domingo, 11 de junho de 2017

Vida Roubada - cap 34



Um caixão fechado. Na morte, Gabriela não teve o direito de exibir sua beleza. Não embalsamento ou maquiagem que tornasse possível velar seu corpo de outra forma que não escondendo o que restara de seu corpo. E quem ali estava não tinha interesse nenhum em ver seus traços. As notícias dos últimos dias já os fizera ver Gabriela com a antiga máscara. E sua antiga beleza, caso ainda existisse, não mais enganaria ninguém.
A capela recebeu mais de uma centena de pessoas. A maior parte curiosos e jornalistas atraídos pela curiosa da jovem nascida em família rica, que escolheu o crime e agora já fora apelidada pela imprensa como a “princesa da prostituição”. Pouquíssimos familiares e amigos das famílias Alencastro e Benitez compareceram. E até mesmo o religioso que veio fazer uma oração pela alma de Gabriela Alencastro por pedido de Rúbia, parecia constrangido com a situação. Somente a matriarca pareceu orar sinceramente pela sobrinha.



Diante do austero caixão, Rúbia tentava entender onde aquela família se perdeu. Há menos de um ano ela chorava a morte do cunhado, a quem seu marido muito ajudou, apesar de jamais ter confiado a gerência da BTez. Só agora ela entendia as razões de Ramón. Ele desejava manter o irmão por perto apenas por desconfiança. Um a um, no entanto, todos foram morrendo, esvaziando sua vida. E saber que Gabriela fora responsável por mortes era uma ferida a mais em seu peito. Restou apenas Miguel. E agora os netos que ele lhe deu. E era nessa nova geração que ela desejava pensar.

            - Vamos acabar logo com isso, Padre. Faça o que tem de fazer o mais breve que puder. – Ordenou ao religioso, mantendo a fachada firme pela qual todos sempre a reconheceram.

            Enquanto o padre iniciava seu rito, Rúbia olhou em volta. Viu mais desconhecidos que pessoas queridas. Do lado de fora da capela, os jornalistas faziam entradas ao vivo, recontando a história já conhecida pela sociedade e alertando para que, a qualquer momento, teria início a saída do corpo. Apesar da mágoa, Rúbia autorizou que o corpo fosse sepultado no mausoléu da família.
            Rúbia também reconheceu alguns policiais. O que achou estranho, no entanto, é que os identificou pelos rostos conhecidos, que frequentaram sua casa enquanto Elizabeth lá viveu. Muitos não usavam farda ou qualquer identificação. Estavam ali por alguma razão bastante específica. Com um arrepio atravessando sua espinha, ela olhou para Miguel. Abatido, seu filho parecia ter envelhecido muito nos últimos dias, talvez meses. As dificuldades no casamento e na empresa somaram-se as pressões da paternidade. Aquele menino que desejava apenas ser médico, ganhou uma empresa para gerenciar e essa organização caiu em seu colo justamente em seu pior momento.
A expressão fechada de Miguel naquele momento nada tinha a ver com a BTez. Era Elizabeth e sua persistência em ignorar qualquer pedido seu que o irritava. Ela ainda convalescia de um parto difícil, tinha um recém nascido em casa e, mesmo assim, ali estava, com a cabeça em uma investigação policial.



Elegantemente vestida em um traje todo preto e maquiada com uma perfeição que Miguel raras vezes observou, Elizabeth poderia se passar facilmente por uma familiar abalada pela morte de Gabriela. Mas Miguel não cairia nesse golpe. Nem ela tinha a pretensão de fazê-lo crer em algo assim.

            - Gostaria de perguntar onde você escondeu a arma nessa roupa. – Ele disse ao sentar-se ao lado da esposa.
            - Sem armas, querido. Estou de licença, lembra? Estou aqui como sua esposa. – Ironia era algo bem conhecido pelos dois.
            - Então porque eu vejo a policial Elizabeth Benitez aqui na minha frente?
            - Por que é o que eu sou, armada ou não. E eu achava isso um assunto velho. Qual o seu problema, Miguel?
            - Meu problema é o fato da minha mulher não conseguir atender a um pedido meu! Nem mesmo quando é algo que envolve o nosso filho, que acabou de nascer! – Ele a acusou, deixando de lado as meias palavras. E viu raiva nos olhos de Elizabeth.
            - Benício está alimentado e bem cuidado por Bia. E em uma hora eu estarei de volta em casa, em tempo da próxima mamada. Está bem assim?
            - Claro...afinal sua irmã está às voltas com a saída da cadeia do namorado criminoso. É um ótimo ambiente para o nosso filho.
            - Pois se você não acha bom o bastante, vá você ficar com ele. Leve Benício e Catarina com você para a BTez todas as manhãs. Afinal, você tem tanta responsabilidade quanto eu por eles! E é o fim desse assunto aqui! Sua mãe já está nos olhando feio.
            - Quer saber? Faça o que bem quiser!

            Sozinha, Liz já se arrependia de ter comparecido ao velório. Além de seu corpo sofrer bem mais do que a maquiagem e roupa deixavam transparecer, sua mente estava em casa, com Benício. Seu menino, tão frágil e pequeno, merecia uma mãe melhor. Daquelas mulheres que, aconteça qualquer intempérie, não sai de arredor do berço, sempre pronta a defender a cria.

            - Essa não sou eu, infelizmente. – Disse à si mesma.

            Durante toda a gravidez, não faltaram pessoas a lhe dizer que a culpa era um sentimento a sempre acompanhar as mães. Talvez por culpa da sua frieza, jamais acreditou. Sempre julgou-se superior a isso. Benício tinha poucos dias e ela já entendia o que era sentir-se mal simplesmente por fazer o mesmo que realizada semanas atrás. É que agora, ao passar horas trabalhando, sem descansar ou se alimentar, também era seu bebê quem sofria.

            - Não sei quem exibe a pior expressão, você ou Miguel. – Matheus aproximou-se discretamente. Ele veio ao velório junto de Patrícia para prestar seu apoio à amiga. – Devo acreditar que fingem para manter a aparência de sofrimento por Gabriela.
            - Você sabe que não. Por mim, ela pode queimar no inferno por milênios e, ainda assim, será um castigo brando demais. – Amarga, Liz não media as palavras, mesmo numa cerimônia religiosa. – Mas meu problema agora é Miguel. Ou melhor, eu sou o problema de Miguel.

            Matt poderia ter opinado. Sabia exatamente qual o problema e conhecia o casal o bastante para entender o que se passava. Porém, conhecia-os tanto que entendia que qualquer conselho de nada serviria naquele momento. Eles precisavam do tempo a passar para que os sentimentos se assentassem e eles, pela rotina, aprenderiam a ser pais. Ele não disse, mas enxergava o que ocorria. Sua amiga e o marido tentavam, em vão, viver a vida de antes, quando, a partir do nascimento de um filho, nada podia ser igual.
            Um desconhecido que lesse seus pensamentos questionaria quem ele era, um advogado com quase 33 anos, criado num orfanato e que passou mais de uma década na mais infrutífera vida amorosa. Ele, cuja família sempre fora composta apenas pelos amigos. Ele, que sempre preferiu levar as companheiras ao motel para não lhes dar esperança de relacionamentos duradouros. Ele, que jamais pensou em casar e ter filhos. O que justo ele entendia sobre ser um bom pai ou mãe? Tudo. Porque ele cresceu sem tê-los.

            - Benício é um bebê de sorte. Tem grandes pais. Vocês ainda vão descobrir isso.



            Antes de voltar a falar, Elizabeth acariciou a face de seu amigo como apenas ela tinha liberdade para fazer sem despertar o ciúme de Paty.

            - Porque esse tom de voz tão amargo, Matt? Você não é assim.

Nem ele sabia responder. Talvez fossem os sentimentos muito mais profundos a tomar seu coração que o deixassem assim. Talvez amar gerasse isso. Ele não sabia, afinal, não era acostumado a ter um sentimento tão profundo dentro do peito.

            - Sei lá...deve ser o fato de estar em um velório.
            - Não, nós dois sabemos que não tem nada a ver com Gabriela. Eu nem sei bem o que você faz aqui com Patrícia. Onde ela está, aliás? – Pelo amigo, Liz estava disposta a deixar os seus problemas de lado.
            - Foi pegar um ar lá fora.
            - Ótimo. Aproveite para me contar o que há. Vocês brigaram? A baixinha é brava, não?



            - Muito. – E pela primeira vez naquele dia Matt se pegou sorrindo, ao lembrar-se de sua última briga com a namorada. – Mas eu e Paty estamos muito bem, sem brigas.
            - Ótimo! Eu queria poder dizer o mesmo. Mas se não é Paty e, eu sei, também não é o escritório, o que há?
            - Acho que você já descobriu o que é, Liza. Pense bem, se não for Paty ou o escritório, o que mais é a minha vida? – Ele começou, quase constrangido. – Patrícia se transformou não em parte, mas em toda a minha vida, a fatia mais importante, pelo menos.
            - E isso é ruim?
            - Sei lá...as vezes eu acho que é. Amo Paty. Muito. Mais do que eu gosto de reconhecer. Mas olho para a minha vida e...me parece vazia. Sempre sonhei com família. Sei lá, você e Bia sempre superaram melhor o fato de ter crescido num abrigo.

            A história de vida de Matheus era muito bem conhecida por Elizabeth. Enquanto ela e Bia sofriam pelo desconhecimento de jamais terem descoberto porque ela e a irmã foram deixadas no estacionamento de um aeroporto, Matt sentia a dor do conhecimento. Ele já era grande o bastante para entender o que se passava quando sobreviveu ao acidente que matou seus pais e a irmã mais velha. Hoje, Luiza, de quem ele não esquecia a face de menina, apesar dos anos passarem rápido, hoje já teria quase quarenta anos. O que ele também não esquecia, era a única visita que recebeu dos avós. Eles lhe abraçaram, mas não o levaram para casa.
            Apesar de conhecer a vida do amigo muito bem, Elizabeth por vezes se dava conta de que não o compreendia. Bom estudante, homem de princípios, uma grande pessoa, sua solidão era de surpreender qualquer um. Dono de uma personalidade fechada, às vezes triste, ele não permitia que muitas pessoas o conhecessem de verdade. Isso explicava a falta de relacionamentos amorosos, apesar do interesse feminino. O espaço que Patrícia conseguiu cavar naquele coração nunca mais seria o mesmo. O que Elizabeth não conseguia reconhecer, porque era algo completamente novo, era aquela infelicidade, surgida tão de repente.

            - Você e Paty estão noivos, Matheus. Era para você estar feliz. – Liz tentava entender.
            - E eu estou, muito. Talvez esteja apenas ansioso por formar uma família.

            Família sempre foi um assunto doloroso para Matt. E talvez fosse justamente isso a incomodá-lo. De repente, ele se viu cercado por bebês das amigas. E sem os seus. E ele sabia que, com Patrícia, não teria filhos biológicos.

            - É o fato da mulher que escolheu para ser sua esposa ser estéril que está te deixando assim? – Depois de usar um termo tão direto Liz arrependeu-se de sua objetividade.
            - Não, não, não! – Ele negou veementemente enquanto olhava envolta. Caso Paty ouvisse algo desse tipo, ficaria ferida. – Patrícia é a mulher da minha vida! E podemos adotar crianças.
            - Então...?
            - Quero fazer essa mulher feliz, a mais realizada de todas. É idiota, eu sei. Mas as vezes eu queria ter uma família para oferecer à Paty.
            - Pare de se torturar pelo que não tem, Matheus. Nós dois sabemos que Patrícia também não vem de uma família modelo. Ela te ama e agradece o que já ofereceu pra ela. Não complique as coisas. Marque logo a data desse casamento, compre uma casinha branca e adote meia dúzia de crianças. Você quer a família do comercial de margarina! Está na sua cara!
            - Eu vou tratar de fazer isso. – Não pela casa ou pelo comercial, mas pela mulher que lhe fez ter vontade de mudar a vida. Quando o telefone começou a vibrar ele ignorar. Até ver o nome da namorada no visor. – Espere um minuto Liz. Tudo bem Patrícia? Tá...Mas por que? Não eu...eu estou indo.
            - Tudo bem, Matheus? – Liz achou o amigo ainda mais estranho.
            - É Paty...ela quer ir embora. Está nervosa...sei lá. Vou encontra-la no estacionamento e depois te ligo.
            - Tá. Liga mesmo. – Liz achou estranho, mas tudo naquele dia parecia assim. – Se precisar de algo, é só chamar.
            - Claro. Mas...tentarei não precisar. Você ainda tem de lidar com um enterro. E tem Benício te esperando em casa.

...

            Benício estava naquele momento descansando em seu berço, no novo apartamento de Liz e Miguel, após ter sido trocado por Beatriz, sob o olhar atento de Eva. Seria uma cena familiar perfeita, não fosse aquele bebê não ser dela, Eva ainda a olhar estranho para aquela que era sua mãe e aquele ser um ambiente completamente novo para os três.
            O coração de Bia, no entanto, estava distante. A qualquer momento Sebastian chegaria, trazido pelo advogado. Apesar de toda a sua insistência, o namorado exigiu que ela não comparecesse na carceragem. Isso atrairia atenção de repórteres e era desnecessário expô-la a isso. Beatriz até pensou em lembra-lo de que ela sabia lidar com a imprensa, porque fazia parte dela. Ignorou, para evitar uma discussão.



Aquelas eram desculpas inventadas. Todos sabiam. O que Sebastian não desejava era que Bia assistisse as algemas lhe serem abertas. Ainda não tinha superado a humilhação de ser preso. E essa, estava longe de terminar. Sebastian não poderia deixar o Brasil ainda por longo tempo, além de permanecer monitorado por meio de uma tornozeleira eletrônica.
O acordou feito com a Polícia Federal previa a pagamento de uma fiança milionária, a comprovação, por meio de uma varredura em suas contas bancárias pessoais e das empresas, de que sua fortuna não foi engordada por meio de lucro oriundo do comércio sexual. Tudo isso, além dele se comprometer a ajudar a polícia a elucidar qualquer questão vinculada ao caso. Nomes de empresários e políticos foram ditos em depoimento. E isso, quando viesse a tona, se reverteria num escândalo internacional que ainda geraria um grande impacto nos negócios.
Ele poderia ter optado por não fazer acordo. E, de acordo com Aristeu, ainda assim dificilmente seria condenado a prisão porque jamais atuou com tráfico de mulheres e apenas fez uso de serviços sexuais. Poderia facilmente negar saber que elas eram qualquer coisa além de profissionais do sexo. Seu único crime consistia na compra de Beatriz e o depoimento dela lhe abonava muito nesse caso. Era justamente por Bia, e também por sua mãe e filha, que optou por assinar o acordo. Sua imagem estava suja demais. E só a verdade completa seria capaz de restaurar sua imagem. Errou muito com Beatriz. Tinha agora a obrigação de fazê-la se orgulhar dele como homem.
            Sebastian chegou ao apartamento percebendo a sutil provocação do destino. Aquele rico prédio, pelo qual ele acessaria o apartamento de Miguel e Elizabeth Benitez através da garagem, lhe serviria de palco para o reencontro com a mulher que amava. Justamente aquele apartamento, de posse da mulher que tanto tentou prendê-lo, mas que, ao menos aparentemente, agora lhe dava um voto de confiança forte o bastante pra lhe permitir ficar muito próximo de seu bebê recém-nascido.
            Sabendo da intimidade que aquele reencontro exigia, Aristou levou-o até a entrada do elevador e depois se despediu, entregando a Sebastian o endereço em que sua mãe e Luísa. Elas os esperavam para um jantar especial, em família, naquela noite. Com um sorriso no Sebastian agradeceu ao advogado e disse que certamente e lhe pediu um último favor. Precisava que lhe fizesse uma compra e deixasse em nome dele, numa embalagem discreta, na portaria do prédio de sua mãe.

            - Está bem, mas, tem certeza? Certas decisões não deveriam ser tomadas no calor do momento. – O idoso opinou, desacostumado aquele comportamento de Sebastian. No passado, seu amigo foi mais sensato.
            - Tenho sim. Descobri que os melhores momentos são os de calor. – Depois de um tempo preso, pensar demais nas decisões era tudo o que Sebastian não desejava. – Agora vou entrar, tem alguém que eu quero muito reencontrar.

            A porta estava destrancada e ele entrou no ambiente muito claro. Não havia ninguém na sala para recepcioná-lo. E a decepção foi deixada de lado por Sebastian quando ouviu o voz de Bia contarolar uma estranha canção. O bebê deve ter acordado. Um pouco constrangido, ele largou sobre o sofá da sala a mochila que carregava e seguiu pelo corredor, abrindo as portas. Encontrou um quarto de casal, banheiro e um cômodo ainda não completamente mobiliado que, aparentemente se tornaria um escritório, antes de abrir a porta certa.  Ali, viu uma bela menina, dona de traços similares aos de sua mãe, sentada a uma mesinha cheia de massinhas e modelar. Beatriz estava próxima a um berço, curvada sobre um bebê. E a forma tão familiar como aquele reencontro ocorria não passou despercebida a Sebastian. Beatriz sentiu a presença dele e, ao virar-se em direção à porta, já sorria. Nada foi dito antes de alguns passos porem fim a distância e o reencontro, fisicamente, se concretizar, mesmo que sob o olhas de olhos infantis.