Aos 36 anos, Milena não tinha mais
nenhuma razão para temer a reação dos pais a nenhuma atitude ou decisão. Ainda
assim, a única frase que necessitava falar estava presa em sua garganta. Ser
formada na faculdade e ter ocupação e renda independente da sua família, não
minimizada sua apreensão. Não precisava dos Vicentin financeiramente, mas seu
coração seria eternamente ligado aquela família pela qual não nasceu e ainda
assim foi acolhida como filha.
Desde o dia em que contou à família
de sua gravidez, ninguém nunca mais a pressionou para saber quem era o pai de
Maria Fernanda. Eles a acolheram da mesma forma que a ela, no passado. Ainda
assim, aquela interrogação permaneceu. E se jamais lhe perguntaram nada foi
para não despertar tristeza, primeiro durante a gestação e, depois do
nascimento, respeitando o momento difícil de saber que a filha era portadora de
uma deficiência. Lorenzo e Jonas ofereceram mais do que apoio. Garantiram que
Maria tivesse dois grandes exemplos masculinos na vida, independente de sua mãe
casar-se ou não.
A vida seguiu, as dificuldades
mudaram e Maria Fernanda mostrou-se uma grande benção aos Vicentin. De repente,
não mais importava de qual homem vinha o sangue de Maria, afinal esse nunca
fora um critério para dar ou não amor naquela família. Maria fez os bisavós
ganharem nova fé na vida enquanto para Giovanna e Leonel a chegada da neta a
cada visita era sinônimo de muitos sorrisos e brincadeiras. Eles rejuvenesciam
junto de Maria Fernanda. E justo agora quando não mais havia nenhuma cobrança
pela verdade, ela precisaria falar. E a família a olhava ansiosa.
- Fale, minha neta! – Vovó Ângela,
naquela impar mistura de docilidade e franqueza, pegou a mão esquerda da neta
entre as suas. – Fale o que a deixa tão nervosa. Somos a sua família.
- Eu sei vovó. – Disse e enfim
conseguiu sorrir. Não havia mais motivos para manter aquele segredo. – Há
alguns anos eu disse a vocês que jamais saberiam o nome do pai de Maria. Mas
hoje vou pôr fim nesse silêncio. Há cinco anos eu tive um relacionamento breve,
porém intenso, com Nathan Johnson, sócio de Emily no Calderone. Nós estivemos juntos
durante alguns meses, não muitos, é verdade, mas o bastante para que ele me
desse Maria Fernanda de presente.
- Espere, Milena! – Leonel gritou,
assustando a todos. Poucas vezes o patriarca elevou o tom de voz em uma
discussão. – Esse homem esteve comigo! Jantou à nossa mesa! Bebeu do nosso
vinho! E não teve a hombridade de assumir que desejava minha filha?
- Mas Milena....esse rapaz é casado!
– Giovanna afirmou, assustada. – Eu desconfiei, por um momento que algo surgia
entre vocês e falei com Emily. Ela me garantiu que nada aconteceria entre vocês
porque ele era casado e cuidava da esposa doente há vários anos.
- Emily nunca soube de nada! Nem seu
sabia que Nathan era casado até o dia em que ele me dispensou e falou a razão.
- E foi embora sem valorizar a filha
que você esperava? – Giovanna tinha dificuldade em acreditar naquilo. Essa
postura não combinava com um homem que passava anos cuidando de uma esposa
enferma.
- Quem abandona um filho não é homem
de verdade. – Vovô Francesco afirmou, com tom baixo e a dificuldade de
articular as palavras gerada por sua saúde frágil.
- Que pena! E tão lindo. – Vovó
Ângela comentou, ainda acarinhando a neta. – Os lindos são os piores, minha
querida.
- Eu nunca lhe contei sobre Maria.
Por mim, Nathan jamais teria ficado sabendo da filha. – Enfim, toda a verdade
fora dita. – Mas ele veio aqui, viu-a e me pressionou pela verdade. Quer
reconhecê-la como sua e conviver com ela...e com vocês, é claro.
- E a quer? Vocês retomaram o
relacionamento? – Essa pergunta, só a mãe podia fazer.
- Não. Isso jamais acontecerá. Há
mágoas demais entre nós. – Milena falou aos familiares. – Eu...estou sem fome
e...prefiro ficar sozinha para pensar. Se me permitem eu...
- Não! - Leonel afirmou. – Basta de
esconder-se. Você desabafou e pôs fim a essa história. Não tem do que se envergonhar.
Vamos jantar. E depois avisará a esse rapaz que eu quero lhe encontrar. Ele tem
explicações a me dar.
O jantar ocorreu em família.
Primeiro num silêncio constrangido, depois no natural falatório à italiana. Aos
poucos, o motivo daquela conversa foi esquecido e restou a tranquilidade de
que, enfim, não havia mais nenhum segredo entre eles. Logo vovó Ângela
tagarelava enquanto Leonel paparicava Maria Fernanda, comendo à mesa, sem saber
do que os adultos conversavam.
Mas a voz de uma pessoa não mais foi
ouvida. Giovanna comeu em silêncio e sentiu como se cada garfada de comida lhe
pesasse no estômago. Estava triste, ferida e magoada com a filha. Não por ela
ter se tornado mãe sem ser casada. Não se julgava antiquada a esse ponto.
Sofria apenas porque Milena, apesar de todos os seus esforços, não havia criado
laços fortes o bastante com ela para abrir o coração à mãe num momento tão
difícil quanto aquele. Com o coração dolorido, ela pediu licença da mesa e
recolheu-se no quarto. Já estava tirando a maquiagem quando a porta se abriu.
Poderia ter pensado se tratar de Leonel, mas o perfume que tomou o ambiente foi
o de Milena.
- Mãe, qual o problema? – A filha
perguntou, mesmo sabendo qual a resposta estava presa na garganta da mãe.
- Dói no peito de uma mãe saber que
a filha não confia nela. Será que eu fui uma mãe tão ruim assim para a minha
menina sofrer sozinha sem contar o que guarda no peito? Isso é algo que não
posso suportar.
- Você foi a melhor mãe que Jonas e
Lorenzo poderiam ter. E eu nem sei o que teria sido de mim, não fosse você e
papai me acolherem.
- Pare já Milena Vicentin! Essa
conversa não me agrada! – Giovanna gritou. – Não existe separação entre Jonas,
Lorenzo e você. São os três crias minhas, os três Deus me deu e cada um de vocês
eu amo com todo o meu coração.
- Eu nunca duvidei disso, mãe.
- Então porque guardou tudo isso com
você? Eu teria ficado do seu lado, te acolhido e recebido minha neta nos
braços. Não importa quem é o pai. Ela é uma Vicentin!
- Não foi por vocês. Eu...eu
precisava passar por aquilo sozinha. Doeu muito ser desprezada por ele. E por
ter Maria comigo, eu sabia que era hora de crescer, de me tornar forte. Você
sempre foi a melhor amiga que eu poderia ter mãe. E se um dia Maria confiar em
mim, como eu confio na senhora, serei uma mãe realizada. Eu te amo tanto, mãe.
– Milena disse e abraçou a mãe.
- Minha filha...você é tão minha, é
tão eu. Até nos mais delicados detalhes.
- E Maria também. Ela parece muito
com a vovó Giovanna.
- Sim, a nossa Maria Fernanda. –
Giovanna sorriu e secou uma lágrima que escorreu silenciosa. – Conte a verdade
pra ela. É assim de que deve ser entre mães e filhas, sempre. Lembra de como eu
te contei que você não havia nascido da minha barriga, mas sim dos sonhos do
meu coração? Eu tinha medo de te fazer sofrer, mas contei porque era o seu
direito saber. E Maria tem o direito de saber que Nathan é o seu pai. Mesmo que
como homem ele tenha falhado, como pai Nathan merece uma chance.
- Eu vou contar, mãe. Porque eu
sinto que eles merecem se conhecer. E Nathan quer conviver com Maria Fernanda.
Naquela
madrugada Milena, sem conseguir esperar pelo amanhecer, ligou para Nathan. Não
se surpreendeu ao ele atender no primeiro toque. Nathan sempre teve o sono
leve, ela recordou-se. E logo deixou o pensamento de lado. Aquele tempo de
intimidade não existia mais.
-
Desculpa ligar tão tarde...
-
Eu estava acordado. Fale o que tem a dizer. – No fundo, ele sabia o que era.
-
Falei com eles...contei tudo, Nathan. Papai e mamãe querem receber você aqui em
casa. Garanto que irão recebê-lo com respeito, mas eles não aceitam o que se
passou entre nós. Então terá de lidar com isso.
-
Eu não esperava nada diferente disso, Milena. E quando falaremos com Maria?
-
Eu contarei para minha filha. – Disse ela não abriria mão. – Amanhã, se for
possível. Venha almoçar com a gente, por favor.
Nathan
poderia ter iniciado uma discussão e lembrado a Milena que aquela linda menina
também tinha o seu sangue e que ele possuía não apenas o direito de estar perto
dela, mas que Maria já o amava. Porém, iniciar uma discussão com Milena,
conseguiria apenas ressurgir a mágoa. E ferir aquela mulher mais uma vez estava
fora de seus planos. Dessa vez poderia, faria tudo no tempo certo e mostraria a
Milena que também sabia esperar e fazer o que era preciso.
-
Durma bem, Milena. Nos veremos na hora do almoço. - Disse, tranquilamente,
antes de desligar.
O mais difícil, porém, Milena não
fez. Sob a desculpa de que era muito tarde e, já na manhã seguinte, de que
aquele não era o melhor momento, ela não conversou com Maria Fernanda. E a cada
vez que olhava para o relógio, percebia seu tempo terminando. Passava das 10hs
quando a filha veio chamá-la para brincar. Com gestos rápidos, disse querer
fazer um monte de brincadeiras, mas não ter ninguém para estar junto.
Durante
a brincadeira de casinha, tomando chá de mentirinha, mas com um pedaço
verdadeiro do bolo preparado pela vovó Ângela. Maria não demorou a perceber que
sua mãe estava dispersa. Aquela dificuldade em se comunicar fez dela uma
criança ainda mais observadora que os demais. E ela conhecia muito bem aquela
que lhe deu a vida. Depois de alguns minutos, ela gesticulou perguntando o que
a mãe tinha.
Milena
teve dúvidas se falar a verdade para a filha naquele momento era ou não o
melhor a fazer. Nathan tinha esse direito e lutaria por ele. Porém, era apenas
em Maria que deveria pensar. E não tinha certeza de que sua filha seria
beneficiada por uma mudança tão brusca em sua vida. Ainda em dúvida, porém,
gesticulou à menina questionando-a se gostaria de ter um papai e viu seus olhos
brilharem. A única resposta da filha foi um suave balançar de cabeça que fez
seus cachos dourados se movimentarem. “Eu ia gostar sim. É legal ter papai.
Meus coleguinhas têm”, ela disse após pensar.
-
Um dia, filha, um dia você também terá. – Milena disse por voz e gestos.
Se
Nathan, hospedado no RS, estava ansioso por conhecer oficialmente sua filha e
ter na vida dela um papel de pai de verdade, em São Paulo, Rafael arcava com as
consequências de não abraçar o sonho tão desejado pela esposa. Enquanto Melissa
fazia planos de adotar a complicada Isabely, Rafael mantinha-se afastado de
qualquer conversa a respeito da menina. No início isso até funcionou, mas, com
o passar dos dias, ela foi ficando cada vez mais irritada. Naquela manhã, na
mesa do café, apenas Tales recebeu a atenção da mãe.
-
Vá se arrumar Tales, eu te levarei ao colégio e depois vou ao abrigo visitar
Isabely. – Mel avisou ao filho.
-
Mas mãe...a Isa não quer ver você. Eu falei com ela ontem e ela ainda tem mede
de ser adotada...
-
Só vai perder esse medo quando nos conhecer e ver que podemos ser bons pais. –
Ela não iria desistir tão fácil. – Apesar de certas pessoas não saberem
demonstrar isso.
-
É só o que me faltava! Agora sou o vilão da história. – Rafael reclamou. Mas
foi totalmente ignorado pela esposa. – Não vai falar comigo?
Melissa
continuou sem falar nenhuma palavra ao marido. Assim que Tales subiu, ela
deixou a mesa e foi pegar o carro. Quando o adolescente retornou, encontrou o
pai triste na sala, com os ombros caídos enquanto observava Mel pela janela.
-
Calma, daqui a pouco ela faz as pazes com o senhor. – Tales não perdeu a chance
de dizer.
-
Eu não tenho tanta certeza assim, meu filho.
-
É só você ajudar, papai. – Esse não era um assunto que seu pai gostasse de
falar, mas ele resolveu arriscar. - A Isa é sim uma adolescente complicada, mas
é apenas porque ela nunca teve uma família de verdade. Imagina se no lugar da
Isa fosse eu, o senhor gostaria que eu fosse rejeitado?
-
A própria Isabely não quer o amor de ninguém! – Rafael gritou.
-
Ela não quer porque não o conhece, só por isso, papai. – Tales decidiu que já
era hora de deixar o pai sozinho com os próprios pensamentos. – Deixa eu
ir...antes que a mamãe brigue comigo também.
Rafael
chegou ao escritório irritado e desanimado. Já tinha vivido muitos momentos
difíceis na construtora, em especial durante turbulências econômicas e também
divergências entre Jonas e Juliana. Mas em todos esses momentos, teve a
segurança do lar como um esteio. Tudo podia estar ruim, mas seu casamento era
forte e Melissa o apoiava em cada decisão difícil. Hoje não era mais assim. E
cruzar com uma Márcia irritadiça e de expressão fechada, além de receber uma
mensagem de Jonas informando que teriam uma reunião urgente com cliente, só
serviram para piorar seu humor.
-
Sabe me dizer qual o problema de Márcia. Ela sempre foi meio azeda, mas hoje
está virada num limão. E eu sem saco pra isso. – Perguntou para Jonas assim que
o viu.
-
Parece que o ex ganhou alguns direitos quanto ao filho e ela não gostou nada. E
o advogado abandonou o caso. Não aguentou a fera. – Jonas respondeu.
-
Não me surpreende em nada.
-
Mas você já foi um homem mais pacífico. O que há? – Poucas pessoas conheciam Rafael
tão intimamente quanto Jonas. E por isso, só ele podia lhe dizer algumas
verdades. – Ainda é a menina órfã? Não acha que talvez seja você o errado nessa
história? Não seja tão teimoso!
-
Não é você quem terá de tornar-se pai mais uma vez sem estar preparado pra
isso. Esse não é um sonho nosso! Melissa inventou isso do nada e age como se eu
estivesse errado em não sonhar isso também!
-
Às vezes, a gente não vê algo que pode nos fazer muito feliz. Eu tive uma briga
muito séria com Emily ao saber que ela desejava um filho meu. E hoje, não sei
como consegui passar tantos anos sem tê-los. Talvez você deva se abrir para
essa ideia.
Rafael
lembrava-se bem de quando Jonas dizia-se um solteiro convicto, sem vontade
alguma de formar família. Até Emily surgir, mudar o rumo de sua vida e lhe
mostrar o real significado de ser feliz. Ainda assim, assumir uma filha agora,
uma adolescente rebelde, não o agradava.
-
Eu acho que você e Mel deveriam pensar em um apadrinhamento. Pra conhecer melhor
a menina, ela se adaptar e vocês também. E quem sabe você não muda de ideia e
percebe que ser pai de mais uma filho seria bom?
-
Talvez...é, talvez....
Eles
deveriam estar ali se preparando para uma reunião difícil com um investidor que
pensava em adiar uma grande obra. Mas estava discutindo assuntos muito
pessoais. Jonas não estava nada preocupado. Lembrava-se bem do tempo em que Rafael
ouvia todas as suas dúvidas e lamentos. Era hora de pagar ao amigo com a mesma
atenção. Ele não se surpreendeu quando Rafael perguntou se podia assumir
sozinho aquela reunião.
-
É claro. – Respondeu. – Mas que fará?
-
Vou ao orfanato. Conversar com Marta, conhecer a história dessa menina...dar
uma chance.
-
Fico feliz em ouvir isso. Não tem como decidir bem sem conhecer tudo.
-
É...não sei se conseguirei ser um pai pra Isabely. Não sei se quero isso! Mas
vou lá...por Mel. Não consigo ficar brigado com ela. Simplesmente não consigo.
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