segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Vidas Ocultas - Capítulo 9






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Texas – EUA

            Javier encarava a filha com tranquilidade. Ela tinha meios para ajudá-lo a viver por tempo indeterminado. E sabia de tudo.

            - Sabe que eu tenho uma imagem a preservar. Não posso me arriscar por você. Hoje conseguir vir discretamente aqui. Mas não pense que virei sempre.
            - Você só é o que é, Gabriela, porque eu paguei seus estudos e te ajudei a vida toda. Então você vai sim ajudar ao seu papaizinho. E se trouxe dinheiro e mantimentos, não precisará vir nos próximos dias. Eu mando notícias quando me instalar melhor.
            - Para onde pretende ir?
            - Ainda não sei. Tudo dependerá de como a investigação irá evoluir no Brasil. A essa hora, a polícia daqui deve estar me procurando e cercando a sua casa. Fique atenta. Se Miguel for condenado, o cerco diminuirá contra mim. É assim, querida filha, quando encontram um culpado, esquecem de puxar os outros fios.
            - É claro, papai. – O telefone de Gabriela tocou e ela desistiu de ignorar quando viu a chamada internacional. – Alô! Miguel, querido! Há quantos anos não recebo uma ligação sua. Lembrou dessa prima distante?

            Sorrindo, Javier observou a filha mentir calma e confiante para Miguel. Eles nunca conviveram. Gabriela nasceu no Brasil, mas foi levada para os EUA pela mãe aos 16 anos. Ela terminou os estudos nos EUA e logo assumiu postos importantes no tribunal de justiça. Sua imagem ilibada lhe permitia ter acesso a informações uteis ao esquema. Ela ajudou e lucrou por muito tempo com a ida de mulheres para locais de prostituição. Gabriela Alencastro era esperta. Miguel não perceberia que ela estava mentindo.

            - Sim, Miguel. Eu compreendo sua preocupação. A polícia já entrou em contato e até revistaram minha casa. Mas não sei de papai. Ele não entra em contato comigo há meses. E eu jamais o ajudaria a fugir da polícia.

            Javier não ouvia Miguel responder e quase era capaz de acreditar na veracidade das palavras de Gabriela.

            - Eu ainda não acredito que ele tenha feito isso. Mas se papai fraudou a BTez, empresa para a qual sempre trabalhou, eu fico extremamente decepcionada. E lhe garanto que ele não terá meu apoio, Miguel.

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            A tarde de trabalho de Elizabeth foi morna até ela receber uma encomenda nada discreta. Um boque de flores foi entregue em sua sala. Ninguém ousou ler o cartão endereçado a ela, mas os cochichos não pararam mais. As colegas queriam saber quem tentava ganhar o coração da investigadora e os policiais estranharam a ousadia. Elizabeth era conhecida pela forma dura com que tratava os homens. Tom foi único a notar instantaneamente quem era o remetente da encomenda.
            - Vão todos trabalhar e deixem Elizabeth em paz! Ela também tem mais o que fazer.

            Antes, porém, ela leu o cartão que dizia simplesmente: com toda a delicadeza que você merece. Não resistiu e pegou o celular. Miguel não podia ficar lhe enviando flores. Mesmo sem assinatura, alguém podia desconfiar.

            - Gostou do meu presente, Liz? – Ele já atendeu provocando.
            - Não faça isso! Já pedi para manter-se afastado até a investigação terminar. Não entendeu?
            - Entendi, mas não obedeço suas ordens. Entendeu?
            - Pode me criar problemas! Não quero que envie flores!
            - Sinto muito, mas vou enviar sempre que estiver com vontade. – Sua risada a fez sorrir também. Apesar da raiva. – Acho que você precisa se acostumar a ser tratada como uma dama, Liz. É assim que eu trato as minhas namoradas. Acostume-se.
            - Eee...eu não quis dizer que não gostei....só não aqui.
            - Está bem. As próximas eu mandarei para sua casa. Por falar nisso, quero te ver hoje a noite. Minha casa, sua ou nos encontramos em um hotel?
            - Hoje não Miguel. Tenho que trabalhar numas coisas. Amanhã nós ficamos juntos.

            Apesar das reclamações de Miguel, Elizabeth realmente não podia vê-lo naquela noite. Tinha inquéritos para analisar, além do relatório da polícia americana quanto a Gabriela Alencastro. Ficaria no prédio da polícia federal até muito tarde. Sua equipe estava avisada para sair após cumprirem suas tarefas e não interrompê-la. Desvendar um crime era como visualizar os passos do criminoso e, numa ordem cronológica, ver todos seus passos e assim poder antecipar a próxima ação. Isso exigia silêncio e dedicação. Após o expediente, Elizabeth pretendia analisar a vida de Javier e de Gabriela e tentar antecipar o próximo passo do fugitivo.



            Enquanto isso, cumprindo sua promessa à amiga, o advogado Matt foi ao presídio conversar com sua mais nova cliente. Aquela não era uma área do direito que o agradava. Normalmente atuava com direito de família, em casos de divórcio ou guarda de filhos, às vezes com de violência doméstica ou abuso contra menores. Também representava empresas em casos de roubo patentes e espionagem empresarial. E esses casos lhe rendiam muito dinheiro.
Hoje já podia se dizer um homem rico, levando em consideração ter sido criado em um abrigo do governo e estudado em escolas públicas toda a vida. Podia sentir-se um vitorioso. Razão pela qual, nunca negava-se a ajudar amigos daquele tempo. Elizabeth era uma delas. Ali estava ele, recebendo o caso de Patrícia Silva. Uma prostituta de 19 anos, presa ao entrar no Brasil contrabandeando drogas no próprio corpo. Eles tinham duas alternativas de estratégia de defesa. Ela dizia ser inocente e afirmava ser obrigada a trazer as capsulas estômago ou confessava culpa e tentavam um acordo no qual ela reduziria a pena entregando os comparsas.
De qualquer forma, seria mais uma jovem com a vida marcada pelo crime por preferir as ruas quando deveria estar estudando. Para Matheus isso era questão de caráter. Ele, Liz, Beatriz e tantos outros também não tiveram a melhor das infâncias e nem por isso acabaram no crime. Patrícia e as outras presas dessa forma não eram vítimas que não tiveram escolha. Elas também tinham responsabilidade no que fizeram e por mais que a defendesse a pedido de Liz, não pretendia protegê-la de tudo. A única chance de Patrícia era que alguém fosse duro o bastante com ela e lhe colocasse juízo na cabeça. Só assim sairia da cadeia buscando uma vida honesta. Só não contava com a aparência de menina frágil dela. Agora entendia porque Elizabeth sentiu vontade de ajudá-la.




            Ela olhou-o desconfiada assim que chegou. Sem usar o tradicional uniforme dos advogados por odiar gravata, Matt realmente não parecia um defensor legal. Mas era e estava disposto a ajudá-la. E ajudá-la, na visão dele, não era lhe passar a mão na cabeça e tratá-la como inocente.

            - Imagino que tenham lhe avisado da minha visita, patrícia. Vou tentar defender você da encrenca em que se meteu. Meu nome é Matheus Albuquerque da Costa.
            - É, aquela moça da polícia disse que você viria. Vai me tirar daqui, Matheus? Você é muito novo pra eu te chamar de ‘senhor advogado’.
            - Tenho 31 anos, Patrícia. Mais de uma década sobre você. – Olhá-la lhe trazia uma tristeza profunda. – Vamos ver como eu posso te ajudar.
            - Podia começar me trazendo uma carteira de cigarros. Estou necessitada.

            Aquela postura irritou Matt. Ela estava presa por trazer drogas para outro país e perdia o tempo com seu advogado para pedir cigarros.

            - Não Patrícia, eu não vou lhe trazer cigarros. E eu acho bom você se preocupar em me ajudar a tirá-la daqui. Agora, comece me dizendo para quem trabalhava na Grécia, como foi para lá, o que fazia e por que. E eu já te aviso que meu tempo custa caro. Minta pra mim e lhe dou as costas. Entendeu?
            - Você não tá a fim de me ajudar...acha que eu mereço ficar aqui. Bem típico de um advogado com nome de família boa...você não sabe o que é ficar sozinho na rua Sr. Albuquerque da Costa. – Ela debochou.
            - Não que lhe interesse, mas eu sei sim, Patrícia. Só que eu não escolhi cometer crimes por isso. Agora fale da sua vida. Porque não sou eu quem está preso. Agora! Segundo a sua documentação, você vivia Grécia, mas o voo no qual foi presa, veio da Rússia. Por quê?
            - Eu vivi na Grécia por alguns anos, fazia programas na rua ou em casas noturnas...eu não queria mais e...
            - Alguns anos? Você tem 19. – Era jovem demais.
            - Fui pra lá com 16 anos...mas já fazia programas no Rio de Janeiro desde os 15 anos. Eu fugi de casa.
            - Por quê?
            - Meu padrasto...ele não era legal. Eu vim de Minas Gerais para o Rio achando que conseguiria me virar e acabei na rua. Com 16 eu embarquei para a Grécia com documentos falsos. Eu sabia o que ia fazer lá...só não sabia que ia ficar refém deles. A língua deles é muito difícil...tinha medo de morrer gritando e ninguém perceber que eu gritava por socorro.
            - Onde a Rússia entrou nisso?
            - Só para despistar a polícia. Eu vivi na Grécia por esses anos, trabalhando nas ruas...até que um homem me comprou.
            - Comprou? – Matt estava enojado. – E levou você para onde?
            - Comprou dos homens que me levaram para lá e levou para um apartamento dele em Atenas...era uma prostituta exclusiva dele. Pra ele fazer o que quisesse sabe? Esses caras têm gostos excêntricos, sabe?
            - Não sei. Mas prefiro não saber os detalhes. E aí? O seu comprador tem nome?
            - Nikolay. É Russo e mantém um esquema de contrabando de êxtase da Europa para a América Latina. Mas ele nunca me levava para a Rússia e não costumava me usar nisso...só na cama mesmo. Daí aconteceu uma coisa e eu passei a irritar ele.
            - Que coisa foi essa?
            - Não te interessa!
            - Pode baixar a bola e começar a falar garotinha! Você não está em situação de se negar a falar. Quero detalhes desse homem.
            - Eu não tenho detalhes para te dar! Eu só tinha de abrir as pernas quando ele tava com vontade! E quando nem pra isso eu servia, resolveu me colocar nesse esquema. Eu embarquei para a Rússia e engoli as capsulas no aeroporto de lá, depois de já ter passado pela alfândega. Só me pegaram porque cheguei aqui passando mal. Podia ter morrido.
            - Devia ter pensado nisso antes de engolir a droga! Porque não se negou?
            - Porque eu tinha medo de acabar na rua novamente. Mesmo que Nikolay fosse...exigente e as vezes violento ainda era melhor que a rua. Ele não me deixava passar fome nem me emprestava pra outros homens. Ele era bom pra mim...
            - Bom? – Matt espantava-se no quanto ela se desvalorizava. E expressava-se bem, com clareza. Não era uma ignorante. – Um homem que compra uma menor de idade não me parece ‘bom’. Você o ama?
            - Não. Amor não é pra garotas como eu...que já passaram pelas mãos de tantos caras. Eu nem lembro com quantos já transei. E se um dia sair da cadeia, vou acabar na rua. Sei que vou.
            - Você estudou até que série, Patrícia? Pode concluir os estudos. – Ele sentia pena dela.
            - Estava no primeiro ano do ensino médio quando fugi de casa.
            - Quer que contate sua mãe? Procure-a em Minas Gerais?
            - Não. Só quero que me tire daqui. Pode fazer isso? – Ela o olhava de uma forma tão esperançosa que dificilmente conseguiria negar-lhe algo.
            - Eu vou tentar. Você foi obrigada a trazer essas drogas e é, claramente, vítima de uma quadrilha desde a adolescência. Não posso dizer para o juiz que você não fez algo que está provado, mas posso lhe explicar as razões que te levaram a isso e, aliado a um depoimento onde você ajuda a investigação dessa quadrilha e a esse Nikolay, tentar uma sentença ao seu favor. Você tem chance de sair daqui e eu vou me esforçar.
            - Obrigada. E o que eu faço enquanto isso?
            - Planos, Patrícia. Faça planos para ter uma vida melhor.




            Elizabeth só interrompeu sua pesquisa e leitura dos inquéritos para atender a ligação de Matheus. Não surpreendeu-se ao ouvi-lo emocionado com a história de Patrícia. Matt podia até tentar bancar o advogado frio, mas não era. Ele faria o possível para tirar aquela menina da cadeia e, mais do que isso, colocá-la num caminho melhor.
            Essa, infelizmente, foi a única boa notícia da noite. Apesar da análise detalhada, Elizabeth não descobriu nenhuma pista que levasse até Javier ou que indicasse um comportamento duvidoso de Gabriela Alencastro. Por mais que não confiasse nela cegamente, até o momento Gabriela era inocente sobre o olhar da lei. O que não a impediria de continuar mantendo-a sobre a vigilância da polícia americana.
            Já era tarde quando deixou a polícia. Foi ao subsolo do prédio carregando alguns processos e tentando encontrar a chave do carro no fundo da bolsa. Surpreendeu-se ao ver um homem alto e bonito encostado em seu carro. Miguel não tinha jeito mesmo.



            - Eu disse que essa noite iria trabalhar até tarde, Miguel. Já passa das 23hs e amanhã cedo tenho de estar de volta aqui.
            - É. Passa das 23hs e eu fiquei aqui criando raízes só pra ganhar um beijo quando você saísse. Me beija. Vem aqui. Vem.

            Depois de um dia exaustivo resistir àqueles lábios era quase impossível. Elizabeth deixou-se levar e permitiu-se alguns instantes em seus braços. Mas não passou disso. Logo se recompôs e mandou-o embora.

            - Boa noite, Miguel. – Disse dispensando-o. – Eu lhe disse que hoje era impossível. Amanhã nós ficaremos juntos.
            - Já é quase amanhã, Elizabeth. A gente pode esperar até a meia noite e...ficar juntos. Eu quero passar todas as noites com você. Não apenas algumas.

            Era tentador. Mas a resposta de Elizabeth não mudou.

            - Quando eu encerrar o caso. Antes seria loucura. Agora você vai para sua casa, Miguel. Eu vou para minha e amanhã a noite você vai me levar par um hotel e nós vamos fazer amor pela madrugada toda. Está bem assim?

            Não estava bem. Miguel não estava acostumado a ser despachado por mulher alguma. Talvez fosse justamente isso a atraí-lo até Elizabeth. Ela tratava-o como nenhuma outra. Mesmo assim, a raiva era tão grande quanto o desejo frustrado. Ele entrou em seu carro e saiu sem se despedir.

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