A alegria de Clara ia
muito além de um passeio com o homem que de ‘tio’ passou a ‘papai’ em poucas
semanas. Lorenzo não estava ao seu lado apenas em brincadeiras no parque,
compras no shopping ou doces após o jantar. Ele a deixava na escolinha logo
cedo, chamava sua atenção quando se comportava mal e secava as lágrimas quando
caía. Lorenzo era realmente o seu ‘papai’ e ela havia descoberto que ter um pai
é muito bom.
Naquele primeiro passeio sem a presença de Jéssica,
Lorenzo e Clara fizeram compras pela manhã, almoçaram e passaram a tarde no
parque. Quando enfim buscaram Jéssica no trabalho os dois estavam cansados,
sujos e felizes. Por isso Jéssica já esperava. E pelas sacolas de compras
também. O que não a impediu de Jéssica reclamar.
- Não era para você mimá-la. Esse era o acordo. – Ela lhe
disse.
- Culpado. Não tenho nenhum argumento para a minha defesa.
A não ser, é claro, o meu imenso e recém descoberto amor por sua filha.
- Aquela que chama você de ‘papai’ agora.
- Essa mesmo. – Jéssica nunca tinha visto Lorenzo tão
relaxado e brincalhão. – Você se importa de nós termos escolhido ser pai e filha?
Não era questão de se importar. E sim de temer por um
futuro menos belo em comparação com o presente. Clara estava feliz em ganhar o
pai que jamais teve. Seus olhinhos brilhavam só de ouvir Lorenzo estacionar o
carro na frente da casa todas as manhãs.
- Não. É ótimo ver Clara feliz. Eu só...só não quero
vê-la sofrer no futuro. Nenhum outro homem frequentou a nossa casa, Clara é
muito pequena para entender que você é meu namorado e que, no futuro, pode não
estar mais com a gente.
Jéssica não entendeu o sorriso charmoso que Lorenzo lhe
deu. Na verdade, esperava que ele rechaçasse qualquer referência a um término
de relacionamento. E ele lhe brindou com um sorriso tranquilo e sensual.
- Quer saber? As crianças estão certas. Aproveitam a
felicidade sem se preocupar com nada mais. – Ele lhe beijou tão carinhosamente
que Jéssica pensou em encerrar o assunto por ali mesmo, fazer como Clara, e
apenas ser feliz enquanto aquele homem estava com elas. – Estou cansado de
tanto correr para acompanhar o ritmo dessa garotinha que agora cochila na
cadeirinha do carro. Cansado e feliz,
Jéssica. Eu passei hoje um dos dias mais felizes da minha vida. Sou um homem de
sorte de ter encontrado vocês e não pretendo abrir mão dessa felicidade.
- Fico feliz em ouvir isso. – Ela o amava...mas não
deixaria de lhe cobrar o combinado. – Não quero que encha Clara de presentes.
Não quero que a sustente. Ela é minha responsabilidade, não sua.
- Chiara me chama de pai. Isso me dá alguns direitos.
Além disso, algumas sacolas não são dela...são suas. – Lorenzo provocou. E logo
depois mudou de assunto para evitar brigas. – Outro acordo nosso me interessa
mais hoje.
- Qual?
- É sexta-feira e você estará de folga amanhã! Isso
significa que vocês vão para minha casa! E Chiara está exausta, vai dormir a
noite toda. Eu terei você inteira pra mim. Isso me dá ideias maravilhosas.
- Ora... mas você não está cansado e...
- Não duvide do que eu sou capaz, Jéssica, não duvide. –
E com isso Jéssica teve certeza que Chiara fazia muito bem pelo humor de
Lorenzo.
Noites de amor e paixão, e, também, de despedidas quase
adolescentes tornaram-se rotina nas vidas deles nas semanas que se seguiram.
Chiara conseguiu, inclusive, que seu novo pai a colocasse para dormir. Lá no
fundo Lorenzo começava a se perguntar se valia a pena alongar aquele namoro
quando oficializar o relacionamento era tudo o que seu coração desejava. Apenas
a juventude de Jéssica o fazia retardar o pedido de casamento.
- Ela tem tanto para aproveitar ainda. – Ele olhava pela
janela do restaurante em que marcara de almoçar com Jonas. – Jéssica tem de
estudar, trabalhar e conquistar sua independência. É isso que a fará feliz.
Mas havia alguns pontos negativos naquele plano.
Prolongar o namoro significava um relacionamento menos definitivo do que ele
desejava. Depois de casados, ele poderia requisitar a inserção de seu nome como
pai de Clara no registro dela. Eles viveriam juntos, formariam uma família e as
duas estariam para sempre amparadas por ele e pela lei.
- Talvez eu venda o apartamento e compre uma casa. – Ele
cogitava, bebendo água enquanto esperava Jonas. Apenas não viu o irmão se
aproximar.
- Vai vender o apartamento? – Jonas ouviu Lorenzo
pensando em voz alta e estranhou.
- Não, não. Foi apenas um delírio. Esqueça, Jonas. Deixe
pra lá. Que bom que chegou. Vamos almoçar.
Jonas deixou o assunto de lado e naquele primeiro
encontro com Lorenzo após o casamento, contou as alegrias e dificuldades de ter
dado adeus à vida de solteiro. Agora era oficialmente um marido. E, mesmo tendo
desposado uma mulher muito independente, isso representava responsabilidades. Emily
tomava muito de seu tempo. Até mesmo quando distantes. Porque ele podia estar
no escritório e ainda assim ela seria a dona de seus pensamentos e preocupações.
Principalmente no que atingia sua saúde.
- Estou sentindo você um pouco preocupado. Ainda mais
para um recém casado. O que há? – O irmão lhe perguntou.
- Não tem nada a ver com o casamento. Emily me faz feliz
a cada dia.
- Isso a gente percebe de longe. Então qual a fonte dessa
preocupação?
A preocupação de Lorenzo tinha fundamento. Naquelas
semanas eles não se encontraram por falta de tempo. Foram muitos compromissos
e, quando tinha uma folga, preferia ficar em casa, acariciando Emily. Além
disso, seus problemas eram muito íntimos. Por mais que amasse Lorenzo e tivesse
com ele uma relação aberta, algumas coisas eram íntimas demais para serem
externadas. Medos, principalmente. E nenhuma outra palavra explicava o aperto
que sentia no coração. Medo de assistir Emily sofrer e não poder fazer nada.
Tinham feito mais uma tentativa de inseminação artificial. E estavam no
terrível e interminável intervalo até saber o resultado. Caso não concebesse,
seria mais uma decepção para Emily suportar. E ele apoiar enquanto escondia o
próprio sofrimento. Aquela ansiedade toda estava fazendo mal para eles, além de
forçar o corpo de Emily em tratamentos agressivos.
- Fizemos uma nova inseminação. Só estou ansioso com o
resultado. Apenas isso. – Ele resumiu para Lorenzo.
- Estou torcendo por vocês. E Vida? Como está o processo?
Essa era outra fonte de preocupação. Enquanto problemas
burocráticos impediam a chegada da filha em sua casa, eles a visitavam e viam
crescer linda e rapidamente. Estavam a cada dia mais encantados por Vida.
Agora faltava pouco. Ao menos foi o que o advogado
garantiu. Passaram pelas entrevistas, juntos e individualmente. Responderam
questões íntimas, mas que entendiam a necessidade. Alem de outras que
consideraram absurdas. A assistente social desejou saber as razões daquela
adoção. Emily não hesitou em responder.
- Desejamos ser os pais de Vida. Já a consideramos nossa
filha. A amamos e vamos protegê-la para sempre. – Disse enfática e segura como
sempre.
- Vocês se casaram após Vida ter sido abandonada. É,
portanto, uma união muito recente. Uma criança não irá atrapalhar o
relacionamento? Lembrem-se que estamos falando de um ser vivo, que exigirá
atenção e não poderá ser devolvido por arrependimentos. – A profissional
afirmou enquanto os observava.
- Não temos um relacionamento recente. – Jonas lhe
afirmou. – Namoramos há seis anos. E já estávamos noivos quando Vida foi
abandonada. Decidimos ficar com ela após pensar muito. Jamais nos
arrependeríamos.
- Ótimo. – A assistente social parecia estar gostando
deles. – Vocês pretendem ter filhos naturais?
- Sim. Pretendemos. – Jonas foi discreto. Desejava pular
aquelas perguntas para evitar o sofrimento de Emily.
- Eu estou fazendo tratamento de fertilidade. – Ela foi
mais franca.
- Eu compreendo. – Mas aquela informação gerava mais
curiosidade profissional. – Então Vida também vem suprir um o desejo de serem
pais, dificultado pela genética. E como será quando tiverem um filho biológico?
Sua relação com a adotiva será afetada de qual modo?
- Não será! – Dessa vez a voz de Emily se elevou um
pouco. - Vida é nossa filha mais velha. E isso seguirá independente de termos
ou não biológicos.
- A única mudança é que Vida terá irmãos caso nós
consigamos conceber. Nada mais será diferente. – Jonas complementou. O ‘nós’
era para que a responsabilidade não caísse apenas nos ombros dela, já tão
pressionada por aquela situação.
- Perfeito. E qual a reação de vocês caso, no futuro,
Vida resolva conhecer sua mãe biológica? Ela está respondendo processo por
abandono de incapaz e não terá acesso à filha, mas, no futuro, caberá a vocês
informarem à menina as condições dessa adoção.
Jonas viu a expressão de Emily mudar. Ela não imagina
Vida próximo daquela mulher nunca mais. Ela não apenas foi incapaz de cuidar da
filha como a abandonou num local sem habitantes. O objetivo era matar, não
havia outra opção. Então eles não viam razão para ela receber visitas de Vida,
seja onde for. Mas essa era uma resposta considerada egoísta e não os ajudaria
na garantia da guarda.
- Quando tiver idade o bastante para entender o que se
passou, Vida poderá escolher se deseja se encontrar com a...sua genitora. –
Respondeu ele, de forma vaga, mas correta, conforme o advogado indicou.
Ao saírem do conselho tutelar a assistente afirmou que
logo teriam uma resposta. Porém, lhes pediu que evitassem visitas a Vida até
esse dia. Caso a resposta fosse emitida de forma favorável, viria acompanhada
de um registro de guarda provisória. E eles poderiam enfim levá-la para casa,
mesmo que sem a adoção definitiva enquanto os papéis corriam no cartório.
Tudo ia bem, mas ficar sem ver Vida estava difícil. Isso
explicava muito da expressão mau humorada com que Jonas contou tudo aquilo para
Lorenzo. E o irmão entendia, agora mais do que nunca. Porque também pretendia
adotar oficialmente uma filha muito em breve. A única diferença é que ele já havia
desistido de ser pai biológico e estava satisfeito em ter Chiara.
- Está tudo pronto para receber Vida, então? - Lorenzo
perguntou enquanto já comiam.
- Sim. Preparamos um quarto para recebê-la. É
impressionante como o apartamento agora parece grande demais quando estou
sozinho.
- Sim, sei bem como é. – Ele também não gostava de ficar
em casa sem Jéssica e Chiara. Eram elas que faziam aquele lugar ter vida, ter
alma. – No final das contas vovó e vovô estavam certos. Iríamos encontrar
mulheres para amar e lhes dar bisnetos.
- Verdade. Mas eu não tenho certeza que poderei lhes dar
bisnetos de sangue. Apenas Vida. Essa demora para o tratamento funcionar me
assusta.
- Por quê?
- Você pode achar bobagem, Lorenzo, mas eu sempre pensei
que não devíamos lutar contra a natureza. Ou, os mais religiosos diriam ‘contra
a vontade de Deus’. É isso o que eu e Emily estamos fazendo, mês a mês,
inseminação por inseminação fracassada. Às vezes eu me pergunto se não é hora
de desistir enquanto ela está bem e tem saúde para criar Vida ao meu lado. Eu
olho para Vida e penso que talvez Deus tenha nos dado ela para suprir o vazio
que a falta de uma criança nos deixava. E mesmo assim estamos insistindo.
- Mas a saúde de Emily está frágil? – Aos olhos de
Lorenzo a cunhada parecia muito bem e disposta como sempre.
- A endometriose é muito dolorosa. Eu não consigo
assisti-la sofrer daquela forma.
- Converse com Emily então, Jonas. Talvez ela esteja com
as mesmas preocupações. E, para nossa família, Vida é tão neta quanto qualquer
outra criança que vocês gerarem. Assim como Chiara. Eu não terei filhos de
sangue.
Aquilo surpreendeu Jonas. Sempre achou que o irmão seria
ótimo pai e, agora, vendo-o com Clara, percebia que estava certo. Era estranho
vê-lo tão convicto falar que não pretendia gerar um filho quando minutos antes
lembrava a felicidade que era ter Clara e Jéssica em sua vida.
- Por quê? Jéssica é muito jovem. Vocês têm tempo de
casar e ter filhos no futuro.
- Não é só idade que pesa, Jonas. Emily não foi mãe antes
porque quis estudar, abrir seu negócio e conquistar sua independência. Que
direito tenho eu de tomar isso de Jéssica? Seria egoísmo privá-la disso porque
eu sou mais velho e não tenho filhos. Não. Vovó que me perdoe, mas estou
satisfeito em exercer a paternidade com Chiara.
Mais cinco dias se passaram e Emily não mais suportava
aquelas duas ansiedades. A guarda de Vida e o sucesso da fertilização. Ela estava
nervosa, estressada e agitada demais para ficar em casa. Por isso,
trabalhava mais horas e acabava desagradando Jonas. Uma das incertezas começou
a ser respondida quando ela sentiu as cólicas terem início.
- Emily? Vá descansar. – Márcio disse ao vê-la pegar
remédios na bolsa. – Você chegou aqui pela manhã. E Já são 22hs. Tenho certeza
que seu marido está ansioso para tê-la em seus braços.
- Não que eu vá poder aproveitar muito daqueles braços,
Márcio. Mas você está certo. Eu irei sim. Boa noite.
Quando chegou em casa a dor estava forte e Jonas percebeu
na falta de brilho dos seus olhos. Entendendo e respeitando que nesses momentos
a esposa precisava de privacidade, deixou-a relaxar sozinha num banho de
banheira e esperou-a no quarto com uma xícara de chá e seu kit de analgésicos
sobre a cama.
- Obrigada. Você é perfeito. – Emily agradeceu ao se
deitar. – Não foi dessa vez. Amanhã vou telefonar para Leonor e conversar com
ela sobre outras técnicas que possamos fazer para agilizar a concepção.
- E lá vem mais drogas, mais procedimentos invasivos,
mais sofrimento.
- O que quer dizer, Jonas? Você sabia que não seria
fácil, nunca o enganei. Porque então...
- Porque te ver sofrer mexe comigo. Desculpe se isso é um
pecado! – Ele ergueu a voz e assustou Emily. Jonas não era assim. – Deixa pra
lá, Emily. Eu não devia ter falado nada.
- Eu quero que fale. Prefiro que diga o que sente. Agora
que começou, termine.
- Eu quero esse bebê tanto quanto você, Emily. Mas estou
assustado com o quanto isso pode custar emocionalmente. E se esses tratamentos
estiverem fazendo mal pra você? A cada mês você sente dores mais intensas. Não
adianta tentar esconder, eu percebo.
- Eu as suporto há duas décadas. Não se preocupe.
- Sempre me preocuparei. Sempre. – Ele lhe acariciou o
rosto e salpicou pequenos beijos em sua testa – O advogado disse que em cinco
dias sai a guarda provisória e Vida vem para casa. Talvez devêssemos aceitar
que ela é a nossa filha e...e...desis...
- Não! – Ela não aceitou nem mesmo ouvir. – Desistir não
está nos planos. Eu não vou abrir mão da gravidez e aceitar ser mutilada pra
parar de sofrer. Eu vou vencer essa doença custe o que custar.
Jonas sabia que seguir naquela discussão não daria
resultados. Então deitou-se ao seu lado e esperou que ela se acalmasse. Guardou
as preocupações para si. E resolveu que antes de novas tentativas de
inseminação iria conversar com Leonor. Aquele bebê era muito desejado, mas não
valia ariscar a vida de Emily.
No dia seguinte as dores abdominais de Emily se
intensificaram e ela foi obrigada a avisar Márcio que seria impossível ir
trabalhar. Ele já estava habituado a comandar a equipe e os outros chefes de
cozinha assumiram os turnos de almoço e jantar. Cozinheiros, auxiliares e
garçons seguiram com seu trabalho normalmente. Jéssica seguia como auxiliar de
cozinha e agora já estava bem adaptada. Seu trabalho era preparar os alimentos
para os chefes. Lavava legumes, cortava carnes e ajudava as cozinheiras nos
preparos mais simples. Havia, inclusive, aprendido a preparar muitas receitas
diferentes e mais elaboradas. Estava feliz.
-Tenho um pedido para te fazer. – Disse Lorenzo ao
buscá-la no trabalho naquela noite.
- Diga. Mas depois de me beijar.
- Eu terei de viajar para o Sul em dois dias. Meu pai pediu.
– Ele explicou após provar dos lábios dela. – Preciso dar atenção a algumas
coisas da vinícola.
- Sentirei sua falta. Ficará muito tempo?
- Não. Viajo na quarta-feira pela manhã e retorno na
noite de quinta-feira. Mesmo assim, gostaria que você e Chiara viessem comigo.
O clima está ameno e Chiara poderia brincar no campo. Você ficaria com minha
irmã e mãe enquanto eu resolvo meus negócios. Venha, por favor. Eu falo com
Emily e peço que te libere.
- Não, Lorenzo. – Ela até gostaria, mas não fazia sentido
ter vantagens apenas por Lorenzo conhecer sua chefe. – É impossível. Emily se
afastou por alguns dias por motivo de saúde. Além disso, não posso fazer isso
sempre que você tiver seus compromissos fora de São Paulo.
- Mas...
- Vá tranquilo. – Ela tornou a beijá-lo na porta do
restaurante. – E volte logo para os meus braços. Eu e Clara estaremos te
esperando.
Lorenzo aceitou a decisão dela e ajudou-a a se sentar no
banco do carona de seu carro. Fechou a porta, deu a volta no veículo e partida
no motor em poucos segundos. Nenhum deles percebeu que foram observados durante
aquela conversa. As palavras de carinho, os beijos e afagos não agradaram em
nada quem veio à procura de Jéssica.
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