Nathan
ficou algum tempo vendo Milena afastar-se. Apesar de desejar muito simplesmente
sair andando daquela fazendo e dar às costas a todas aquelas interrogações que
povoavam sua mente, não conseguia. A ânsia por ver Milena e o marido, talvez
num sadismo sem explicação, não passava. Somente vendo-a feliz é que poderia
deixá-la no passado. E até mesmo isso parecia pouco possível, não quando estava
enredado em mentiras.
- Nathan? Nathan? – Ele ouviu a voz
de Lorenzo. – Estou com os contratos impressos no escritório. Venha comigo, por
favor.
- É claro. Vamos...aos vinhos.
Sem ter muito o que fazer, Nathan
seguiu o administrador da vinícola, assinou os contratos, recebeu a previsão de
entrega dos vinhos e, como era tradição, fechou o negócio com um brinde junto
de Lorenzo. Não podia ficar mais ali, nem fazer perguntas ao irmão de Milena.
Ele logo iria perceber haver algo de errado. Ainda assim, não deseja ir.
Principalmente porque não teria mais como voltar.
- Quer ficar para o parabéns? Já vão
cortar o bolo.
- Talvez...como se chama a menina?
-
Maria Fernanda. É a bisneta mais jovem da família...e, mesmo sem ter vindo aqui
muitas vezes, você deve se lembrar o quando meus avôs ansiavam por crianças.
Maria Fernanda é muito amada por todos nós.
-
É claro. Eu...posso imaginar. – Ele não conseguia se conter. Precisava de mais
informações. – Ainda mais de forma tão inesperada, não é mesmo? Eu não me
recordo de ter conhecido o marido de Milena.
-
Ela não se casou. – Havia desgosto na voz de Lorenzo. – É mãe solteira.
Parece...moderno. Não que me agrade. De qualquer forma, Maria Fernanda é uma
linda sobrinha que ganhei.
-
Quantos anos completa?
-
Três. Foi há alguns dias já. Hoje conseguimos reunir a todos para a festa.
Três
anos. Isso significava que logo após terminarem Milena teve outro
relacionamento. Nathan lutou contra a horrível sensação de traição que tomou
conta e seu coração.
-
Bom...diga-lhe que lhe deixei um beijo e parabéns. E avise a todos que fui
embora.
-
E o bolo? Fique!
-
Não...não poderei. Desculpe.
Lorenzo
ficou observando o cliente ir embora. Havia um peso invisível sobre seus ombros
e ele fez a anotação mental de perguntar a Emily se estava tudo bem com seu
sócio. Desconfiava de uma resposta negativa. Apesar de pouco conhecer daquele
homem, tinha a sensação de que ele simplesmente ainda não havia se encontrado
no mundo.
-
Seu sócio foi embora. Tudo bem com ele? Achei bem estranho ele não aceitar ficar
depois de uma viagem tão longa. – Ele disse assim que ficou sozinho com Emily,
ainda durante a festa.
-
Não. A esposa dele morreu recentemente. Acho que Nathan está um pouco confuso.
Eu não sabia que ele apareceria agora, mas, desconfio que passará uma temporada
longa no Brasil.
-
Sei bem como é esse sofrimento. Talvez ele esteja procurando um futuro
diferente.
-
Acho que não, Lorenzo. A relação de Nathan e Valentina era muito estranha. E
ele deixou um rastro de erros. É mais provável que esteja tentando consertar o
passado. Mas não se preocupe. Na segunda-feira conversarei com Nathan.
Lorenzo
deixou o assunto de lado e depois, com Jéssica e os filhos, esqueceu-se de tudo
o mais. Abraçado, o casal viu Maria Fernanda cortar o bolo ao lado da mãe e, sob
aplausos, lambuzar-se no doce. Milena normalmente não permitia que a filha
comesse tantos doces como naquele dia. Mas, além de ser uma data especial,
estava com os pensamentos turvos desde que viu Nathan. Todo o restante da
festa, mesmo tendo ele ido embora, passou desconcentrada, preocupada e sem
conseguir aproveitar aquele momento lindo. Quando Maria lhe sorriu, chamando
sua atenção, ergueu a mão e deixou abertos três dedos, repetindo o sinal em
libras que mais dizia à filha todos os dias.
-
Eu amo você. – Pronunciou junto do sinal, mesmo sabendo que Maria Fernanda não
ouvia.
Apesar
do choque inicial da gestação sem um pai por perto, sua família logo aceitou a
chegada de mais uma Vicentin no mundo. Aceitou e comemorou. Foi uma gravidez
tranquila, vivida na paz do campo e sem sobressaltos. Talvez por isso ela tenha
se sentido em choque quando, ainda muito jovem, Maria Fernanda fora
diagnosticada com surdez pelos médicos. Não se tratava de um caso no qual ela
pudesse usar aparelho. Não ainda, ao menos.
Passado
o susto, Milena pesquisou e aprendeu sobre surdez. Descobriu que milhões de
pessoas viviam assim no mundo todo. E, mais do que isso, elas são felizes. Ao
invés da fala, comunicam-se pelo sistema internacional de sinais, as libras e
viviam normalmente. Seria assim com Maria Fernanda. Agora todos os Vicentin
conheciam esse meio de comunicação e assim cantaram o parabéns de Maria, em
duas línguas. A do som que todos ouviram e o de sinais, visto pela
aniversariante.
-
Posso roubar a aniversariante um pouquinho? A prima Vida quer tirar uma foto. –
Jonas perguntou abraçando a irmã.
-
Sempre pode Jonas. Até porque elas são inseparáveis. – Milena respondeu.
Vida
e Maria conversavam em silêncio e ágeis gestos. Por terem a idade próxima,
foram alfabetizadas em libras praticamente juntas. Aos cinco anos, Vida entende
facilmente a prima e se expressa de uma forma que Maria compreende. Os adultos
muito aprenderam com as primas. E mesmo Maria vivendo em Bento Gonçalves e
Vida em São Paulo ,
elas pareciam conhecer-se muito bem. Provavelmente devido as temporadas que
Maria Fernanda passa na casa dos tios. Talvez por acreditarem que Maria
sofreria com a falta da imagem paterna, Lorenzo e Jonas dedicavam-se a Maria
Fernanda tanto quanto aos próprios filhos. E nunca deixaram transparecer nenhum
sentimento ruim por ela ter uma deficiência. A amavam como era.
-
Vocês passarão a noite aqui, certo?
-
Sim. Emily não quer pegar a estrada a noite. Por quê?
-
Vou pra casa, mas...coloque Maria na cama sim? Ela está cansada e irá dormir
até tarde amanhã. – Milena orientou o irmão mais novo.
-
Está bem. Mas porque? Aonde vai?
-
Pra minha casa. Preciso resolver algo cedo amanhã na cidade e prefiro já dormir
em casa. Importa-se
de olhar Maria?
-
Claro que não. Coloco-a no mesmo quarto que Bernardo e Vida. Assim Emily e eu
ficamos de olho nela.
-
Ótimo.
Logo
depois que a filha nasceu, Milena decidiu que não mais desejava morar na
cidade. Eram pessoas demais lá. Ela e Maria precisavam do seu lar, com
privacidade e um tempinho só para elas. O início não foi fácil. Era necessário
levar Maria Fernanda todos os dias com ela para a Vinícola. Mas com o tempo
tudo entrou na rotina e ambas aprenderam a viver na cidade, sem deixar de
conviver com os familiares.
Para
aquele dia, seu plano era levar a filha para casa ao fim da festa para que ela
dormisse em sua própria cama. Agora mudou os planos. Sabia que dificilmente
Nathan já tinha voltado a Porto Alegre. Ele passaria a noite em Bento, talvez o
dia seguinte e, caso estivessem na cidade, poderiam se encontrar. Seria mais
seguro manter a filha na segurança das terras dos Vicentin. Assim o fez e,
mesmo na segurança do lar, num apartamento com total segurança e sabendo que a
filha estava bem, ela não conseguiu dormir. Ficou lembrando daqueles meses de
namoro escondido. Sentia raiva dele por ter lhe enganado daquela forma, mas,
ainda assim, aquelas recordações despertavam saudade. Foram meses felizes e que
mudaram sua vida. Lhe deram Maria Fernanda e a tornaram uma mulher mais forte.
Agora,
bem lá no fundo, questionava silenciosamente as razões a fazer Nathan voltar ao
sul do Brasil. Não poderia ser apenas pelo vinho. Se ali estava, depois de uma
viagem tão longa, algum motivo muito forte deveria existir. E, inevitavelmente,
uma semente de esperança nascia em seu coração. Havia uma pequena possibilidade
de Nathan ter ali estado para revê-la. Um instante depois, no entanto, lembrou-se
de porque precisava manter-se firme.
-
Ele não passa de um mentiroso, aproveitador e casado. – Falou em voz alta, para
ouvir e passar a acreditar. – Dessa vez você não cairá na lábia dele. Não
mesmo!
Nathan
também estava acordado e lembrava daquele mesmo período. Deveria já ter deixado
a Serra Gaúcha, mas, ao invés disso, instalou-se no mesmo hotel em que ficava
quando vinha encontrar-se com Milena às escondidas.
-
Bons tempos aqueles. – Disse a si mesmo.
Apesar
de racionalmente entender que era hora de seguir com a vida e se adaptar a
ideia de que agora era um homem livre, para fazer as próprias escolhas e encontrar
a felicidade. Mas aquela vinícola continuava atraindo-o. Não conseguiu ir muito
longe. Talvez se tivesse visto Milena com o pai de Maria Fernanda tivesse
desistido. Mas quando Lorenzo lhe disse que ela é mãe solteira, nada parecia
servir de impedimento para uma aproximação. Nada além da raiva com que Milena o
olhou. Parecia temer que fizesse algo de ruim com a menina.
-
Como se alguém pudesse desejar o mal de alguém tão doce quanto aquela
garotinha. – Ele ainda pensou, sozinho, sobre a cama do hotel.
Para
Nathan, era difícil imaginar porque Milena não seguia com o pai de sua filha.
Perguntava-se porque um homem não estaria ali, junto dela e de Maria, caso
tivesse a chance de gerar um filho com Milena. Três anos. A menina completará
três anos. Um relacionamento iniciado talvez ainda quando estiveram juntos e
que durou pouco tempo, a julgar pelo desprezo com que Lorenzo referiu-se ao pai
da criança.
-
Três anos...a menos que... - Aos poucos
uma ideia foi ganhando espaço em sua menos. Repelida de pronto, mas,
persistente, voltando logo depois. – É possível, claro que é.
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