            - Em exatos sete meses. Espero que goste da notícia.
            - Gostar? Essa palavra não chega nem perto de explicar o que se passa pelo meu coração nesse momento, meu amor.

            Diego logo adormeceu, cansado pelo esforço emocional e físico daquele dia. Ariella ficou acordada, curtindo aquele momento e fazendo planos para ser feliz a cada dia.


domingo, 9 de outubro de 2016

Alguém Para Perdoar - Cap 13


      O tempo oferecido ao filho serviu como um balsamo ao coração de Márcia. Ela podia até não compreender completamente o que se passava, mas somente agora, tantos meses após a oficialização de seu conturbado divórcio, ela cicatrizava as feridas mais profundas. Somente agora ela passava a viver como mãe e mulher, após não ter mais o posto de esposa. E somente agora era entendia que ser a executiva competente só fazia sentido se ela conseguisse ser também uma mulher feliz.
            Ela e Joaquim estavam atirados sobre o sofá da sala, assistindo um filme e comendo sorvete quando ela sentiu o celular vibrar. Sorrindo deu-se conta que havia ignorado o aparelho nas horas anteriores, algo raro na antiga Márcia e um hábito que ela pretendia cultivar. Cogitou sequer olhar o aparelho, não queria nada nem ninguém atrapalhando seu dia em família, sobretudo se esse alguém fosse Alex. Teve com dificuldade em ver com clareza, mas agora entendia que sua felicidade dependia da capacidade de ver Alex o mínimo possível e de enxergá-lo como nada mais do que um passado triste. Por sorte, olhou o visor do aparelho e viu se tratar de Raul respondendo a mensagem que lhe mandou do parque. [Não precisa agradecer. Só seja mãe. Cuide, brinque e faça seu filho feliz, porque se ele estiver feliz, você também estará.]
            Mais uma vez ele acertara em cheio. Quando contratará Raul, buscava apenas por um advogado forte para lutar contra Alex. Não esperava conseguir alguém ainda mais forte, que lutasse também contra ela quando suas atitudes fossem além do que era certo. Conseguiu um representante legal justo, além de um amigo sincero. Ambas as coisas eram raras de se ter hoje em dia. Enquanto Joaquim assistia o filho e comia vorazmente seu sorvete, Márcia fez uma breve avaliação de sua vida na JRJ Construtora. Nos negócios ia tudo bem, considerando as dificuldades que a crise financeira impunha ao setor da construção civil.



            Algo, porém, começava a incomodá-la nos pelos corredores da empresa. Se seu tempo ali serviu para que todos aprendessem a confiar em sua competência, em nada adiantou para que criasse laços de amizade. Jonas e Rafael eram muito mais do que sócios, tinham amizade, eram quase irmãos. O tempo de parceria era responsável por isso, ela sempre acreditou. Mas agora entendia que nem só o tempo. Oportunidades lhe foram dadas para que se aproximasse deles e ela fez questão de negar. Quando ali chegou, foi tratada com respeito e desconfiança. Por educação, porém, Melissa a tinha convidado para um jantar de recepção. Ela recusou. E no último Natal, Jonas e Emily convidaram ela e Joaquim a irem participar da ceia dos Vicentin, no Rio Grande do Sul. Mais uma vez optou por declinar do convite. Era hora de mudar aquela postura, sobretudo porque Jonas já dera mostra do grande amigo que podia ser, caso ela permitisse. Voltou a digitar no WhatsApp, agora tendo o sócio como destinatário. [Foi bom poder conversar com você. Obrigado.] Não tardou a receber resposta. [É sempre bem-vinda em minha sala, mesmo que para falar de tudo menos negócios]. Sorrindo para o telefone, Márcia resolveu que ser feliz era muito simples.

            - Filho! Tive uma ideia! Você já descansou né? Não está cansado demais para sairmos novamente? – Ofereceu para Joaquim.
            - Não mãe! Tô bem. Aonde vamos? – Aquela nova mãe estava muito divertida. E ele queria aproveitar.
            - Eu mudei de ideia...não quero ver filme em casa. Vamos no cinema?

            Já era tarde para uma criança estar na rua. Mas quem se importava? Ela estava feliz, Joaquim ainda mais e ambos se divertiram bastante. Uma passada pela loja de doces. A compra de uma camiseta legal que ele gostou e rumaram para a fila do cinema. O filme é o que menos importava. A única divergência que surgiu foi quanto a pipoca. Era mistura demais para um dia, Márcia lembrou ao filho.

            - Aaaaa mamãe...mas eu compro o saco pequenininho. Nem vai fazer diferença na minha barriga.
            - Está bem. Compre. Mas se você tiver dor de barriga, vai tomar aquele chá bem amargo e sem reclamar. Está bem?
            - Tá bem! – Ele aceitou a negociação.

            Ali ela ficou, achando-se pouco arrumada e cansada, porém, realizada. Esperou sentada nos estofados que ficavam na entrada do cinema, observando de longe Joaquim entrar na fila para comprar pipoca. Percebeu quando muitas pessoas começaram a passar, ao final de uma sessão. E surpreendeu-se ao ver um conhecido. Raul deixava o cinema acompanhado de uma bela mulher, uma jovem que não aparentava ter mais do que vinte e poucos anos. Ele a viu ali sentada, cansada e cuidando do filho e apenas lhe acenou.



            Ela disse a si mesma que não deveria ficar magoada, afinal, ele estava acompanhado e em um momento de lazer. Porém, lá no fundo, vê-lo com aquela garota não lhe fez bem. Era uma menina tão jovem, tão mais jovem que ela. De repente, a ideia de vir ao shopping sem se arrumar pareceu péssima. O tempo sabia como ser cruel com as mulheres.

            - Mãe! Mamãe! Tá na hora. Vamos perder nosso filme! – Joaquim a tirou dos devaneios e devolveu para a realidade.
            - Desculpe, meu amor. Vamos sim. - Sorrindo ao filho, levantou-se e foram para a entrada da sessão. O bom de ser mãe é que não se tem tempo o bastante para sofrer.



            Na casa dos Gomide, à mesa do jantar, Isabely sentia-se constrangida. A comida estava gostosa, todos ali a tratavam bem, o lugar era bacana, mas tudo era muito estranho. E a cada momento ali ela se sentia mais estranha. Tális bem que tentou deixar tudo mais leve, puxar assunto e fazê-la se sentir melhor. Mas não adiantou muito.

            - Não está gostando do jantar, Isa? – Melissa perguntou, mesmo duvidando que o bife com batata frita não a agradasse.
            - Tá bom sim, bem gostoso. – Ela respondeu, bebendo do refrigerante e comendo algumas batatinhas.

            Tinham passado uma tarde bem feliz. Logo depois dela se instalar no quarto de hóspedes e jogar algumas partidas de vídeo-game com Tális, Rafael foi ao quarto decidido a tirá-los daquele quarto. Estava um dia lindo demais para ficarem ali trancados. Depois de olhá-los por alguns minutos e perceber o entrosamento espontâneo e natural que desenvolveram, foi necessário interromper a diversão.

            - O que você gosta de fazer, Isa? – Perguntou, já que conhecia bem os gostos do filho.
            - Não sei...eu...costumava brincar na rua quando fazia sol. – Ela respondeu, de forma sincera, porém, sabendo que morar na rua não era uma opção para quem tinha dinheiro o bastante para ter qualquer diversão dentro de casa.
           
            Rafael sorriu diante da resposta. Não um riso de deboche. Nada tinha de engraçado o que ela afirmou. Sorriu frente a simplicidade da resposta de uma criança que, mesmo podendo pedir qualquer coisa, citava algo que estava disponível para qualquer um.

            - Desliguem o computador. Vou levá-los para patinar. Depois, se quiser, podem ir ao parque de jogos do shopping ou jogar boliche. Acho que já estão bem grandinhos para brincar na rua...e Isabely irá gostar de jogar boliche.
            - Você vai gostar Isa! – Tális garantiu. – Oooo pai! A Isa pode viajar com a gente em um final de semana? Podíamos ir na fazenda do tio Jonas!
           
            Isa tinha a expressão assuntada com todas aquelas possibilidades. Por isso Rafael entendeu que era necessário seguir de forma um pouco mais lenta. Ou perderiam a confiança da menina.

            - Não sei, Tális. – Respondeu, mesmo sabendo que poderiam viajar sempre que desejassem. – Se Isabely quiser viajar conosco uma hora dessas, eu peço para Marta e, se ela permitir, converso com Jonas para marcarmos. Agora, apressem-se. Espero os dois na garagem.

            Era em Jonas e Lorenzo que Milena pensava ao ir se deitar naquela noite. Usava o seu quarto de infância, mantido com esmero pela família. Ao lado ficava o de Maria e três cômodos adiante, o de hóspedes, hoje ocupado por Nathan. Os quartos de Jonas e Lorenzo também seguiam existindo na grande casa. Porém, não idênticos quanto há décadas atrás. O do primogênito dos Vicentin fora totalmente redecorado após Lorenzo casar-se com Jéssica. Eles raramente ficavam ali já que ele mantinha uma bela e confortável casa no centro de Bento Gonçalves e, tendo três crianças, era mais fácil ficar lá. Porém, se precisassem pernoitar na fazenda, Lorenzo fazia questão que Jéssica se sentisse bem ali, por isso retirou qualquer lembrança ou referência a Alice, sua esposa na juventude. Já o cômodo ocupado por Jonas fora ampliado. E quando eles ali estava, ele e Emily apenas precisavam abrir a porta para ter acesso a Vida e Bernardo.
           




            - Eu queria ser como eles. Ter encontrado um homem perfeito, que me amasse e tratasse feito uma princesa e se encantasse com a notícia de uma gravidez. Que nos casássemos como Deus manda e formar mais uma família perfeita. Mas não foi assim.

            Sozinha, com a cabeça deitada sobre o travesseiro, Milena chorou tendo aqueles pensamentos. Não tinha como voltar no tempo. E, se fosse sincera, jamais desejou realmente poder mudar o que fez. Maria Fernanda veio na hora errada, talvez, mas trouxe vida para sua existência. Agora a simples ideia de ficar sozinha no mundo soava triste. Vivia por Maria, para lhe dar uma vida melhor, para fazê-la feliz. E vivei bem até hoje, suprindo a falta de um pai para a menina. Agora, com a volta de Nathan, sentia tudo desmoronando, as peças do jogo mudavam de lugar ao mesmo tempo. E ela sentia que já não acompanhava o ritmo.



            Estava preocupada. Nenhum membro de sua família iria tentar interferir em suas decisões. Porém, tinha coisas difíceis para fazer nos próximos dias. Uma delas era contar tudo para Lorenzo e Jonas. E, estranhamente, contar os irmãos, lhe soava bem mais duro que dizer aos pais. Porque aqueles homens foram seus braços e pernas sempre que os dela foram curtos ou fracos demais. Parceiros, amigos, companheiros, confidentes...eles a ajudaram em tudo. Inclusive quando afirmou estar grávida sem ter um pai para apresentar. Eles reclamaram, gritaram e a pressionaram. Mas estiveram ali, presentes, prontos para ajudar em qualquer necessidade. Quando entrara em trabalho de parto, não se surpreendeu ao saber que eles tomaram o primeiro voo para Porto Alegre a fim de conhecer a nova ‘gauchinha’ que chegava ao mundo. A surdez de Maria logo foi percebida e eles se mantiveram firmes ao seu lado. Nunca precisou que lhe oferecessem dinheiro, mas sempre soube que, se esse fosse o caso, não faltariam mãos para ser estendidas.
            Se encarassem a novidade que tinham para contar como traição, estariam certos ou, pelo menos, teriam razão para tal. Não havia tido um namoro juvenil com um jovem qualquer que negou-se a assumir o filho. Tinha mantido um caso com um homem conhecido por eles, que frequentou a Vinícola Vicentin, que bebeu à mesa com eles enquanto a levava para cama em hotéis desconhecidos. Havia se comportado como uma mulher que não se dá ao respeito e desrespeitado aquela família que lhe abriu os braços no passado. E depois mentiu para os Vicentin, protegendo Nathan. Eles tinham todas as razões do mundo para jamais perdoá-la. Só que lá no fundo, esperava pela tolerância e pelo amor deles.
            Desistindo de dormir já que a insônia se mostrou duradoura, seguiu para a cozinha. Iria dar continuidade a um hábito de infância. Chá com mel, para chamar o sono e os sonhos agradáveis. Nesse caso, porém, chamou apenas a razão de suas preocupações. Parecia que ela não era a única a estar brigada com o travesseiro.

            - Nathan! O que faz aqui?
            - Não estava conseguindo dormir e vim pegar uma água. E você?
            - A mesma coisa.

            Em silêncio, Nathan observou Milena colocar uma chaleira de água para ferver no fogão e escolher um dentre vários saquinhos de chá muito organizados numa lata. Quando a infusão ficou pronta, ela adoçou com mel e mexeu. Ela poderia ter ido para o seu quarto e assim proteger a si mesma na fortaleza que criou. Mas sentou-se à sua frente na bancada e assumiu que a razão de ambos não conseguirem dormir precisava ser sanada.

            - É estranho ter você aqui, nessa casa, tão perto de nós. – Ela explicou.
            - Você precisará se acostumar. Daqui em diante, estarei sempre por perto. Não vou me arrepender do que fiz, nem nada do tipo. Não vou fugir para a Itália novamente.
            - Eu sei.
            - Então porque se comporta como se esperasse que eu desaparecesse a qualquer momento? Honestamente, Milena, você parece uma criança assustada. E esse papel não combina com você. – Nathan soou um pouco prepotente ao julgá-la.
            - Se parece ter esse medo, é porque você sempre foi um expert em fugir das responsabilidades. – Acusou. Ela aceitaria ser julgada por qualquer um, menos ele.


            Aquela era uma acusação que doía em Nathan. Nunca foi um homem covarde. Ao contrário, pagou preço caro para arcar com suas responsabilidades na vida. E fora uma responsabilidade a levá-lo de volta a Milão quando seu coração pedia que ficasse no Brasil. Não aceitaria, porém, que Milena se comportasse como se ele fosse o único a errar naquela relação.

            - Eu nunca fugi da minha responsabilidade com Maria Fernanda. Você me afastou dela! – Acusou.
            - É fácil falar depois que  tudo está resolvido. – Ela respondeu. Brigavam entre cochichos para não acordar ninguém. E ambos notavam o ridículo da situação. – Fui eu que tive de lidar com a notícia de uma gravidez. Fui eu quem precisou assumir para a família e os vizinhos. Eu estive sozinha enquanto você bancava o marido zeloso na Itália.

            Ela deu-lhe as costas e jogou o chá ainda quente na pia. De repente ele lhe pareceu doce demais, repugnante. Passou por Nathan e seguiu pela casa. Antes de chegar na escada, porém, sentiu que ele lhe segurava pelo braço e puxava para si.

            - Me solte! – Ela esbraveceu. – O que quer agora?
            - Sabe que eu tenho uma raiva danada de você, não sabe?
            - Sei! Esse sentimento existe em mim também!
            - A é? E quais outros sentimentos compartilhamos, Milena? Não é o único! Você sabe.

            No passado houve uma paixão avassaladora, que os levou a extrapolar qualquer regra e ter a vida marcada por novos rumos que talvez não estivessem escritas em seus destinos. A paixão que tirou a vida de ambos dos eixos e que os fez amar na hora errada. Agora havia desejo. No estado mais puro, sanguíneo, visceral e tentador. Dar vazão a toda essa tempestade parecia tão errado quanto natural. E o ímpeto que fez o sangue de Nathan circular de forma mais ágil em seu corpo o fez pensar em nada além do desejo.

            - Eu sei que você quer também. – Afirmou, passando os braços em sua cintura e sentindo a maciez daquele corpo. – Sempre foi bom entre nós.
            - A gente não é mais aquelas duas pessoas....você mudou. Eu mudei.
            - É, mudou. – Nathan concordou. – E eu gosto bastante de como é hoje.
            - Nós temos um monte de problemas entre nós, Nathan!
            - É verdade também. – Ele a beijou com vontade, dando vazão ao que sentia e esquecendo o medo de que voltasse a dar errado. – Danem-se todos eles. Eu quero você.

            O beijo não veio calmo que os que ambos se lembravam. Veio numa tormenta, acompanhado de mãos ágeis e gestos pouco delicados. As roupas pareciam desnecessárias. A temperatura pareceu se elevar. Milena percebeu que apesar das inúmeras dúvidas que sua mente acumulava, o corpo parecia guardar apenas certezas. Desejava Nathan e estar nos braços dele era como voltar para casa após uma longa e cansativa viagem.




            - O meu quarto ou o seu? – Nathan foi direto.
            - Não...não podemos...
            - Basta, Milena. Não minta para você mesma. Seu quarto ou o meu? Ou pode ser aqui na escada mesmo, mas acho que a maravilhosa vovó Ângela poderia sofrer um choque ao amanhecer.
            - No meu...agora. – Milena, confirmou, sentindo-se corajosa com a decisão e agarrando-se ainda mais ao corpo de Nathan.



domingo, 2 de outubro de 2016

Ariella - Capítulo 21


            Dias se passaram sem que Ariella pudesse relaxar. A palavra dos médicos não tranquilizava. Eles preferiam não arriscar manifestações definitivas. Ninguém afirmou que Diego perderia a vida. Tampouco manifestavam algum otimismo. E esse desconhecimento de informações confiáveis tornava tudo ainda mais doloroso. Estranho também era não ser qual posto ocupava na vida de Diego naquele momento. Há poucos dias teria dito ser a ex-mulher dele, alguém de um passado distante e pouco importante na sua vida. Hoje...não podia mais afirmar isso. Não quando o viu lhe oferecer o mais doce dos sorrisos e o mais amoroso olhar.
            Junto da avó de Diego, Ariella se manteve sempre próxima do homem que tanto mudou sua vida. Marcou-a na juventude e, tão recentemente, trouxe luz ao seu coração. Em momentos de solidão na cabeceira de sua cama, quando apenas o bipe repetitivo das máquinas lhe traziam a esperançosa notícia de que Diego seguia lutando pela vida, Ariella refletiu e tentou compreender os percalços que a história deles já tinha passada. Muito do que originou a história deles nem mesmo eles sabiam. Se Afonso não tivesse entrado na vida de Ramón e Silvana décadas atrás, Diego não teria crescido sem o amor da mãe, em meio ao ódio do pai e nutrindo rancores pela família Amaral.



            - Você poderia ter sido tão feliz se meu pai não tivesse entrado em sua vida. – Julgando-se sozinha, ela afirmou enquanto acariciava os cabelos dele.
            - Talvez. Respondeu Anita. – Ela havia entrado discretamente. – Mas ele não teria conhecido a única mulher que verdadeiramente amou. Posso apostar que meu neto não mudaria esse fato em sua vida. Apesar de desejar apagar muitas das suas atitudes.

            Anita presenciou a dor de seu neto por toda a vida. Primeiro por crescer no rastro de sofrimento deixado por Afonso Amaral na família Bueno. Depois por, ainda na imaturidade, não saber lidar com a própria dor, realizou uma série de besteiras. Cometeu crimes que poderiam ter lhe colocado atrás das grades. E recebeu castigo ainda mais duro. Foi condenado a assistir e assumir a culpa pela dor de quem descobriu amar. E o fato de Ariella ter lhe dado as costas sem conseguir oferecer o perdão piorou sua dor. A melhora dela no Brasil, festejada por ele na Espanha, não amainou o sofrimento.

            - Vá descansar, meu bem. Eu fico com meu neto enquanto você vai em sua casa. Fique tranquila. – Disse a senhora, ansiosa por ver o neto manifestar alguma reação.

            Assim, nesse revezamento, mais uma semana se passou. Os ferimentos físicos pareciam estar sarando. A cirurgia tinha sido bem realizada e tudo indicava que o fígado e pulmão atingidos seriam capazes de superar o ocorrido. A situação mais grave, do fígado, ainda gerava mais cuidados já que parte do órgão foi perdido.

            - Mas quando acordar, com o devido acompanhamento, ele terá plenas condições de uma vida normal. Fiquem tranquilas. – O médico repetia a cada relatório.

            O ‘acordar’ era a principal preocupação. Ao que parecia, uma grande mescla de fatores mantinham Diego adormecido. E esse quadro poderia prosseguir assim por muito tempo. Ou até mesmo jamais se alterar. Ao que a equipe médica dizia, Diego sofria com a fraqueza de uma intensa perda de sangue, além de ferimentos graves e um choque muito grande. Inicialmente, eles lhe deram medicamentos fortes para mantê-lo em coma forçado. Mas esses já haviam sido cortados há muito tempo. E ele não manifestara nenhuma mudança no quadro.

            - Ele parece ter se desliga do corpo. – Comentou uma enfermeira para então se calar diante das lágrimas de Ariella.

            Assistindo tudo de longe, Dulce e Murilo preocupavam-se muito com Diego. Mas, sobretudo, temiam por Ariella. Ela parecia dissolver-se à beira do leito do ex-marido. Naquele ritmo, quando ele acordasse Ariella estaria desfalecendo. Com Diego melhor ou não, ela teria de aprender a reerguer-se. Já tinha feito isso uma vez, por isso Dulce tinha fé que a amiga saberia tirar forças do próprio interior para não entregar-se a dor. Murilo tinha, ainda, preocupações profissionais que por mais desprezadas que fossem naquele momento, precisam do olhar de alguém. Diego construiu uma empresa de sucesso internacional e era o seu dever zelar para que nada perdesse seu valor enquanto o proprietário se recuperava. Com Diego hospitalizado e ele preso ao Brasil em função de seu estado de saúde, os hotéis começavam a ser deixados de lado.



            - Sinto muito, Dulce. Mas terei de fazer algo. – Avisou a esposa, sabendo que ela ficaria com Ariella. – Embarco amanhã para Europa e depois para Ásia. Visitarei todos nossos empreendimentos, passando tranquilidade para as equipes locais. Há um temor que hotéis serão vendidos e demissões ocorrerão caso Diego não saia do coma.
            - Ele vai sair! – Dulce respondeu.
            - Eu confio tanto quanto você. Mas minhas camareiras nem tanto. E os hospedes não podem ser afetados por esse clima de indecisão que paira sobre a empresa.
            - E os hotéis da América? – Ele falou apenas em Europa e Ásia, mas Dulce sabia que ao menos cinco países da América Latina e do Norte contam com empreendimentos da Rede de Diego.

            Essa era outra questão a ocupar o pensamento de Murilo nos últimos dias. Ele jamais conseguiria dar conta de tudo. E o terceiro na hierarquia da empresa não estava pronto para tal papel. Isso porque, segundo o que o próprio Diego sempre acreditou e praticou em seu negócio, em momentos de dificuldade, eram os proprietários do negócio que deveriam assumir a frente das decisões. E a Buenos Hotéis possuía três proprietários. Diego, com 80 % da empresa; ele que no decorrer do tempo comprou 5% e recebeu outros 5% de presente do fundador; e Ariella, a quem Diego fez questão de entregar 10% da empresa quando do divórcio.
            Ela não quis e jamais assinou a documentação para tal. Porém, Diego sempre manteve esse desejo firmemente divulgado entre a diretoria da empresa. Seu nome, de forma extra-oficial, aparecia em cada balanço fiscal. Havia uma conta milionária que guardava e investia lucros que Ariella jamais aceitou usar. A verdade, porém, é que se alguém tinha o direito de opinar e o dever de fazer algo pela empresa, esse alguém é Ariella. Ele explicou tudo isso a Dulce. E foi conversar com Ariella, que ouviu tudo surpreendendo-se e revoltando-se mais a cada ponto.



            - Diego perdeu o juízo que nunca teve. Só pode! – Exaltou-se. – Como eu posso ser dona de uma empresa que jamais conheci? Sou uma artista! Não entendo nada de hotelaria nem de administração.
            - Não exagere, Ariella. Você vem gerenciando uma carreira de sucesso. E isso é administração também. Além disso, Diego não cometeu crime nem loucura alguma. Ele apenas deseja que, caso algo de ruim lhe acontecesse, você ficasse amparada por toda a vida. Ele sempre soube que você tinha recursos vindos do seu trabalho...mas como marido – ele sempre se considerou assim – tinha responsabilidade por você.
            - Isso é loucura!
            - Pode ser. Mas é preciso que você saiba que... eu nem sei se Diego me permite te contar isso...
            - Agora fale de uma vez! – Ariella estava irritada demais para segredos.
            - É que...você precisa saber que se por acaso Diego vier a falecer, algo que todos desejamos evitar, mas se ocorrer...você é praticamente a herdeira universal da Rede Buenos. O testamento de Diego, e eu servi de testemunha, lhe dá 80 % de tudo o que ele tem. O restante é da avó. E, caso, dona Anita já tiver falecido quando do testamento entrar em vigor, você passa a receber 100%. Ou seja, Ariella, pode não querer se envolver na empresa agora, mas saiba que um dia ela será sua.

            Era informação demais para ser digerida por Ariella sozinha, sem aconselhamento e, ainda pior, num momento em que sua cabeça estava cheia de outras preocupações. Queria poder devotar-se apenas a cuidar de Diego, mas isso era impossível. Tinha inúmeras responsabilidades que não podiam esperar por ele acordar. Além das informações trazidas por Murilo, Dulce lembrou-a de algo que, na verdade, não havia esquecido. Tinha uma exposição marcada para ocorrer em Londres nas próximas semanas e não poderia deixar de lá estar. Depois, suas obras iriam para Paris e Milão, antes de voltarem à América e serem exibidas na Cidade do México. Tudo isso levaria cerca de 45 dias, com poucos dias de intervalo entre um país e outro. E com obrigações contratuais, largar tudo seria irresponsabilidade. Anita, percebendo seu desespero, foi aconselhá-la.

            - Faça o que seu coração mandar. Meu filho, quando acordar, ficará magoado se souber que lhe forçou a tomar qualquer atitude. Tudo o que ele sonhou foi tê-la por livre vontade e felicidade. – A velha senhora lhe afirmou.

            Depois de dois dias pensando, Ariella tornou-se mais serena e convicta de sua decisão. Chamou a todos os envolvidos e comunicou o que decidira.

            - Sou uma artista. E muitas pessoas esperam por minhas exposições. Equipes estão contratadas para trabalhar e não posso simplesmente cancelar. Irei cumprir meus contratos e cada intervalo, mesmo que de míseros dias, voltarei para ver Diego. Tenho certeza que ele compreenderá assim que acordar, o que não demorará. – Explicou em poucas palavras.
            - E quanto aos hotéis? – Murilo questionou. Pela resposta de Ariella havia adiado sua viagem e a situação na empresa exigia ações urgentes. – Já estamos há duas semanas sem nosso presidente.
            - Eu sinto muito, Murilo. Mas não me sinto capaz de ajudá-lo. Não estou interada dos negócios. O que posso é lhe dar total liberdade e apoio nas decisões. Somente você é capaz de representar Diego em suas decisões empresariais. Tenho certeza que essa é a resposta que ele esperaria de mim.
            - Se é o que prefere. Peço apenas que fique hospedada em nossos hotéis durante sua turnê, circule por eles e tente transmitir tranquilidade. Temos que passar a ideia de que tudo prossegue igual ao que era até que Diego reassuma a empresa.
            - Farei isso. – Ela aceitou.
           
            A despedida fora silenciosa e emocionante. Ficou alguns minutos conversando com Diego. Torceu para que ele abrisse os olhos e lhe pedisse para não viajar, para seguir ali, junto dele. E assim ela teria a desculpa perfeita para ficar aonde estava. Mas não aconteceu. E o relógio lhe disse que deveria ir para o aeroporto. Lá, a última pessoa a abraçar foi Dulce. E, como sempre, a amiga, lhe tinha algo especial a dizer.

            - Você, finalmente, deixou o passado para trás, minha amiga. Só agora eu vejo esse brilho sincero nos seus olhos.
            - Bobagem. – Ariella tentou não dar atenção. – O passado segue sempre com a gente. Pela vida toda.
            - Mas agora ele não mais te amarra. Você está mais viva, Ariella. Está determinada a ser feliz. Está até mais bonita...só falta...
            - Falta Diego acordar. – Ela sentiu-se mais leve após dizer em voz alta o que seu coração sussurrava há tantos anos. – Se ele acordar bem, seria feliz.
            - Ele acordará, tenho certeza. E vai gostar de vê-la bem, vê-la bonita. Está na hora de arrumar o seu cabelo, está com a raiz aparecendo.
            - Com isso tudo, não tive tempo de ir retocar a tintura.
            - Pois não devia retocar! – Dulce gritou. – Deveria pintar de ruivo e deixar o seu cabelo natural voltar. É essa Ariella, liberta, feliz e...e ensolarada que Diego deseja reencontrar.


            Foi com essa provocação no pensamento que Ariella chegou em Londres. No momento em que desembarcou, a primeira capital europeia a receber a sua mostra artística em anos tinha o céu nublado que lhe era habitual. Por dentro Ariella sentia-se em tempestade. Eram muitos sentimentos misturados, tantos que ela não sabia como se portar. A última frase de Dulce ainda lhe martelava a mente. E quando olhou-se no espelho percebeu que aquela Ariella de cabelos negros e olhar triste já não a representava. “Mi sol”. O apelido que Diego lhe dera, sempre esteve ali, escondido em seu peito. Agora desejava sair das sombras. Ela tomou coragem e pediu que a recepcionista do hotel lhe indicasse um salão de beleza. Dois dias depois, quando entrava triunfante na inauguração de sua exposição, exibia cabelos vermelhos e chamativos.



            De cabeça erguida, apresentou seu trabalho, recebeu a imprensa especializada e agradeceu aos elogios. Com tato, fugiu de perguntas pessoais e orientou aos assessores que afastassem aqueles que insistissem em lhe perguntar a respeito de Diego, sua situação de saúde ou qualquer questão que não fosse artística.
            Assim que a exposição saía de cartaz, enquanto tudo era montado em outro espaço, voltava ao Brasil. Não importava se ficaria muitos dias entre vôos longos para então passar pouquíssimo tempo junto de Diego. Pensava apenas que precisava ficar ao seu lado e incentivá-lo a abrir os olhos.

            - Estou aqui. Acorde, por favor. – Repetia sem parar.

            A cada vez que veio ao Brasil, porém, os amigos notavam uma maior fragilidade em sua aparência. Ariella estava se desgastando muito e isso começou a preocupar seriamente. Passava mal com certa frequência, tinha perdido peso, não comia e apresentava profundas olheiras sob os olhos. O que a maquiagem escondia nos eventos oficiais, aparecia a quem via a verdadeira Ariella.

            - O que você tem, minha querida? – Anita questionou em uma de suas rápidas vindas ao Brasil. – Faz mais de um mês que você não para de viajar, está magra demais, com aparência adoentada.
            - Estou me sentindo mal. Acho que estou com a imunidade baixa e uma gripe não quer me largar. Não paro de vomitar. Mas ficarei bem. Logo as exposições terminam, Diego há de acordar bem. E tudo voltará ao normal.

            É nisso que ela confiava. Por isso levantava-se da cama a cada manhã, por mais difícil que fosse, ligava para o hospital da onde estivesse apenas para saber de uma mínima melhora de Diego e então fazia suas orações por uma melhora. Quando completou dois meses de internação hospitalar, fraquejou. O desânimo tomou conta de seu coração. E o corpo sofreu ainda mais. No México sofreu um desmaio. E o médico local a indicou mais repouso, além de pedir alguns exames. Exames que ela optou por não fazer.

            - Estou preocupada com você, Ariella! – Dulce lhe disse ao recebê-la de volta, no hospital do Rio de Janeiro.
            - Assim que Diego melhorar eu me recuperarei.



            Ariella então não mais viajou e voltou a dedicar seus dias e noites a ficar junto do “namorado”. Era assim que resolvera denominar a relação deles, mesmo sem muita convicção. Quando ele acordasse poderiam resolver definitivamente o que eram um do outro. Curiosamente, quando ele – finalmente - começava a dar sinais de que abriria os olhos, movimentando as mãos no leito e apresentando um batimento cardíaco mais intenso, ela parecia ter a saúde ainda mais debilidade.

            - Basta! – Dulce disse. – Você vai a um médico! Está num hospital, droga! É só consultar e ver o que tem.
            - Não estou doente! E não irei a lugar algum. – Ariella respondeu.
            - Eu também acho que não está doente. E já esperava a resposta. Por isso trouxe um teste que você pode realizar aqui mesmo no banheiro!

            Ariella demorou a entender a que Dulce se referia. Mas, quando leu a embalagem que ela lhe estendia, um ponta de esperança cresceu em seu peito. Grávida. Dulce desconfiava que ela estava grávida. E se voltasse no tempo e lembrasse dos acontecimentos frenéticos de oito semanas atrás, essa possibilidade parecia bem real.