O voo de Milão até São Paulo foi
longo, cansativo e cheio de turbulências. Foram 12 horas. E, curiosamente, o
tempo costuma passar mais lentamente quando você está triste. É como se o
destino conspirasse para alongar o sofrimento.
Emily pegou sua mala, encarou a fila
para o táxi e quando finalmente chegou em casa, atirou-se no sofá e entregou-se
ao sentimento de solidão. A casa tinha o cheiro característico de um lugar
fechado por vários dias. De um lugar sem vida. Era o fim de uma tarde de
domingo e não tinha ninguém esperando-a. Isso raramente a incomodava. Hoje era
um desses dias.
Sua vida estava longe de ser vazia.
Construiu uma história linda ao longo dos seus 37 anos. Saída de um simples
orfanato no subúrbio, dedicou-se aos estudos integralmente e, como bolsista,
cursou todo o ensino médio numa escola reconhecida. O objetivo? Ter as melhores
notas para conseguir estudar gastronomia em Paris. Seu grande sonho
tornou-se realidade. E quando tornou a colocar os pés no Brasil, já não era uma
menina qualquer. Era uma mulher de 25 anos, com formação e especialização em
cozinha internacional. Abriu seu restaurante, firmou-se no mercado de alta
gastronomia e hoje é uma das chefes de cozinha mais renomadas do país.
- Eu tenho uma vida maravilhosa. Não
é Milla? – Ela disse abrindo a mala e pegando a velha boneca de pano a
acompanhá-la há décadas. - Para quem saiu de um orfanato, nós fomos longe.
Quantas bonecas conhecem Milão e Paris?
Milla era uma simples boneca feita
com cabelos de lã amarela. Nada mais do que um presente, humilde, simplório,
mas que representou muito no tempo em que não tinha nada. E ela jamais se
desfez de Milla. Nem iria. A boneca era sua companheira. Acompanhava-a nas
viagens, ouvia seus lamentos e comemorava suas vitórias.
O próximo item a sair da mala foi a
agenda. Sim, ela tinha um celular moderno, tinha um tablet fantástico, mas
gostava de contar com uma agenda incapaz de deixá-la na mão porque a bateria
estava terminando. Olhou seus compromissos e um em especial a fez seu humor
descer alguns degraus.
- Fazer o que? Milla, você tem sorte
de ser uma boneca. As mulheres sofrem bem mais.
Mas um leve sorriso surgiu em seus
lábios quando percebeu outro compromisso. Ela e Jonas tinham um jantar marcado
para amanhã a noite e como não era apenas prazer, mas também negócios, ele não
iria adiar. E, o melhor, ficaria menstruada somente em duas semanas. Ainda não
tinha nem sinal das cólicas. Podia ligar para ele e perguntar se não desejava
vir ali vê-la naquela noite mesmo. Mas seria bancar a desesperada, afinal nem
desfez a mala. E não era uma dessas mulheres dependentes. E, além disso, nem
sabia se Jonas estava em São
Paulo ou se tinha ido para Bento Gonçalves.
- Se foi, é bom me trazer algumas
daquelas garrafas de vinho maravilhosas. Aí a gente bebe antes de ir pra cama.
Sim, o sexo com ele era bom. Muito
bom. E lá se iam seis anos de relacionamento. Um relacionamento diferente do
que a maior parte das pessoas considera ideal, é verdade. Mas capaz de mantê-los
satisfeitos por todo esse tempo. Conheceu Jonas no casamento de sua melhor
amiga, Melissa. Há 10 anos Mel, como gostava de ser chamada, uniu-se a Rafael
Gomide, amigo e já sócio de Jonas. Ambos são engenheiros civis. Mas naquela
noite ela foi apenas apresentada a Jonas e, mesmo percebendo todo seu charme e
beleza, nada ali teve início. Naquela época ele tinha uma namorada e ela
preferia não se apegar a ninguém.
Tudo começou a mudar quando, quatro
anos depois, conheceu outro lado de Jonas. Ele não era apenas sócio de uma
construtora, era também um especialista em vinhos e administrador de uma
vinícola familiar, localizada no interior do Rio Grande do Sul. Veio lhe propor
uma parceria. Desejava colocar seus vinhos na carta do restaurante. Ela não resistiu
ao sabor da bebido, nem ao dele.
Nos últimos anos acumularam bons
momentos. Todos sexuais. Sem nenhum outro envolvimento. Sem cobranças. Sem
planos de futuro. Sem problemas. Sem complicações. E, principalmente, sem
emoções. Essa era a regra daquele relacionamento. Seria estritamente sexual.
Ela fazia suas viagens, ele as dele. Ela trabalhava até tarde, Jonas seguia sua
rotina agitada de duplo empresário. E quando as agendas de ambos permitiam,
relaxavam nos braços um do outro no melhor sexo de suas vidas. Depois
despediam-se amigavelmente sem ter uma relação a discutir. Era simples. E
funcionava.
- Um banho de espuma, uma taça de
vinho e a minha coletânea de músicas favorita ao fundo. Eu não preciso de mais
nada.
Sua consciência, no entanto, parecia
provocá-la e, em deboche, perguntava ‘a quem você pensa enganar?’. Nem tudo
estava bem como há seis anos. Ou como há um ano. Já não era uma jovem. Seu
corpo mudou, seus desejos mudaram. Sua vida estava mudando a cada instante.
___ § ___
Jonas começou sua manhã de
segunda-feira conferindo os compromissos do dia. Eram vários e se estendiam até
a noite. Como sua secretária, na verdade muito mais do que isso, talvez
‘assistente para todo e qualquer assunto’ fosse melhor, a doce e maternal
Valquíria, sempre dizia, ele precisava aprender a deixar minutos livres no dia.
Era necessário. Mas ele ainda não tinha aprendido isso. E com duas empresas era
praticamente impossível. Começaria aquela segunda reunindo-se com seus sócios.
Rafael e Juliana seguravam a empresa quando ele precisava se afastar e dar
atenção ao seu outro negócio, mas aquela empresa também era dele e dedicava-se
a ela.
Depois, às 12hs teria um almoço de
negócios com um cliente da construtora e às 14h30min iria se reunir com o
designer que preparava os novos rótulos da Vinícola Vicentin. As 17hs tinha
reservado 30min para um assunto pessoal, em seu escritório, rapidamente, antes
de atender a outro cliente. As 21hs seria o momento mais divertido do dia.
Teria um jantar de negócios com Emily. E, terminados os negócios, poderia
atirá-la sobre qualquer superfície plana e lembrá-la de porque há seis anos
eles estavam juntos.
Emily era a sua mulher ideal. Não lhe
cobrava nada. Só dava. Emily oferecia espaço, tempo e silêncio. Coisas que as
mulheres pareciam ter dificuldade em entender o quanto um homem necessitava.
Mas recentemente ela parecia estar lhe dando espaço demais. Quando iniciaram o
relacionamento, encontravam-se três noites por semana. Normalmente nas quartas,
sextas e sábados. Mas ela sempre exigia uma semana para si.
- É o meu final de semana com as
amigas. – Argumentou na época.
Depois, no entanto, ela lhe
confidenciou que era o final de semana de sua menstruação. Num momento raro de
intimidade verbal, Emily lhe confidenciou sofrer de severas cólicas. Era um
período em que dispensava qualquer companhia, em especial a masculina. Ele
respeitou sem fazer nenhum comentário. Não era homem de insistir.
Mas agora ela vinha se esquivando em
mais noites. Primeiro eram compromissos de trabalho, cansaço, agora até
viagens. Em completa incoerência, quando encontravam-se ela era a mesma mulher
incandescente. Conhecia tão bem o corpo de Emily. Ela respondia no primeiro
toque e ele sabia onde tocar. Emily era uma mulher fria e elegante na vida, mas
fervorosa e alucinante na cama. Infelizmente, essas ausências dela lhe diziam
que talvez aquele relacionamento estivesse chegando ao fim após seis anos.
- Bom...tudo um dia acaba. – Havia
um fundo de insatisfação naquele pensamento.
Aquele relacionamento tinha apenas
duas regras claras. A primeira era ater-se a satisfação sexual, sem envolver
família, amigos ou nada mais. A segunda era não envolver terceiros. Quando
sentissem desejo por outros parceiros, poriam fim no acordo. E ele começava a
cogitar o fato de ser traído por Emily. Essa dúvida estava acompanhando-o nos
últimos tempos. Hoje poderia descobrir a verdade.
- Jonas, seu compromisso das 17hs
chegou. Posso mandar o senhor Gutiérrez entrar?
- Sim, Valquíria. Pode.
Bruno Gutiérrez era seu conhecido de
longa data. Certa vez lhe fez pesquisas de mercado muito completas. Era, porém,
um profissional muito discreto num setor difícil. Gutiérrez era detetive
particular. Costumava caçar esposas e maridos infiéis, além de fazer relatórios
com históricos de executivos. Dossiês vendidos a peso de ouro que podiam confirmar
a compra de uma empresa ou derrubar um político em meio a campanha eleitoral.
Mas por conhecer o estilo de relacionamento vivido por Jonas e Emily, estranhou
o serviço pedido pelo amigo.
- Pensei tratar-se de um
relacionamento aberto, Jonas. – Disse o detetive à época.
- Nem tão aberto. Não aceito ser
feito de idiota.
Hoje Bruno lhe traria um
levantamento dos passos de Emily no último mês. Desejava saber por onde andou e
com quem se encontrou. Se havia outro homem na vida da parceira sexual saberia
agora e, se não, descobriria o que vinha mudando nela.
- Boa tarde, Bruno. Só tenho meia
hora. Então seja direto, por favor.
- Como de costume. Jonas. – Ele lhe
estendeu um arquivo. O relatório de 20 páginas trazia detalhes que o cliente
poderia ler depois. – Sua...parceira, como prefere chamá-la frequenta poucos
lugares e relaciona-se com poucas pessoas. É atenta a sua segurança e
reservada, dificilmente deixa rastros.
- Pode ser um hábito de quem esconde
algo.
- Sim, sempre pode. Mas no caso de
Emily eu apostaria se tratar do jeito de ser dela. Trata-se de uma mulher fina
e objetiva que não olha envolta do que a interessa.
- Sejamos objetivos nós também. Devo
presumir por essa defesa que acaba de lhe fazer que Emily não tem um amante?
- Bom, Jonas, para ser franco, se
você não é marido, noivo ou nem mesmo namorado dela, dificilmente outro
parceiro poderia ser enquadrado como ‘amante’.
- Bruno, você entendeu a pergunta.
- Sim, entendi. E a resposta é não.
Nesse um mês ela não deixou nenhuma indicação de que relaciona-se com outro
homem.
Jonas sentiu-se melhor do que
esperava com isso. Ela não tinha outro. Sorrindo por dentro, mas mantendo a
dúvida, tentou puxar pela memória as três datas durante o mês em que ela
cancelou encontros.
- Quero saber onde ela esteve nas
noites de 3, 16 e 17 desse mês.
- Em casa. Nos dias 3 e 16
chegou tarde do restaurante e ficou em casa. No dia 17 sequer saiu. Faltou ao trabalho.
– Respondeu o detetive após uma rápida olhada nos arquivos.
Jonas estranhou muito a informação.
Emily era muito dedicada ao restaurante. Vinda de baixo, ela valorizava sua
fonte de sustento. Era estranho ela faltar ao trabalho. Mesmo assim, deixou
isso de lado e seguiu para outro assunto.
- O que mais tem para me dizer? Que
lugares frequenta?
- Bom, além dos óbvios como alguns
bares com a amiga, a casa dos também seus amigos, Srº e Srª Gomide, e, é claro,
sua viagem de cinco dias a Milão, Emily foi quatro vezes a uma clínica médica
localizada numa área nobre de São Paulo.
- Clínica? – Isso surpreendeu Jonas.
Ela sempre foi tão saudável e vivaz. Não conseguia imaginar Emily doente.
- Sim, inclusive hoje pela manhã ela
esteve lá por 2h10min. Posso tentar descobrir mais a respeito disso. Qual
médico a atende e sua especialidade, por exemplo. Mas achei que deveria tentar
o meio mais usual primeiro.
- Qual seria?
- Irá vê-la hoje, não é? Pergunte
como foi seu dia. Talvez ela lhe diga que passou parte da manhã em uma consulta
médica.
Quando a noite chegou, Jonas seguiu
para o apartamento de Emily. Era segunda-feira e o restaurante não abria.
Normalmente pediam algo para beliscar e ele levava vinhos. Nesses anos,
desenvolveram meios de lidar tranquilamente com os negócios e a vida pessoal.
Ele iria chegar, ela estaria sexy e elegante como sempre, vestida para
negócios. Eles fechariam o preço da próxima remessa de vinhos, as datas de
entrega e o prazo de pagamento e, depois, ele a atiraria sobre o sofá e teria o
prazer de lhe arrancar um daqueles vestidinhos justos que tanto gostava.
Dessa vez não foi diferente. A não
pelo fato de ficar o tempo todo procurando por mentiras em Emily. E ela era
irritantemente convincente. Tinha provado o vinho com o mesmo apresso de sempre,
fecharam a compra enquanto ainda comiam. Então era hora do prazer. Finalmente.
Mas antes ele fez uma pergunta muito comum aos outros e estranha para eles.
- Como foi seu dia?
- O que? – Ele nunca fazia esse tipo
de pergunta indiscreta.
- Perguntei como foi o seu dia. É
algo simples. Não precisa esse espanto todo.
- É...foi bom. Passei o dia todo em
casa.
- Em casa? Não saiu nenhuma vez?
- Não! – Porque ele insistia nisso?!
- Cheguei ontem depois de um voo de 12hs. Queria descansar...para você.
A comprovação da mentira magoou
Jonas. Ela não precisava mentir. Tinham um relacionamento tão aberto que
dispensava segredos. E ela escolhia mentir.
Ele deixou o assunto de lado e
puxou-a para seu colo. Abriu sua blusa e colocou os seios médios e firmes para
fora do sutiã. Ela era deliciosamente feminina. Uma combinação perfeita de dama
elegante com amante sensual. Magra o bastante para ficar bem roupas clássicas e
de caimento perfeito e com curvas o suficiente para enlouquecer qualquer homem.
E era dele. Há seis anos Emily era dele.
- Tira a calcinha. Fica nua pra mim.
- Uau! Cuidado, Jonas. Desfilar nua
e na claridade para um homem é para adolescentes, não para mulheres de 37 anos.
- Você humilha qualquer jovem,
Emily. É gostosa pra caramba.
- Me sinto assim nos seus braços.
Jonas sabia que aquela súbita
timidez não passava de charme. Uma das qualidades de Emily era reconhecer sua
beleza e fazer uso dela sem inibições. Ela desfilou nua pelo apartamento.
Mulheres mais velhas têm essa vantagem às menininhas. Elas conhecem o próprio
corpo e são seguras da sua sexualidade. Sabem o que querem de um homem. O corpo
de Emily mandava mensagens claras. Agora, por exemplo, ela deseja que ele a
comesse crua e ferozmente sobre o tapete da sala, sem muitas preliminares. Ela
estava sedenta, ele também.
Pouco depois de também despir-se e
trocarem algumas breves carícias, Emily caiu de joelhos à sua frente e começou
a acariciá-lo com os lábios. Ele suportou bem aquela tortura até ela arranhá-lo
com aqueles dentinhos provocadores.
- Venha cá sua sexy provocadora!
Ele afastou-lhe as pernas e
enterrou-se nela como quem avança em terreno conhecido. Aquele corpo estava
mapeado pela palma de suas mãos. Arrancaria gritos dela facilmente. Na primeira
investida sentiu ela cravar as unhas em suas costas e abraçar-lhe o quadril com
ambas as pernas. Emily gemia baixinho em seu ouvido a cada penetração. Sabia o
quanto ela estava excitada. E, como golpe fatal, mordiscou-lhe a parte de trás
da orelha.
- Golpe baixo, Jonas.
Ela estava enlouquecida. Ele é bom,
é gostoso demais e sabe dar o que uma mulher precisa. Nem mais nem menos. E se
não fosse o aparecimento do já conhecido desconforto íntimo, uma dor que vinha
sentindo nas últimas vezes que transaram, teria alcançado o orgasmo
verdadeiramente. Então gritou e fingiu o auge do prazer que tantas vezes ele
lhe deu. E sentiu-se feliz quando ele retesou os músculos e despejou-se dentro
dela. Jonas esparramou-se em seus braços, suado e cansado. Infelizmente, sua
cólica pareceu se intensificar. E ela precisava engolir o medicamento e tomar
um banho morno. Então o empurrou para o lado e deixou-se observar a beleza dele
por mais um minuto.
- Desculpe quebrar o clima, mas está
na sua hora Jonas.
- O que? Já? Pensei que nós fossemos
tirar o atraso dessa sua semana fora.
- Eu estou cansada. – Ela
levantou-se do chão e no movimento sentiu uma ferroada mais forte no ventre. –
Nos vemos na quarta-feira?
- Sim, pode ser. E na sexta-feira,
se for bom pra você. No sábado pela manhã vou para Bento Gonçalves.
- Eu vou ver e te aviso. – Já
vestido ele beijou-a nos lábios antes de sair. – Tenha uma boa semana, Emily.
- Você também, Jonas.
Quando viu a porta se fechar Emily
correu para a cozinha e pegou sua caixa de remédios. Ela vinha crescendo cada
vez mais e analgésicos fortes passaram a ser guardados ali. Infelizmente não
podia lançar mão deles nessa noite porque tinha bebido vinho. Então pegou algo
mais suave, rezou para fazer efeito e correu para o banheiro.
Jonas saiu pela portaria irritado. Até
o porteiro olhou-o de modo estranho. Ele não deveria ter saído tão cedo. Saía
frustrado. Não sexualmente. Tinha se satisfeito no corpo dela. Mas frustrado
como homem. Agora percebia que Emily não teve prazer. Ela fingiu o orgasmo.
Talvez para agradá-lo. Por quê? Talvez por desejar outro homem. E há quanto
tempo vinha fazendo isso? Esse tipo de tormenta arrebentava com o ego de
qualquer homem. Pegou o celular e tomou a única atitude que lhe pareceu
possível.
- Oi Bruno, boa noite. Quero que aprofunde
a investigação. Quero detalhes do que acontece com Emily. O quanto antes
melhor.
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