domingo, 24 de julho de 2016

Vida Roubada - Capítulo 24



            No movimentado saguão do hotel carioca, Sebastian encontrou-se com Gabriela. Ela havia lhe telefonado propondo um café da manhã juntos e em particular, mas foi mais uma vez rechaçada. Seria um encontro breve, com ele já carregando a própria mala. Tudo o que Sebastian desejava era alertá-la de que estava retornando aos EUA, sem dar detalhes da razão.

            - Lhe peço desculpas pelo transtorno, mas será impossível ir com você para São Paulo visitar o hotel. Meu procurador aqui no Brasil fará essa visitação, você pode acompanhá-lo se assim desejar. – Informou à loura rapidamente.
            - Não há necessidade. Eu confio plenamente na sua equipe. Só sinto não poder acompanhá-lo no retorno. Quero rever amigos e familiares que moram aqui no Brasil.
            - Eu compreendo. – Sebastian respondeu por educação. Na verdade, não a tinha convidado para a viagem de volta. Estava a cada minuto mais desconfiado de Gabriela. Atacarem o apartamento onde instalara Beatriz justo quando ele estava fora dos EUA à pedido da loura foi coincidência demais.
            - Quando eu voltar te aviso e marcamos um almoço. – Gabriela gritou quando Sebastian já tinha lhe dado as costas. Ela então já sabia que aquela arma estava perdida. Ele estava desconfiado e não mais lhe daria chance alguma de aproximar-se de Beatriz. – Não importa. Conseguirei mesmo assim.



            Vestida de forma recatada e com gestos cuidadosamente delicados, Gabriela entrou na casa onde hoje apenas Rúbia Benitez vivia. Um desperdício de espaço e dinheiro, ela pensou. A solidão da velha, no entanto, lhe poderia ser muito útil. Não seria difícil arrancar de uma idosa carente as informações de que necessitava. Um beijo na face, uma xícara de chá e alguns biscoitinhos depois, soube exatamente o que veio descobrir.

            - Se soubesse que ando passando, Gabriela. – A senhora, muito triste, falou enquanto acariciava o rosto do único filho estampado em um porta-retrato. – Meu Miguel está enfeitiçado por aquela policial. Ela tratou de tirá-lo de casa. E estão morando num apartamento minúsculo.
            - Ele vai ser pai...
            - Sim. E com duas mulheres diferentes! Alejandra e Elizabeth dizem esperar filhos de meu Miguel.
            - Dizem?
            - É...de Alejandra não tenho dúvidas, é uma mulher íntegra. Mas essa policial...não tem berço, você me entende, não dá para confiar. Ela pegou meu filho pela cama, não deve ter ficado sozinha quando eles brigaram. E aí usou a barriga para enlouquecê-lo novamente. Ele voltou feito um ingênuo.
            - Me entristeço, titia. Mas quem saber será mesmo seu neto e eles serão felizes. Talvez Elizabeth só precise de um pouco de carinho. Eu soube do que aconteceu com sua irmã. Muito triste.
            - É! Eu soube. E isso a tornou mais obsessiva! Acredita que mesmo grávida ela arrastou Miguel para Rússia para investigar por conta o desaparecimento da irmã? Ela sequer pode porque não é a Polícia Federal que cuida desses casos! Mas como sempre aquela lá só faz o que bem entende! E Miguel foi, é claro. Abandonou toda a BTez para seguir a esposa e impedir que coloque o bebê em risco. Pobre de meu Miguel.
            - Ela foi pra Rússia... - Gabriela já sabia de tudo aquilo, queria apenas uma informação. – Mas encontrou a irmã? Ou será que agora ela desiste?
            - Que nada! – Rúbia reafirmou. – Miguel não me conta mais nada...mas tenho minhas informantes dentro da empresa. A secretária de Miguel me contou que ele passa muito tempo fora, com Elizabeth, envolvido em uma investigação particular que estão fazendo. O chefe dela não sabe.
            - Nossa! – Gabriela fez seu ódio soar como surpresa. – Talvez ela encontre alguma pista então.
            - Não duvido. Por mais que desgoste dela, tenho de reconhecer sua obstinação. Ela não descansará enquanto estiver distante da irmã. Meu medo é que acabe ferindo esse bebê, que pode mesmo ser meu neto.
            - Que lástima, titia. – Pela barriga, Elizabeth já deveria estar no final da gravidez. Então Gabriela teve uma ideia. – Acho que vou visitar meu primo então titia. Será que o encontrarei na empresa?
            - Não sei...vive em casa cuidando da esposa. Mas lhe dou o endereço.
            - Obrigada, titia.

            Cuidar de Elizabeth, porém, teve de esperar. Primeiro ela precisaria dar um jeito no problema mais urgente. E esse chamava-se Gregory. Ao que parecia, Elizabeth poderia ter feito bem mais ligações do que ela imaginava. E já havia uma hipótese dela ter chegado ao seu nome. Era necessário tomar atitudes mais enérgicas.

            - Alô. – Em uma única ligação para a pessoa certa ela começou a resolver seu problema mais urgente. – Teremos de adiantar os planos...não...já disse que não tem como esperar! Ainda hoje o serviço tem de ser feito. Não sei como! Mas faça!

            A segunda ligação foi para Rússia. Para ter certeza de que sua segunda ameaça estava controlada. Vinha pensando em dar a ordem fatal à Samantha, mas a ideia de tê-la trabalhando na rua, numa constante humilhação, era por demais tentadora.

            - Otto, como está minha hóspede especial?
            - Trabalhando. E muito. Eu realmente entendo porque Gregory a quis só pra si. Aquela morena tem um fogo nos quadris que derruba qualquer um. – O gerente da boate respondeu.
            - Só espero que não derrube você!
            - Estou vacinado dela, não se preocupe.
            - Ela está trabalhando na rua ou no salão?
            - No salão. E rendendo muito. Não tem uma noite que pelo menos dois não a disputem. Ela sabe arrancar dinheiro deles.
            - Coloque na rua, na mais barata que tiver. Já disse que desejo o pior para ela.
            - Não estou passando para ela nenhum príncipe encantado, até porque esse não é meu público. Ela está abrindo as pernas para dois, às vezes três, por noite. Todos sem muita instrução nem delicadeza. E nos rendendo bom dinheiro.
            - Coloque-a na rua. Já falei e não vou repetir mais. E prepare-se para por fim nela em breve.
            - Por quê?
            - Ela só me interessava viva por Gregory, se precisasse dominá-lo. E amanhã esse problema não existirá mais.

            Otto obedeceu e ordenou que Samantha fosse para a rua encontrar clientes. Se na boate a clientela era ruim, porém conhecida, na rua poderia surgir qualquer pessoa. E o programa ocorrer em qualquer lugar, fosse um beco escuro ou hotel de péssima apresentação. O resultado disso foi muito desagrado para Samantha, mas ela já havia entendido que reclamar era pior. Então vestiu-se com as roupas que lhe deram para aquela tarefa e foi à rua, torcendo para conseguir fazer disso uma oportunidade.



            Usando meia arrastão e um vestido que pouco deixava à imaginação, ela ocupou um ponto na calçada e passou a atrair olhares. Muitas mulheres ofereciam o corpo naquela rua movimentada por homens que buscavam por sexo barato. Um programa ali valia quatro vezes menos que na boate, que já era menos que na casa de alto padrão que ela liderou junto de Gregory. Na Noxotb, a rua servia apenas para um castigo. Mostrar quem mandava e quem deveria obedecer. E deixar claro que sempre havia um destino pior.
            Mas ali não. No seu caso, ela soube assim que colocou os pés na rua que seria uma oportunidade. Já estivera do outro lado. E sabia o quanto era difícil controlar uma mulher na rua. O cliente é quem manda, o que significa jamais saber para onde iriam ou o que falariam a sós. O desafio dela seria encontrar o cliente certo.



            O primeiro que apareceu, no entanto, servia apenas para passar tempo. Um operário, garotão, com bastante fogo dentro das calças e pouco dinheiro nos bolsos. Levou-a para um quarto próximo, jogou-a sobre um sofá e fez tudo o que precisava rapidamente. Poucos minutos depois ela estava na rua, com algum dinheiro preso na calcinha e a necessidade de encontrar alguém que oferecesse oportunidades. Não esperava ser reconhecida por um homem que não via há muito tempo. Muito menos que ele tivesse intenções além da cama.



            - Samantha...não posso negar a surpresa que sinto. Vi o escândalo do fechamento da Noxotb, imaginei que estava presa, fugida, ou talvez morta. Mas jamais imaginei isso! Na rua...Samantha, que decadência hem? Quanto você está custando? Será que um trocado paga?
            - Nikolay! – Um antigo parceiro de Gabriela, Gregory certa vez lhe contou, que tornara-se um concorrente. – É, vivemos tempos difíceis. É uma surpresa encontrar você...mas tenho que trabalhar. Sabe como é...
            - Sei, sei sim...Mas estou interessado em conversar mais com você. – Ele se aproximou, passou o braço por sua cintura e beijou-lhe o pescoço. – E estou disposto a pagar.
           
            Samantha conhecia histórias horripilantes cujo protagonista era Nikolay. Um russo com negócios escusos na Rússia e na Grécia. Alguns diziam que Gabriela o tinha nas mãos e por isso ele jamais a entregou para a polícia. Outros tantos comentavam que na realidade era porque se a derrubasse, estaria prejudicando os próprios negócios. Eles eram iguais. Na frieza, na covardia e na ganância. A diferença é que para não concorrerem diretamente, Nikolay atuava na Grécia com prostituição e no tráfico de drogas sintéticas da Europa para a América Latina, Gabriela dominava a prostituição na Rússia. Funcionou, por algum tempo. Agora ele começava a pensar que Gabriela cairia e essa seria a sua oportunidade de tomar o mercado dela.

            - Sim, faz tempo que não nos vemos...desde...aquela viagem. Nos encontramos no seu apartamento na Grécia, eu estava com Gregory...e você também acompanhado. Como se chamava a menina?
            - Não interessa. – Ele respondeu seco demais. – Ela não existe mais. Agora vamos.
            - Pra onde?
            - Pra onde eu quiser. – E puxou-a pelo braço sabendo que alguém a vigiava para garantir que não fugisse.

            Quando enfim chegou à sua casa, já ao passar pelos portões Sebastian percebeu um clima diferente no ar. Antes de abrir a porta principal já ouvia as risadas de Luísa. Assim que entrou no cômodo pôde observar a menina sentada no chão da sala mostrando cada uma de suas muitas bonecas para a nova moradora da casa. Beatriz brincava com a menina e acariciava uma das bonecas. De olhos fechados, ela não percebeu a chegada de Sebastian. E ele notou sua emoção. Pensava na filha deixada no Brasil, ele imaginou. Com olhos apurados, não demorou a perceber a marca escura na lateral de seu queixo, nem o leve inchaço num dos pulsos. Ela estava ferida, e ainda assim estava linda, vestida de forma muito simples e sem nenhuma maquiagem no rosto.



            - Filhinha, só não esqueça que Beatriz não é uma de suas bonecas. – Sebastian disse quando a pequena levantou-se dizendo que planejava fazer um penteado em sua mais nova amiga.

            Ao ouvir sua voz, Beatriz abriu os olhos e ergueu-se do chão. Não soube se deveria manter-se fria e sem tocá-lo ou se podia atirar-se em seus braços como desejava. Lidar apenas com Luísa era bem mais fácil. Apesar de curiosa e cheia de perguntas, era fácil desviar da garotinha tão carente de atenção. Já de Sebastian era praticamente impossível fugir.

            - Nós estamos brincando, papai. Ela tem o cabelo bonito né? – Luísa respondeu.
            - Sim. Muito bonito. – Sebastian beijou a filha. Mas então precisou tirá-la da sala. – Onde está a vovó filha?
            - Cozinhando com a Clare. Elas querem fazer a receita de bolo de chocolate da Bia. – A garotinha adorava falar. E Sebastian estava surpreso com sua disposição. – Deve tá muito gostoso.
            - Deve. O bolo da Bia e muito bom. Porque não vai lá na cozinha ver se já está pronto.
            - Mas não tem nem cherinho de chocolate ainda.
            - Mesmo assim, vai lá filha.

            Sebastian enfim conseguiu ficar sozinho com a amante, tão perfeita na sala de sua casa e brincando com sua filha, mas, ainda assim, apenas sua amante. Estendeu a mão para que ela deixasse o chão e viesse lhe abraçar. Sentiu o perfume de seus cabelos e ficou feliz em vê-la menos arrumada do que normalmente o esperava no apartamento. Preferia aquela versão mais honesta da mulher mais bela que já conhecera na vida. Não soube o que fazer, no entanto, quando tudo que os cercava transbordou dentro dela em forma de lágrimas. Sebastian continuou abraçando-a enquanto ela chorava silenciosamente.

            - Passou, não precisa ter medo. – Ele disse suavemente. – Você reconheceu aqueles homens?
            - Não...mas devem ser de Gregory. Só pode.
            - Impossível. A boate não existe mais. Foi fechada pela polícia brasileira meses atrás...logo após eu tirá-la de lá. – Sebastian disse e viu Bia empalidecer. – O que houve? Senti-se mal?
            - Polícia brasileira, você disse?
            - Sim. Uma investigadora policial lidera a investigação. Parece que uma série de mulheres do seu país vem todos os anos para boates como a Noxotb.

            Só podia ser Liz, Beatriz pensava. Há anos ela tentava pôr fim em crimes desse tipo. Elizbeth estivera na Noxotb logo depois ela ter saído de lá para viver ao lado de Sebastian. Ela poderia estar em casa agora, ao lado de Eva e de Liz. E Sebastian...ele estaria preso. E essa ideia lhe doeu no peito. Tudo aquilo fez com que Beatriz senti-se as pernas enfraquecerem. Não se reconhecia mais, não sabia mais como levar sua vida. Não conseguia imaginar-se de volta ao Brasil e trabalhado numa redação, sem ter Sebastian por perto. Mas também não poderia seguir naquela vida indefinidamente, não era uma propriedade dele.E precisava rever sua família.

            - Beatriz! – Sebastian assustou-se. – O que tem? Há algo que precisa me contar? Fale...por favor. Confie em mim.

            Confiar no homem que fez negócios com Gregory, que ajudou a financiar alguns dos horrores que viveu naquele lugar, que comprou-a disposto a lhe escravizar e que lhe mantinha sob vigilância era impossível. Mesmo que dentro de seus olhos visse a mais completa preocupação e que essa vigilância tenha lhe salvado a vida.

            - Não tenho nada para contar...só estou em choque com tantas coisas. – Ela mentiu.
            - Claro...vamos subir. Tomar um banho juntos e relaxar. Você se sentira melhor. – Sebastian fingiu que acreditou.

            Eles relaxaram na banheira, entre carinhos que não foram sexuais. Essa era a primeira vez que se encontravam sem desejar sexo, que experimentavam uma rotina de casal. Sebastian a tirou da água, secou e colocou sobre os lençóis de sua cama. Não as de um hotel, mas a sua cama. Mulher alguma dormiu ali após o fim de seu casamento. Ainda assim, parecia certo ter Beatriz entre aqueles lençóis.



            - Fico feliz que esteja aqui. – Confessou a ela.
            - Aqui na sua cama?
            - Não. – Ele estava sendo mais sincero do que por toda a sua existência. – Aqui na minha vida. Aqui na minha casa, com minha mãe e Luísa. Essa casa não ouvia sorrisos há bastante tempo.

            Dormiram abraçados e sem transar. Sebastian pensou que teriam tempo para isso ao amanhecer. Agora que ela estava ali, teriam tempo para tudo no momento em que desejassem. Jamais permitiria que lhe tomassem Beatriz. Jamais poderia ficar sem ela.



            Naquela manhã Elizabeth deixou o apartamento em que vivia com Miguel sem esperá-lo. Saiu ouvindo seus gritos de que precisava manter a calma e se cuidar. Afinal, na entrada do oitavo mês de gravidez e bem mais inchada do que deveria, ela não estava em condições de suportar a carga emocional que seu trabalho por vezes exigia. E esse era um desses momentos.
            Elizabeth fora acordada pela notícia de que sua testemunha fora morta dentro do presídio, durante uma briga com outro detento devido a uma facada no pescoço. Elizabeth já levantou-se da cama aos gritos, vestindo as roupas um tanto apertadas enquanto engolia um sanduíche e dava instruções a Rebeca. Aquilo não ficaria impune. Alguém, mais uma vez, tentava lhe impedir de chegar na verdade, de chegar em sua irmã.

            - Quero saber tudo sobre essa briga. E sobre esse outro preso. – Avisou.
            - A carceragem diz que ele é violento mesmo e...
            - Não! – Elizabeth gritou em resposta. – Não aceitarei isso. Vão ao inferno com suas explicações. Eu mesma falarei com esse homem. E quero saber que visitas ele teve. Qualquer contato com o mundo externo. Ele matou minha testemunha! Minha chance de pegar Gabriela. Que inferno!
            - Acalme-se Elizabeth. Pense no seu filho...
            - Quer me acalmar, Beca? Faça o que estou mandando!
            - Já estou fazendo. – Rebeca conhecia bem demais a colega para se ofender com seu jeito. – E descobri que Sebastian já retornou aos EUA. Foi ontem ainda pela manhã. Mas Gabriela segue no Brasil. Não sei bem porque.
            - Eu sei...dar fim a Gregory era um compromisso inadiável pra ela. – Enfim ela começou a se acalmar. – Mas tudo bem.  Ela está agindo com pressa agora, eu a tirei do sério. Vai deixar rastro. Conseguiu investigar Sebastian.
            - Sim. Te apresento um relatório assim que chegar na PF.
            - Ótimo, estou indo.

            

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