O frio da Rússia
não fez a última manhã de Elizabeth naquele país ser menos desagradável. Ela
encarou as paredes do hotel no silêncio típico do amanhecer como quem procura
uma razão para ter esperança. Lá no fundo sua consciência dizia haver sim uma
razão para estar feliz. Acabara de receber confirmações de que sua irmã está
viva. Isso já era sem dúvida um alento. Porém, viva e escravizada por alguém
capaz de adquirir um ser humano. Alguém cujo nome parecia ser Sebastian.
- Quando eu colocar as mãos em você,
Sebastian, vou colocá-lo numa cela bem trancada. Pode apostar.
Miguel não acordou com a voz da
esposa que, aos sussurros, fazia planos. Ele sentia seu espírito preocupado.
Elizabeth parecia não desligar a cabeça das preocupações nem mesmo quando
adormecida. Por isso tinha o sono tão leve e interrompido muitas vezes ao longo
da noite e também se levantava tão cedo, assim que o sol surgia. Isso o
preocupava muito. Ela não oferecia ao corpo o descanso devido.
- Não estou gostando de competir com
esse Sebastian. – Comentou, sorrindo, enquanto a abraçava. – Nem mesmo pelos
seus pensamentos.
- O amor é seu, sempre será. Mas
enquanto eu encontrar esse homem e recuperar Bia, esse homem não sairá da minha
cabeça. O nome dele é tudo o que eu tenho, Miguel.
- E a indicação de que é muito rico.
O bastante para comprar uma pessoa.
- Porque diz isso? – Liz estranhou.
– Não sabemos o valor da transação.
- Nem precisa. Garanto que é muito
dinheiro, ainda mais se for verdade o que a garota lhe disse: Bia estava
envolvida com ele. Ou seja, ele foi ao leilão comprar a ela e não a qualquer
garota. Sendo assim, aposto que lhe arrancaram grana alta. E tem mais. Não é
qualquer um que tem dinheiro para esconder alguém. Certamente ele não a levou
para a residência oficial.
- Miguel, você poderia ser policial.
Tem raciocínio rápido. Quando quiser, lhe contrato como meu assistente.
- Dispenso, meu amor. Nesse momento
prefiro o posto de marido. Vou pedir o café da manhã enquanto você se troca.
Enjoada?
- Nem um pouco.
- Ótimo. – Então lhe beijou, enfim,
e sussurrou um bom dia junto de sua boca. – Nosso vôo sai às 15hs. Não esqueça.
Elizabeth não esqueceu e até por
isso passou o dia todo olhando para o relógio. Tinha muito a fazer ainda.
Primeiro buscou por informações de Gregory e descobriu que ele conseguiria
sobreviver e assim que possível seria deportado ao Brasil, onde responderia por
seus crimes. Lá, ela esperava que ele confessasse e entregasse cúmplices. Mas a
tarefa mais importante era a coleta de dados. Quase tudo já fora feito por
Rebeca. A colega fez cópias digitais de muitos dos documentos e fotografou os
cômodos do grande prédio onde a boate operava. Com aquilo Liza já podia
trabalhar. Ainda assim, a grande pergunta continuava.
- Você encontrou alguma referência a
alguém chamado Sebastian?
- Não, infelizmente, Liza. Quase não
há nomes. Apenas apelidos e números. Teremos um imenso quebra-cabeça à montar
se quisermos chegar em alguém.
- Montaremos ele então, Beca.
Conseguiu as imagens de câmera de segurança?
- Sim. Só uma câmera na quadra e
outras três na principal rua de acesso. – Rebeca respondeu.
- Ótimo. Vou revisar take por take e
duvido que não encontrarei um certo grisalho, de altura mediana e muito
charmoso entrando várias vezes nesse lugar. E aí eu descobrirei quem ele é.
Sem saber que sua irmã já iniciava
uma caçada contra Sebastian, Beatriz habituava-se à sua cela revestida em ouro
e luxos, porém privada de liberdade. Nos dias que seguiram sua chegada aos EUA,
Sebastian não apareceu. Ela passou manhãs olhando pela janela a vista muito
distante vista do décimo quinto andar. Limpava aquele apartamento já reluzente.
Lia revistas nas quais não tinha interesse algum. E se arrumava para um homem
que nunca chegava.
Na primeira vez que a porta se abriu
o coração de Beatriz saltitou no peito. Foi até a boca e voltou ao lugar, decepcionado,
quando Francisco passou pela porta. Ele vinha carregando uma sacola e parecia
constrangido em lá estar. Sem nada dizer, largou as compras que ela não
precisava sobre o balcão da pia e sentando-se na sala apenas olhando-a. Também
sem nada a dizer, Beatriz guardou as compras sem nada falar.
- Deixe de ser birrenta e sente aqui
comigo. – Francisco incentivou. – Vamos conversar.
- Porque você veio aqui. Eu não
precisava de nada disso.
- Mas está há dias sozinha aqui
sozinha e uns minutos de prosa não vão te fazer mal. Me conte...gostou do novo
lar?
Beatriz sentiu-se um tanto ridícula.
Gostar ou não gostar, naquelas circunstâncias, pouco interessaria ao motorista
de seu...seu proprietário. Nesses dias ali presa, chegou a odiar Sebastian.
Logo depois, voltava a desejar sua presença. Não deveria apreciar sua
companhia. Nem mesmo quando ele lhe tratava bem e afagava porque a culpa de ali
estar era apenas dele. Por mais carinhoso que fosse, por mais saboroso que
fosse seu beijo ou sentisse prazer no toque, ainda assim, Sebastian era tão
criminoso quanto Gregory.
- É difícil gostar de uma prisão,
por mais agradável que ela seja. Não adianta você dourar a pílula, Francisco.
Não entendo porque Sebastian me quer aqui se nem mesmo vem ver se estou viva.
Não passo de um capricho dele. – Disse ao funcionário de confiança, sabendo que
aquela tristeza chegaria em Sebastian. – Não vem e me mantém presa aqui. Até na
cadeia os presos têm direito a banho de sol, eu nem isso.
- Você tem uma ampla sacada em que o
sol bate todas as tardes, bela Beatriz. Mas compreendo sua tristeza. – Ele mais
do que compreendia. Sentia-se mal em participar daquilo, ajudando o patrão a
manter uma mulher em cárcere privado. Ainda assim, tinha por ele um profundo
senso de lealdade. – Mas não seja injusta com o patrão. Ele preocupa-se sim com
o seu bem-estar. Estou aqui a pedido dele.
- E porque ele não apareceu aqui?
- Sebastian é um homem muito
ocupado, Beatriz. Nem mesmo à família ele dá atenção diariamente. Obviamente,
também não poderá vê-la sempre.
- Família? – Aquilo despertou a
curiosidade de Bia. – Ele é casado? Por isso não me levou para casa? É isso?
Francisco não podia trair o patrão
informando a Bia coisas que ele não discutia com ninguém. Então manteve-se
calado. O que apenas deixou a jovem à sua frente ainda mais interessada no
assunto.
- Não vai falar. Eu já imaginava. –
Ela provocou-o. – Mas eu vi uma foto da menina. É filha dele né? – Mais uma
vez, recebeu apenas silêncio como resposta. – Aposto que ele é um péssimo pai.
Naquela tarde Francisco estava à
frente do escritório de Sebastian com o carro ligado quando o patrão entrou no
veículo. No caminho para casa, além de dirigir, ele contou seu breve encontro
com Beatriz. Contou quase tudo, omitiu apenas a referência a pequena Luísa.
- Então ela está entediada e mal
humorada? Ótimo. – Disse ele, irônico. – É tudo o que eu precisava para
completar o grupo de insatisfeitos comigo. Pedi que fosse ver se ela estava
bem, não para lhe oferecer uma sessão de análise, Francisco. Era para levar
comprar e não conversar.
- Fiz um bem a ela, patrão. Ficar
isolada por tantos dias é algo difícil para qualquer um. E...se me permite...
- Você sabe que eu permito. Diga de
uma vez.
- Ela está certa ao menos em uma
coisa: não pode lhe manter preza assim, num lugar fechado, por muito mais
tempo.
- E o que me impede?
- Seria desumano. E você não é
assim. – O funcionário disse, com franqueza.
- E o que acontece se ela fugir e ir
parar na embaixada brasileira? Eu serei preso e ficarei desmoralizado no mundo
todo. Comprei aquele apartamento por possibilitar passeios no condomínio, mas
não confio nela para deixá-la livre ainda.
Francisco não respondeu. Já tinha
opinado. Tentar mudar o pensamento do patrão era um passo além. Um passo que
ele não pretendia dar. Ainda assim, percebeu que ele tinha mais a falar.
- Está nervoso, patrão. Problemas
nos negócios?
- Os de sempre. Já na vida...fiquei
sabendo que a Noxotb foi invadida e fechada pela polícia.
Alguns clientes foram presos...e papeis apreendidos.
-
Acha que algo pode vinculá-lo ao lugar?
-
Não. Mas... a notícia que li a respeito me chamou a atenção por um detalhe. A
investigação não é russa...é da polícia brasileira.
-
E qual a diferença?
-
Nenhuma...só achei curioso. Vou me manter informado disso tudo. Difícil é ter
tempo para tudo. Minha mãe e minha filha também não estão nada satisfeitas
comigo...ninguém parece estar. – Dessa vez ele falou mais para si mesmo que ao
motorista.
Desde
o dia em que chegou de volta aos EUA, instalou Beatriz e foi para casa, já
enfrentou problemas com a família. Assim que chegou em casa, viu Luísa com a
avó brincando. A pequena largou tudo
para ir lhe abraçar enquanto a mãe não perdeu a oportunidade de reclamar por um
longo período distante de casa.
-
Quem é vivo sempre aparece. – Comentou a idosa.
Logo ele estava repreendendo
Angelina por falar daquela forma na frente da neta. Isso serviu para dar início
a mais uma discussão e, estando ele cansado e bastante irritado com problemas
acumulados, não estava nem um pouco disposto a suportar a intromissão da mãe.
- Vou tomar banho e ir para a
empresa. – Informou, irritado.
Luísa tinha outros planos. Pretendia
brincar com o pai que pouco via. E ao vê-lo discutir com a avó e já querer sair
novamente, magoou-se. Aos prantos, Luísa correu para o seu quarto, gritando não
gostar mais de seu pai, já que ele não gostava dela. Sebastian até tentou conversar com a filha, mas nada conseguiu. Quando
queria, Luísa era tão rebelde e teimosa quanto ele.
-
Eu não quero falar com você. Vai embora. – Ela gritou quando ele apareceu na
porta para lhe entregar um presente. Outra das bonequinhas russas que ela tanto
gostava.
Amava
a filha. Mais do que já havia amado qualquer mulher. E certamente mais do que
amaria qualquer pessoa que viesse a entrar em sua vida. Se vivia mais afastado
dela do que gostaria, era porque a vida lhe exigia isso. Jamais por falta de
sentimentos. Mas isso tudo era muito difícil para tentar explicar a uma menina
tão pequena. Ele tinha esperança de que conforme crescesse. Luísa entendesse
seu amor e sua forma de amar.
Ele
saiu de casa direto ao escritório central de seus negócios. Grande parte de sua
vida foi dedicada a criação de um império hoteleiro ao redor do mundo. Hoje percebia
que aquele império não o fez feliz. Trouxe dinheiro e status, é verdade, mas
tomava grande parte de seu tempo, afastava-o da família e não o ajudou a
construir um lar feliz. Agora, porém, não havia mais o que fazer. Muitas
pessoas dependiam do sucesso de seus negócios. Por isso, passou os dias que se
seguiram dedicado aos negócios, de reunião em reunião, vistoriando instalações
do novo hotel e aprovando investimentos em unidades mais antigas. Aprovou
também a venda de um deles, que já não se mostrava vantajoso. E ficou sem ver
Beatriz por todos esses dias.
O
plano era não vê-la hoje também. Justo hoje, não. Aquele era um dia muito
triste em sua vida, no qual, caso pudesse, evitaria ver qualquer pessoa, ainda
mais uma mulher. Naquele dia completava-se quatro anos da morte de Lílian. Os
que o viam, achavam que aquela tristeza era luto. Dor pela perda do grande amor
de sua vida.
-
Tolos. – Sebastian sempre pensava.
Era
raiva. Por alguém que, mesmo morta, seguia endeusada e preservada de todos os
seus pecados. Enquanto ele tinha de lidar dia após dia com as consequências.
Era dele que Luíza se ressentia e a ele quem Angelina cobrava por estar
ausente. Se Lílian tivesse se portado como uma boa esposa, Luísa teria uma mãe
e ele poderia ser um pai e marido como qualquer outro, sem estar sempre em
dívida com a filha. E, principalmente, seria um marido fiel, não teria
conhecido nenhuma das garotas da Noxotb. E não teria comprado uma mulher que
mantinha presa e afastada de todos, também magoada por sua ausência.
Naquela
noite, bebeu sozinho em um bar antes de chamar Francisco para buscá-lo. Entrou
no carro sentindo as pernas trôpegas. Não deveria ir ver Beatriz...mas foi para
lá que orientou o motorista a seguir. Precisava dela, do calor de seus braços.
Mesmo que não fosse a melhor das companhias, sabia que ela o acolheria. Lá no
fundo de sua consciência, pensava que talvez isso ocorresse porque ela não
tinha alternativa.
-
Ela é minha, Francisco, só minha. Eu fiz bem em comprá-la. Assim ela não pode
me abandonar. – Falou, quase que para si mesmo, durante o trajeto. O
funcionário nada respondeu.
Sebastian
não conseguiu nem mesmo chegar ao elevador sem auxílio. Francisco teve de lhe
oferecer apoio, além de abrir a porta. Prometeu esperar no carro, mesmo que
para isso tivesse de passar a madrugada toda acordado. Beatriz entendeu o
recado.
-
Não se preocupe. Não vou me aproveitar do estado dele para fugir. – Respondeu.
Tonto,
Sebastian esteve irreconhecível naquela noite. Agarrou-se a ela, tentou
tirar-lhe a roupa, mas os dedos não conseguiam abrir os botões da roupa. Estava
tão bêbado que mal conseguia falar. Coube a Beatriz, tirar a roupa e os sapatos
dele e o colocar para dormir. Depois ela jogou-se sobre seu peito e também
adormeceu. Dormiram nus, com muita intimidade, mas nenhuma intenção sexual. Ele
estava bêbado demais, ela triste.
Quando
o sol clareou o dia, Beatriz levantou-se cedo e tomou banho. Esperava que
Sebastian continua-se dormindo até tarde devido ao álcool, mas ao deixar o
banheiro com os cabelos ainda molhados, o viu acordado e já de pé, mesmo que
com os olhos enovelados pelo álcool. Beatriz esperava ter de lidar com um homem
irritadiço e talvez violento. Mas não. Sebastian foi calado ao banheiro, tomou
um banho e voltou com o cabelo molhado e um sorriso no rosto. Beatriz jurou
guardar aquela imagem na memória quando fosse embora. Ele podia ser uma pessoa difícil,
mas também era charmoso como poucos.
-
Bom dia. – Ainda nú, beijou-a. – Não me lembro de ter chegado aqui, mas imagino
que você tenha tirado minha roupa e cuidado de mim. Obrigada.
-
Não precisa agradecer.
-
Acho que deveria ligar para Francisco. Ele passou a noite no carro, de vigia
para que eu não fugisse enquanto você estava em coma alcoólico.
-
Eu liguei para ele assim que acordei. – Sebastian passou a mão nos olhos. – Me dê
um comprimido para dor de cabeça, por favor. Ela parece que irá explodir.
Indo
até a cozinha, Beatriz não se surpreendeu em encontrar facilmente uma caixa de
primeiros socorros. Lá havia um vidro com comprimidos para dor. Ela ofereceu um
a Sebastian.
-
Vou preparar um café da manhã. Quando estou sozinha, faço a versão brasileira,
só com café e pão com manteiga, mas imagino que você tenha o costume dos
americanos. Tem ovos e bacon, se quiser.
-
Não, meu cardiologista desaprovaria. – Nem mesmo a dor de cabeça lhe tirou o
humor do dia, garantido ao acordar ao lado de Beatriz. – Não faça café. Há uma
cafeteria discreta a uma quadra daqui. Quero ir lá com você. Vista uma roupa
discreta e quando chegarmos lá evite demonstrações de afeto ou falar com
estranhos.
Talvez
fosse apenas carência, ou o resultado de tantos dias longe dele, mas um
sentimento de afeto tomou conta de Beatriz ao vê-lo abrir a porta do
apartamento e sair com ele para a rua. Ele olhava em volta, parecia ter receio
de ser visto junto dela, mas não se afastava. E ela enfim pode ver pessoas,
ouvir vozes e aproveitar um pouco da companhia dele. E, o mais incrível, é que
não haviam transado. Não foi por sexo que ele veio ali, foi pela atenção e
carinho dela.
-
Obrigada por me trazer aqui. – Ela lhe disse enquanto comiam.
-
Não quero seu mal, Beatriz. Se você conseguir ser discreta e se comportar bem, farei
o possível para vê-la feliz.
-
Eu sei. – A resposta não era uma promessa de obediência. Simplesmente porque
ser discreta e comportar-se bem não estava em seu planos. Mas, naquele momento,
o melhor era não entrar em atrito junto de Sebastian e conquistar toda a
liberdade que ele pudesse lhe oferecer.
-
Ótimo. Termine seu café. Quero levá-la a um parque próximo daqui. Você tem razão,
é linda demais para eu lhe privar do sol.
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