O abrir os olhos de Ariella não poderia ter sido mais
amargo. Ela estava confusa, com os pensamentos nublados pelo acidente e pelos
remédios. Mas algumas coisas eram claras. A culpa de Diego é uma delas. Assim
que sua consciência voltou, teve recordações do que aconteceu no acidente e
soube que Diego tinha responsabilidade. Ouvir a voz do pai a fez sentir um
calor no peito, era alguém conhecido e que a amava a vir ficar ao seu lado. E
então a temperatura desceu até que ela sentiu-se gelada.
“se passar para mim a quantia, eu não o denuncio”
Assim
que percebeu o quão doentio e criminoso seu pai é, ela abriu os olhos e não
mais pode segurar a emoção. As lágrimas vieram em desespero, num choro
explosivo e dramático que sacudia seu corpo e o fazia doer. Ao vê-la acordada e
naquele estado, ambos mudaram de comportamento, Diego aproximou-se para tocá-la
e foi afastado aos gritos. O pai a quem sempre entregou toda a sua confiança
sequer tentou. Ele a conhecia como ninguém e sabia que não havia como colar
aqueles cacos.
-
Saiam os dois daqui. – Gritou assim que as lágrimas lhe permitiram expressar o
que sua mente gritava desde muito cedo. – Saiam!
Pelas
horas seguintes Ariella escolheu ficar só, a não ser pela presença dos médicos
e enfermeiros. Até mesmo Dulce teve dificuldade para encontrar a amiga acordada
naquele despertar turbulento. E sem família por perto, a equipe médica precisou
lhe oferecer notícias nada fáceis de aceitar.
- Senhora Bueno...eu realmente gostaria de que possamos
conversar na presença de um acompanhante. Ter apoio psicológico é sempre muito
importante.
- Eu sou uma mulher adulta, Doutora...
- Carmela Hernández. – A médica respondeu.
- Doutora Hernández, sou sozinha e responsável por mim
mesma. E prefiro que me chame de Ariella Aguirre. É meu sobrenome por parte de
mãe. Agora diga o que tem a dizer.
De forma calma e delicada, mas sem esconder nenhum
detalhe do real diagnóstico, Carmela relatou a Ariella o que lhe aconteceu,
segundo as informações da equipe de resgate, quais os ferimentos e possíveis
complicações. Em alguns momentos ela se calou apenas para permitir a Ariella
alguns instantes para captar a informação e superar a dor do impacto. Em menos
de uma hora de conversa, Ariella soube que esteve grávida de três semanas de um
bebê que já não existia.
- Não lhe deixou nenhuma sequela, fique tranquila. – É,
não havia lhe deixado nada. Foi tudo o que ela pensou quando a médica tentou
lhe oferecer conforto. Nunca quis um filho de Diego e aquele aborto lhe pareceu
justo dentre tudo o que aconteceu.
As cirurgias nas pernas ficaram dolorosamente marcadas em
seu corpo. Sentia-as a cada respirar do corpo. E saber que elas não só deixaram
cicatrizes profundas em sua pele como também dificilmente conseguirão reparar
todo o estrago feito em um acidente que quase nada tinha de acidental.
- Eu irei andar ou não? É só isso que preciso saber.
- Espero que sim. As cirurgias foram bem sucedidas e a
senhora tem tudo para andar...após muita fisioterapia e esforço. E depois
poderá pensar em fazer plásticas para esconder as cicatrizes.
- Não estou preocupada com isso no momento. – Foi a
amarga resposta oferecida. – Só quero ficar sozinha enquanto tiver de ficar
nesse hospital.
- Você tem amigos que desejam lhe ver, além de pai e
marido. Não quer vê-los?
- Hoje não. Quero ficar sozinha para pensar. Posso?
- É claro. O delgado também está muito curioso e quer lhe
falar.
- Por favor, Drª. Diga a ele que não estou em condições
para presta depoimento. Por agora, não posso voltar a isso. Quer estar mais
forte.
- É claro. – E com isso a médica se retirou. Aquele caso
era realmente diferente de tudo o que já tinha feito.
Somente no dia seguinte Ariella aceitou ver alguém. E
esse alguém não foi o pai nem Dulce. Muito menos Diego, apesar dele estar
sempre por lá. Ela permitiu a entrada apenas da avó de Diego, Anita. E ambas
tiveram uma longa conversa. Foi mais a curiosidade que a fez aceitar vê-la porque
nesses meses vivendo na Espanha, jamais tinha visto ou ouvido falar de nenhuma
avó.
- Sou Anita Bueno, gostaria de ter conhecido você numa
situação melhor, Ariella.
- É mãe do homem que tornou Diego no monstro que é. –
Machucada por dentro e por fora, Ariella não se preocupou em proteger a senhora
de nada.
- Meu neto não é um monstro, posso lhe garantir. Mas
reconheço que ele ofereceu a você apenas a sua pior face. Infelizmente, meu
Ramón não soube proteger o filho do sofrimento e acabou nutrindo nele
sentimentos ruins.
- O sofrimento da sua família não me importa mais. Só desejo
ficar longe de Diego. – Ariella disse, com raiva.
- Eu compreendo e vim aqui justamente para lhe dizer que
Diego nada fará para impedi-la de voltar para sua família. Eu já conversei com
meu neto e, por mais que não aceite ainda perder a esposa e pareça realmente
ter sentimentos por você, não irá se negar a lhe oferecer o divórcio. – A idosa
garantiu.
- Ódio. É o único sentimento que Diego tem por mim.
- Nisso você não poderia estar mais enganada. E por isso
eu lhe peço que pense bem antes de levar à polícia o que aconteceu, por mais
que tenha motivos para tal.
- Está bem, eu preciso estar melhor e mais forte para
decidir o que fazer de minha vida. Eu entrarei em contato quando puder deixar o
hospital e então faremos um acordo.
Com um abraço as duas selaram, ao menos em parte, uma
tentativa de paz. Na verdade, após ouvir da voz do próprio pai que tudo não
passava de um plano para lhe roubar a herança, começou a entender a vontade de
Diego em se vingar dos Amara. Ainda assim, a mágoa que sentia do marido parecia
não diminuir. Porque confiou nele e o amou mais do que tudo. Todo esse amor
agora se tornara uma revolta.
Na semana em que se seguiu, Ariella continuou negando os
pedidos de Diego para recebê-la. E isso o foi deixando a cada dia mais triste.
Quando a avó lhe contou dos planos de permitir seu retorno a Argentina, ele
negou, caindo em pranto e pedindo a avó que a convence-se de ficar, mesmo que
em outra casa e distante dele.
- Preciso vê-la, saber que irá se recuperar...que não lhe
fiz tanto mal assim. – Pediu a avó, mas lá no fundo sabia que mentia.
Desejava-a perto para tentar reconquistá-la. – Por favor.
- O que você precisa, meu neto, é retomar a vida e
colocar a cabeça no trabalho. Se um dia essa moça vier a superar o que
aconteceu, não será agora. Por isso, se prepare para lhe dar o divórcio.
Ariella foi recuperando as forças e, enfim, aceitou
receber Dulce e Murilo. Percebia o quanto os dois estavam próximos e, estava
claro, que ali começava uma paixão. Ela não ficou chateada, apesar da amizade
de Murilo com Diego, estava claro que aquele rapaz era diferente de seu marido.
E Dulce merecia um amor avassalador assim. Mesmo que o dela tenha terminado
mal.
Dulce enfim soube de tudo o que aconteceu. Uma parte foi
Murilo quem contou e o restante Ariella. Pelo jovem administrador, Ariella
conheceu mais um pouco da história dos Bueno e da infância triste de Diego.
- Nada desculpa o que ele fez! – Dulce tratou de lembrar.
- Nem eu estou dizendo isso. – Murilo emendou. – Mas sei
que não é um homem mau. Talvez um dia vocês conheçam ele de verdade, como eu e
meus pais.
- Eu não. Por que logo deixarei esse hospital e começarei
uma nova vida. – Ariella já tinha planos. – E vou precisar muito da sua ajuda,
Dulce.
Sozinhas, as duas amigas decidiram várias coisas. Com
algumas Dulce não concordou, mas aceitou-as mesmo assim. As semanas reclusa no
quarto de hospital lhe ofereceram tempo para pensar e resolver qual vida queria
seguir. E também aceitar notícias ruins. Ela andaria, mas não da mesma forma.
De todas as formas a equipe tentou lhe dizer que teria uma vida normal e
caminharia bem se fizesse fisioterapia, mas a verdade estava revelada em seus
exames. Havia um desgaste em um dos ossos da perna, uma atrofia difícil de ser
compensada e que lhe geraria um descompasso em cada passo dado.
Aceitando o fato, decidiu que a partir daquele dia
nasceria uma nova Ariella. Talvez nem tão bela e perfeita quanto a do passado,
porém mais forte e resistente. Essa viveria da verdade e não enganada como a
outra foi. Muitas coisas mudariam dali em diante. A começar que agora ela sabia
que tinham o próprio dinheiro, deixado pela mãe. Uma grande fortuna que seu pai
sempre desejou. Contratou um advogado e com a ajuda dele tomou posse de seu
dinheiro. Só então resolveu que era hora de ficar cara a cara com Diego e com
seu pai. Mas antes pediu a Dulce mais uma ajuda.
- Tem certeza? Eu acho você tão linda exatamente assim. –
Dulce discordou.
- Tenho. Essa Ariella não existe mais por dentro. Deve
morrer por fora também.
Cada vez em que se olhava no espelho, Ariella via os
cabelos vermelhos e se lembrava de quando Diego a chamava de “Mí Sol”. Queria
matar aquela imagem e aquela lembrança, dando adeus aos cabelos ruivos.
Quando Diego e Afonso colocaram os olhos
em Ariella novamente, ela tinha os cabelos negros como a noite e um olhar ainda
mais gelado. O encontro ocorreu no escritório do advogado quando já fazia um
mês do acidente e Ariella havia recebido alta hospitalar. Ela encarou os dois
homens responsáveis pelo seu sofrimento e viu a surpresa nos olhos deles ao
vê-la caminhando com o apoio de Dulce. Logo, porém, levou o assunto para fatos
objetivos.
- Eu tenho uma única proposta para
vocês dois. Ou aceitam ou vamos resolver isso na justiça...e na polícia. –
Avisou a ambos.
Diego encarava Ariella com
sofrimento. Primeiro porque já entendia qual a proposta dela e sabia que
colocaria centenas de quilômetros a separá-los. E a cada passo difícil que ela
dava, ele se sentia mais culpado.
- Será que um dia você irá me
perdoar, Mí sol? – Ele perguntou, mesmo a frente de tantas pessoas.
- Nunca mais me chame assim! Você
foi muito rápido em achar culpados por pecados do passado, Diego. – Ela sabia
ser muito cruel, mas desejava vê-lo sofrer. - Agora lide com as suas culpas.
Veja bem o que fez comigo. E lembre-se que aquele filho existiu e morreu por
essa vingança.
- Eu nunca vou esquecer... – Ele
disse com lágrimas nos olhos. Era uma culpa que sempre lhe pesaria nos ombros.
- Ótimo. Vamos ao que interessa
então.
A proposta de acordo consiste em ela
receber sua independência completa. A herança da mãe e o divórcio. Diego
devolveria a empresa ao comando de Afonso e assim eles não teriam mais nenhum
vínculo. E ele diria ao delegado em depoimento oficial que tudo não passou de
um acidente. Sem escândalos nem processos, todos sairiam sem problemas com a
justiça.
- Mas sem o dinheiro, não
conseguirei salvar a empresa, minha filha. – Afonso tentou argumentar.
- Problema seu! Agradeça eu não o
denunciar por fraude. Afinal, eu nunca soube que tinha dinheiro a receber. Da
minha herança, não receberá um centavo.
Aquela discussão pouco interessou a
Diego. Já estava disposto a entregar a empresa a Afonso e esquecer sua
vingança. O que lhe doía é ter de oferecer o divórcio e dar adeus a Ariella.
Não estava pronto para aceitar nunca mais olhar para aquela mulher.
- Eu a amo...posso te mostrar ser um
bom marido. Eu posso...vou te mostrar...te provar...só fique aqui, não vá para
longe.
- Acabou Diego. Eu vou embora de
Madri ainda hoje. Adeus!
Ariella ergueu-se da mesa e de braço
dado com Dulce foi deixando a sala. Ao fundo podia sentir a dor daqueles que a
olhava. E ainda ouviu a voz de Diego.
- Pra onde você irá? Sua casa não é
mais na Argentina. Você sabe disso.
- Vou para o Brasil. Quero voltar a
pintar e lá encontrarei um bom lugar para viver. – Ele não tinha porque saber,
mas ela lhe disse. – Adeus, Diego. Espero que você supere o seu passado e seja
feliz aqui.
- Não serei, não sem você, Mí sol.
Um dia você vai me perdoar.
- Não conte com isso.
11
anos depois....
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