Terceira Fase
Rio de Janeiro, Brasil,
2016
Olhar-se no espelho a cada manhã
ainda não era uma tarefa fácil. Por 11 anos Diego tentou superar o que
aconteceu. Por cada um desses dias lutou para manter-se distante de Ariella e
deixar que ela superasse o mal que lhe fez. E fracassou em cada um deles, na
tentativa de esquecê-la e retomar a própria vida. O máximo que conseguiu foi
transformar toda a dor em vontade de trabalhar para esquecer. Quintuplicou seu
dinheiro, espalhando sua rede de hotéis por todo o mundo, mas não conseguiu dar
um rumo em sua vida particular. A humilhação de ter sido abandonado por uma
esposa magoada ainda lhe calava fundo no peito, sobretudo porque sabia ser o
causador daquilo tudo.
O sofrimento e a humilhação sentida por
Diego era algo inacreditável, mas conhecido apenas pelos mais próximos. A verdade
jamais chegou às manchetes de jornal e hoje Diego pensava que se tivesse
acontecido em 2016 e não lá num distante ano de 2005, ele seria odiado em todo
o planeta por ter mantido uma esposa presa contra vontade e quase causado sua
morte. Sem a facilidade atual de comunicação nem celulares com câmeras de alta
resolução, a verdade foi facilmente guardada em segredo porque Ariella assim
preferiu. Ela havia ido até o pai e acertado a situação. Já afastado dela,
Diego soube das vergonhosas tentativas de Afonso lhe pedir ajuda financeira e,
após alguma insistência, ela lhe deu uma alta quantia. Depois disse adeus.
- Não passa de um aproveitador, que
usou minha mãe, depois se aproveitou da mãe de Ariella e agora recorrerá a
filha sempre que precisar sair de um buraco financeiro. – Diego disse à Ítalo
certa vez.
- É verdade. Mas isso não lhe diz mais
respeito. – O amigo o lembrou. – Ela já não é sua esposa nem mais aquela menina
imatura.
A separação foi muito comentada,
principalmente na Espanha e na Argentina. Afinal, quando vem à tona que um
Conde se casou às escondidas e o casamento acabou em poucos meses, as revistas
de fofoca vendiam bem mais. Ambos declararam não combinar com a vida um do
outro, o que não satisfez a curiosidade das pessoas, mas encerrou com o
assunto.
Já em posse de sua fortuna e assumido uma
nova vida no Brasil, reconstruiu seus planos, agora considerando ter condições
financeiras para fazer qualquer coisa, mas com dificuldades físicas. Encontrou
na arte algum alento ao sofrimento e nas belas paisagens brasileiras a inspiração
para pintar. A felicidade estava sempre ao seu lado, mas nunca junto com
Ariella. Apesar dele ter cumprido cada ponto do acordo firmado, ter lhe
oferecido o divórcio e nunca ter se coloca à sua frente nessa década, ainda
sentia que faltava algo. Um dia, tinha certeza, teria que reencontrar Diego e
acertar tudo o que foi deixado para trás. Talvez então conseguisse ser
plenamente feliz. Infelizmente a coragem lhe faltava e sempre que encarava os
próprios olhos frente a um espelho pensava ver a palavra ‘covarde’ escrita.
Ela ainda tentava traduzir os
sentimentos que tinha por Diego. Mágoa, sem dúvida. Uma dor que não cessava. Ao
contrário, se fortalecia sempre que o mancar da perna a lembrava o quanto ele
podia ser cruel. Havia uma revolta muito grande dentro dela que nem mesmo os 11
anos de sucesso profissional e independência financeira foram capazes de
apagar. Talvez, isso só acabasse realmente quanto eles ficassem cara a cara.
Sabia também que ele somente havia lhe
deixado ir embora por medo de um escândalo e por se sentir culpado pelo
acidente. Aquele contrato vergonhoso e ilegal que informava que teria
autorização para se separar de Diego depois que lhe desse um filho ainda estava
guardado por ela, no fundo de uma gaveta. Ela perguntava-se o que teria
acontecido caso ela não tivesse fugido, batido contra o portão e matado o filho
em seu ventre. Teria ido embora e contestado a cláusula absurda? Ou vivido ao
lado dele submissa aos seus caprichos pelo bem da criança? Até hoje não sabia
como responder.
Em Madri, Diego mantinha as mesmas
dúvidas. O que teria ocorrido? Era até hoje questionado pela avó quanto ao
futuro dos Bueno. Afinal ele jamais se casou, nem teve outro relacionamento
duradouro, apesar das tentativas feitas pelas acompanhantes de uma única noite.
Elas desejam mais. Ele deixava claro ser impossível. Na sua cabeça, ainda tinha
um compromisso com Ariella e estava traindo o casamento a cada vez que
procurava uma mulher na rua. Por esse mesmo motivo, sentia ódio sempre que
ficava sabendo que ela se relacionava com algum homem. A ideia dela com outro,
na cama, o navalhava por dentro. Os conselhos de Anita, já com idade muito
avançada e ansiosa por um bisneto, não faziam efeito e Diego jamais teve planos
de reconstruir a vida com outra mulher.
- Assim como a história dos seus pais é
passado, a sua e de Ariella também. – Ela desejava que a antiga nora fosse
feliz e, se casados não foi possível, então que Diego desse adeus em seus
sentimentos e formasse outra família.
-Não. Porque eu e Ariella estamos vivos
e um dia ela irá me perdoar. Em meu coração ainda sou marido de Ariella. – Ele
sempre respondia, não importava o tempo que passasse.
Mesmo de muito longe, Diego continuava
a acompanhar a vida de sua ex-mulher. Muito pelo que Murilo lhe falava. O
relacionamento dele com Dulce mostrou-se duradouro e eles estava casados há
vários anos. Ela se mudou para Madri, mas viajava com frequência acompanhando-o
nas vistorias que fazia nos hotéis. O do Rio de Janeiro era o seu favorito,
inclusive para rever Ariella. A amizade das duas jamais diminui, assim como a
animosidade dela por Diego.
Diego desconfiava que, não fossem os
conselhos de Dulce para se manter distante, ao menos uma amizade fria eles
teriam mantido. Murilo, no entanto, lhe jurava que a esposa não interferia nas
decisões de Ariella.
- Ela só oferece apoio. A adaptação ao
Rio, um lugar onde a praia faz parte da vida das pessoas e os corpos estão
expostos, não foi fácil para ela com as marcas do acidente. – Ele lhe revelara
há algum tempo. Ariella optou por jamais fazer as plásticas reparadoras nem voltar
aos cabelos naturalmente ruivos.
Quem não a conhecesse poderia pensar
que se enterrou em depressão. Mas não foi assim. Depois de tomar conhecimento
de sua fortuna, Ariella fez inteligentes aplicações financeiras e decidiu não
manter empresas. Tentaria viver de sua arte e acompanharia o dinheiro que sua
herança vinha rendendo. Ela se tornou uma artista de sucesso e fez diversas
exposições pelo mundo. Em todas esteve presente, posando aos fotógrafos sem
reservas. Sua carreira como pintora estava se consolidando e ela se tornava
muito famosa. Convivia com a imprensa de forma amigável. Apenas negava-se a
falar do acidente e dar detalhes de sua vida particular. Todos a viam chegar
bela como uma rainha em vestidos de gala e fingiam não perceber seu andar difícil
e seus sapatos rasteiros.
Ela teve alguns breves relacionamentos
nesses anos. E em cada vez que Dulce contou alegremente que Ariella estava
namorando, Diego sentiu o coração se apertar. Temia que Ariella resolvesse
casar novamente. Ao menos, o tranquilizava saber que ela conseguiu superar esse
trauma de sua vida e ter relacionamentos saudáveis. Percebia que ela tinha no
Brasil uma vida norma.
Diego ficava feliz por ela, mas também
preocupado. Ariella havia sido criada dentro de uma redoma, protegida de tudo.
E agora se encontrava sozinha e a mercê de quem desejasse machucá-la. O Brasil
não era um país seguro e Diego se preocupava com a ex-mulher como se sua
segurança ainda lhe coubesse. Ítalo seguidamente vinha lhe falar em deixar
Ariella no passado, mas Diego não conseguia. De Olívia muitas vezes também
recebia conselhos, logo descartados.
Muitas dúvidas ainda estavam presentes
e ele mal suportava a ideia de nunca mais vê-la. Logo que ficou sabendo que ela
estava vivendo no Brasil, pediu que Ítalo mantivesse uma equipe cuidando de sua
segurança sem que soubesse. Por todos estes anos Diego, mesmo de longe, pode
acompanhar sua evolução como artista e como mulher. A maturidade estava lhe
fazendo bem e, ao menos pelos olhos do ex, parecia mais linda a cada dia. Em cada
vez que expôs seu trabalho, Diego a aplaudiu à distância. Sempre que trocou de
cenário em busca de momentos de solidão para pintar, ele acompanhou a mudança.
Esteve durante mais de uma década à sua sombra, sem jamais ela desconfiar. Algo
lhe dizia que assim deveria ser.
Agora Ítalo lhe trazia uma notícia preocupante,
mas que, porém, oferecia a chance de ficar próximo dela mais uma vez. Enfim
poderia sair das sombras. Ao que parecia, a equipe de segurança liderada por
Ítalo havia descoberto a possibilidade de um sequestro contra Ariella. Vivendo
em uma área afastada e sozinha, ela era um alvo fácil. Uma empregada da casa em
que Ariella morava atualmente, em Angra dos Reis, tinha ligação com o tráfico
de drogas e estava passando informações sobre o cotidiano de Ariella. Ela
estava se preparando para uma nova exposição e teve que viajar muito
recentemente, neste tempo pessoas desconhecidas tiveram a entrada na casa facilitada
pela doméstica.
Diego poderia ter apenas notificado a
polícia brasileira ou colocado mais pessoas junto a Ariella, ou, ainda, tê-la
avisado da descoberta, mas decidiu ir até ela e protegê-la pessoalmente. Devia
isto à esposa e talvez ainda pudesse dar ao seu casamento uma nova chance. Lá
no fundo ainda nutria essa expectativa.
Ao acordar naquela manhã ensolarada, Ariella
saiu na varanda de sua casa para avistar o mar e se deliciar com a paisagem. Foi
nadar e, apesar do esforço que isso exigia dos músculos de sua perna, era uma
sensação que lhe fazia sentir bem. Depois lidaria com a dor. Desde que se
separará de Diego e estava morando no Brasil, tinha visitado lugares
inusitados. Hoje morava em Angra, mas já conhecia praticamente todo o país.
Cada cenário estava estampado em seus quadros e memória.
Os turistas eram conhecedores deste
lugar mágico e enchiam as praias no carnaval e na passagem de ano. Ela, no
entanto, conhecia lugares mais calmos e únicos no mundo todo. O nordeste tinha
o por do sol e as brancas areias que nunca conseguiria tirar da memória. As
florestas do norte eram de beleza espetacular. Quando lhe perguntavam qual o
local mais belo, ela vacilava, mas escolhia as Cataratas do Iguaçu, pela força
daquelas águas. Força essa que jurara carregar com sigo para onde fosse. No
Brasil, até mesmo as favelas tinham seu lado bonito, mesmo que cercadas pela
dor e a pobreza.
Envolta em tantas belezas, Ariella
sentia vontade de viver ali por toda a vida. Fez amigos e possuía uma vida
social ativa, porém reservada. Não gostava de festas e ia somente aonde sabia alcançar
a paz. Holofotes lhe lembravam seu casamento e esta lembrança ela desejava
apagar. Em Angra dos Reis possuía uma casa belíssima, com um estúdio próprio
para seu trabalho artístico. Ariella a havia escolhido pela beleza da antiga
construção, e do local afastado e tranquilo. Por ser relativamente grande,
precisou contratar empregados, e nunca ficava totalmente só. Ainda assim, não a
atrapalhavam. Eram pessoas que conhecia há pouco tempo, mas em quem ela
confiava. Carla era a mais nova moradora da casa, uma arrumadeira muito jovem e
alegre, em quem Ariella percebia uma vontade exagerada de agradar. Naquele
momento ela lhe trazia um suco que não tinha pedido, como que para reforçar
esse pensamento.
-Obrigado. – Ariella a observou. – Eu
já estava descendo. Não precisava se incomodar.
-Não é incômodo. – Depois de um momento,
a jovem e bela mulher voltou a falar. – A senhora não vai às festas neste Carnaval?
Ariella vinha ouvindo esta pergunta há
alguns dias. Poucos brasileiros eram imunes a grande festa popular. Nas noites
de folia, o país para e a alegria toma conta de todos. O amor também é um
sentimento que fica no ar e paquerar e beijar desconhecidos é normal durante
aqueles dias. Logo que chegou ao Brasil ela não resistiu e foi assistir aos
desfiles no Rio de Janeiro. Voltou encantada! Mas sozinha. Seu coração estava
acomodado e traumatizado. Também não se sentia bem sendo vista com vários
homens. Superou isso nos anos que se passaram. Teve vários relacionamentos. A
maioria poderia ter sido mais duradoura se eles aceitassem apenas o que estava
disposta a oferecer. Mas os homens queriam mais do que um encontrou furtivo por
semana enquanto ela nada mais tinha a oferecer. Ser cortejada e pedida em
casamento era algo a quem não almejava mais.
-Não. Vou ficar aqui. – Todos os
convites foram negados. – Sozinha! Você e os outros estão liberados para curtir
a folia.
Já sozinha na imensa casa e vendo pela
televisão os festejos, Ariella relembrava os momentos felizes em sua vida. Sua
infância foi solitária e cheia de mimos. Ela não sabia o que era ter os pais
por perto e, para compensar, tinha tudo o que queria e não precisava. Na
adolescência tinha liberdade para fazer tudo o que desejava. Seu pai jamais lhe
disse não na vida e os empregados foram os únicos a lhe ensinar o que era
errado. Quando ficou adulta confiou demais em quem não devia e acabou casada
com um homem incapaz de amar. Depois disso descobriu o porquê de seu pai ser
tão bondoso com ela.
Este era um motivo que tinha para
agradecer Diego. Se não fosse pelo plano louco que armou para se vingar, jamais
teria descoberto as artimanhas do pai, ou ainda tomado conta de seu dinheiro.
Durante aqueles anos pouco soube de Afonso. Ele continuava na Argentina e
tinha, apesar de tudo, mantido o bom nome. Ao que sabia Diego tinha tentado
esquecer o passado. Afonso jamais se recuperou da perda de todas as empresas,
mas não estava podre. Misteriosamente tinha conseguido outros investimentos.
Por mais que tentasse, Diego não
abandonava seus pensamentos. Ela dizia a si mesma que ele não representava nada
e que deveria apenas deixar o tempo passar. Chegaria o dia em que ele iria
cansar, desejar uma família de verdade, conhecer alguém especial e se casar. E
então estaria selado o adeus.
A noite caiu e seus pensamentos
continuaram no passado. Ela desligou a televisão, pegou mais uma garrafa de
champanhe e saiu para caminhar pela areia da praia. Talvez fosse o álcool a
levá-la de volta a Madri e aos braços de um homem tão perturbado quanto
apaixonante. Mal ela sabia que Diego se achava muito próximo dela.
Há dois dias ele havia deixado a Madri
e estava pasmo com a beleza do lugar onde Ariella agora morava. Nenhuma foto ou
descrição fora capaz de lhe preparar para a beleza daquelas águas, nem a
simpatia de seu povo. Sua equipe de segurança havia avisado que durante uma
festa de Carnaval que ocorreria naquela semana Ariella dispensou todos
funcionários e planejava ficar só. Inconsequentemente só! Isso irritou-o ainda
mais por que não estranharia se criminosos se aproveitassem disso para
sequestrá-la. Agora lá se encontrava ele. Em frente à porta de sua esposa. Que
para completar seu desespero, encontrava-se aberta. Após alguns passos pela
sala, viu junto a porta suas sandálias de tiras e percebeu que ela saiu para
caminhar à beira mar deixando tudo aberto. No local deserto, não foi difícil
encontrar alguém seu rastro e segui-la.
Ariella percebeu que estava bêbada
quando avistou seu marido caminhando pela areia branca. Em uma calça caqui e
camisa branca, estava completamente diferente do que se lembrava e muito mais
charmoso com a barba por fazer. Duvidando do que via, ela o achava irresistível
e enlouquecedor. Pena que era somente uma alucinação.
- Eu não sabia que estava tão bêbada! –
Ela falou encarando alguém que ainda não tinha certeza se estava realmente ali.
- E eu não sabia que minha mulher gosta
tanto de champanhe. Nem que costumava ter bebedeiras. – Havia uma irritação
divertida em sua voz.
- Qual
é?!?! Só estou me divertindo. Hoje é carnaval! Nada melhor que beber. Quer um
pouco?
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