Felicidade. Nenhuma outra palavra da língua portuguesa
conseguia explicar o sentimento que tomava conta do coração de Emily no dia
seguinte a uma noite gelada na fazenda. Depois da mensagem vinda de sua médica,
Emily abraçou Jonas e, bem junto dele, adormeceu. Um sono doce e inspirador.
Naquela madrugada ela sonhou com uma criança. Uma menina
que chorava em seu berço. Ela corria, preocupada, o coração disparado. No
sonho, ela entrou no quarto e assustada abriu a porta. Mas o choro já havia passado
e, ao entrar, Jonas estava lá com sua menina nos braços. Ela já sorria muito
satisfeita nos braços dele e ver aquilo fez seu coração se tranquilizar.
- Tudo dará certo. Eu sei que dará. – Foi com essa
sensação que acordou e viu Jonas ao seu lado. - Bom dia.
- É bom que tenha acordado bem disposta. Porque teremos
um dia e tanto.
Um dia muito gelado. Para aquele final de semana não
estava prevista queda de neve na Serra Gaúcha, um fenômeno raro e que sempre
era muito esperado pelos turistas. Na falta dela, foi a geada a cobrir os
campos e tingir o verde com uma fina camada de gelo. Enquanto o sol ainda esquentava,
o cenário era lindo. Jonas lhe apresentou seu cavalo. Na verdade uma égua,
muito bem cuidada e chamada pelo nome Azaléia. Ela responde ao chamado do dono
e abaixa a cabeça para receber carinho na longa crina negra.
- Cuidado. Temos de ver se ela aceitará você. Azaléia é
ciumenta. Não gosta de outras montarias. É minha desde que nasceu.
- Assim serei eu a ficar com ciúme.
- Não precisa. Azaléia é especial, mas não tem meu
coração. Você sim. Mas quando volto para casa depois de longos tempos em São Paulo , ela sempre
está triste pela minha ausência. E sente o dia da minha partida.
- É engraçado como você, mesmo morando em São Paulo há tantos anos,
ainda se refere a Bento Gonçalves como a sua casa. Esse lugar é tão natural pra
você. Sem terno, sem luxos, sem empregados para todos os lados. E você está tão
relaxado. Parece até mais jovem.
- Sempre será a minha casa. Minha família está aqui. E o
nosso filho conhecerá essa terra. Terá o seu cavalo desde pequeno, participará da
colheita da uva. Eu me orgulho das minhas raízes Emily. É a minha história.
- Eu entendo. Pena que não tenho uma história para contar
ao nosso filho. Queria ter.
- É claro que tem. Marta vai amar nosso bebê. Será um
neto, já que você é a sua filha.
Sim, contra isso Emily não tinha argumentos. Sua mãe de
coração, Marta, lhe dera muito mais que o sobrenome. A fizera se sentir amada.
Lhe ensinou a sonhar. E a tornou uma mulher confiante o bastante em suas
qualidades para lutar por seus objetivos. Foi Marta quem a transformou numa
mulher forte e vitoriosa.
- Vamos nos casar aqui na fazenda, Emily? Existe uma
igreja muito bonita na cidade e o padre é bem próximo da família. Eu gostaria
que fosse ele a nos dar a benção.
- Aqui... – Ela não tinha pensado nisso.
- Nós podemos trazer todos os seus convidados e eles
ficam hospedados conosco. Há muito espaço. E eles vão adorar o lugar.
- Eu sei. Nem tenho tantos convidados assim, Jonas. É só
que...ainda era algo tão vago. Você realmente deseja casar? E se não der certo?
E se não conseguirmos e...
- Vamos deixar os problemas para quando acontecerem,
Emily. Eu quero me casar sim. E essa é uma decisão muito concreta, não tem nada
de vaga. Se você não quiser casar-se aqui...
- Não! Eu quero. Claro! Será lindo! Temos muito o que decidir
então.
- Muito. Mas a minha mãe pode te ajudar. Só quero que
você aproveite esse momento.
Ambos iriam aproveitar muito. No que restou da viagem,
Emily e Jonas fizeram algumas combinações com os pais. A data ainda seria
decidida. Entre convidados de ambos os noivos, umas 40 pessoas viriam.
- Podemos tranquilamente acomodá-los na casa principal e
nos alojamentos dos turistas. É muito confortável.
- Ótimo, mãe. Quero algo tradicional, mas simples. Serão
apenas familiares e amigos. Mesa farta, muito vinho. E Emily linda em um
vestido branco. É só do que eu preciso.
Ao menos tudo do que podia controlar. Ele também
precisava que o tratamento de Emily desse certo. Mas isso ninguém poderia
garantir. Ao retornar para São Paulo, logo marcaram uma consulta com Leonor.
Ela confirmou que os últimos exames feitos em Emily demonstraram que o útero já
estava recuperado da raspagem e pronto para receber a inseminação. O
espermograma dele teve resultados muito positivos e garantiu que poderia gerar
um filho.
- Mesmo assim, preciso que vocês mantenham a ansiedade
controlada. Isso apenas prejudica. A inseminação aumenta as chances, mas não é
certo que fertilização ocorra na primeira tentativa. – A médica alertou.
-Eu tenho certeza de que dará certo. Não tem porque
falhar. Estou confiante.
A inseminação ocorreu cinco dias depois, quando Emily
entrou na fase correta do ciclo menstrual. O procedimento durou apenas alguns
minutos e depois de um pequeno período de repouso ela deixou a clínica. Jonas
ao lado. Ambos sorridentes e apreensivos na mesma medida. Mesmo sem saber se
haveria ou não um bebê daqui a nove meses, já se sentiam mais responsáveis.
Deveria ser natural. Alguém completamente dependente deles já poderia estar se
formando dentro dela. Quase em tom de brincadeira, Jonas fez um afago no ventre
de Emily.
- Está um pouco cedo pra isso, não acha? – Emily
respondeu.
- Por quê? Assim eu vou treinando. E, mesmo que não tenha
bebê ainda, tocar a sua pele não é nenhum sacrifício pra mim.
Acarinhar era fácil. Difícil era viver aquela ansiedade
de saber se a inseminação tinha dado o resultado esperado. E ambos só conheciam
um jeito de acelerar o passar do tempo. Trabalhar. Distrair-se fazendo algo de
útil. Jonas na construtora, Emily no restaurante. A vida encontrava seu rumo.
Já era uma situação muito melhor que a de Lorenzo. Ele
não conseguia se concentrar no trabalho. Passou a semana tropeçando em
problemas causados pela distração. E sabia bem quem eram as responsáveis por
isso: Jéssica e Chiara. Já se passaram quase dez dias desde que passou aquela
noite na casa delas e não a tinha visto mais. Jonas lhe informou que Juliana
prometeu rever o contrato com a empresa terceirizada que contratava
funcionários para funções menos importantes da construtora. Ela verificaria a
remuneração e exigiria melhores condições de trabalho. Mesmo assim, ele não
ficou tranquilo. E sentiu certa decepção que com o passar dos dias ela não
tenha usado o número que lhe deixou.
- E se Chiara estiver passando necessidade e sua mãe for
orgulhosa o bastante para não me ligar? – Esse era o grande medo que sentia.
Se em dia de trabalho já foi difícil manter a cabeça nos
negócios e deixar Jéssica longe de seus pensamentos, no domingo, quando não
trabalhava, sua inquietude tornou-se insuportável.
- Não, ninguém na construtora hoje. – Jonas lhe respondeu
às 11hs da manhã, quando ligou para se certificar que Jéssica estaria em casa.
– Por quê? Quer vir almoçar conosco? Emily está preparando algo divino. Não sei
o que é, mas o cheiro vindo da cozinha é de um banquete.
- Não. Tenho outros planos, meu irmão.
- Tem??? Eu achei que você iria ver a família essa
semana? – Jonas andava desconfiado das atitudes do irmão. – O que há com você,
Lorenzo?
- Eu ia para Bento, mas resolvi ficar. Eu...estou
preocupado com Jéssica. Você pode achar ridículo, mas eu estou. Vou ver se ela
e a filha estão bem.
- Não acho ridículo. – Só não acreditava em apenas
preocupação. Lorenzo estava agindo como quem sente mais que pena ou compaixão.
– O que você deseja dessa moça, meu irmão?
- Ajudar. Só isso. – Respondeu enquanto ia num
restaurante pegar uma refeição para levar. Não seria um banquete, mas, seria
agradável e lhe daria a oportunidade de ajudá-las.
- Não é verdade. Se fosse só isso você mandaria um rancho
ser entregue na casa dela. No máximo a indicaria para um emprego melhor. Mas
você está pensando nela, está se envolvendo com os problemas dela. Está
interessado nela.
- E isso é errado? – Lorenzo estranhou. Jonas nunca foi
esnobe. Nunca ligou para regras sociais. Tanto que estava prestes a casar com
uma mulher que cresceu num orfanato mantido pelo governo. – Acha que Jéssica
não é boa o bastante?
- Não é isso! Não é dinheiro. Isso a gente conquista com
trabalho e, pelo que sei, essa moça é trabalhadora. Também não me importa
nenhum pouco que ela já seja mãe. Sabe muito bem que adoção sempre foi bem
aceita na nossa família. Mas Jéssica e você são de mundos muito diferentes. É
cultural, Lorenzo. Você conhece o mundo, frequenta ótimos restaurantes, experimentos
as coisas boas da vida. Jéssica não tem o básico e provavelmente não tem
estudo, ou teria um emprego melhor.
- Acha que eu devo me afastar dela. É isso?
- Não. Só acho que deve pensar bem. Ela vai se deslumbrar
com você. Um cara com grana, que pode cuidar bem da filha dela e que parece
muito interessado nisso. Mas que afinidades vocês terão? Só não quero que você
se decepcione. – Jonas foi direto e esperava não ter magoado Lorenzo.
E não magoou. Só que também não o dissuadiu. Quem se
importava se Jéssica não conhecia pratos finos de um restaurante. Ele pediu
porções generosas de arroz, bife e batata frita para levar e seguiu para a casa
delas. Também gostava de comida simples.
- Que graça tem conhecer as coisas boas da vida, os
melhores restaurantes e ter viajado pelo mundo se continuava sozinho? –
Perguntava-se guiando o carro.
Jonas estava correto em apenas duas coisas. Ele e Jéssica
realmente estavam em outro nível cultural. Não era questão de classe social.
Isso um banho de loja resolvia. Mas estudo, cultura, isso levava tempo. Só que
a maturidade lhe ensinou a não se preocupar com o que os outros pensam. E daí
se Jéssica já tinha uma filha? E daí se seus amigos estranhariam ela não ter um
diploma superior? E daí se ela fosse a única mulher que conhecia a não desejar
um sapato com etiqueta de Milão. Ele estava encantado por ela mesmo assim.
O outro acerto de Jonas lhe preocupava um pouco mais. Não
queria que Jéssica se encanta-se pela possibilidade dele lhe dar boas
oportunidades na vida. Preocupava-se com que tipo de sentimento conseguiria
despertar nela. Mesmo assim, estava disposto a arriscar.
- Um homem tem de ter o direito de lutar com suas armas
para conquistar uma mulher! – Disse a si mesmo.
Com os cabelos claros amarrados e uma expressão quase
assustada no rosto, Jéssica abriu a porta de sua casa com a expressão quase
adolescente. Estava na cara que ela não esperava encontrá-lo. Talvez procurasse
uma desculpa para mandá-lo embora. Mesmo assim, não estava disposto a desistir.
- Senhor Lorenzo. É uma surpresa vê-lo. Eu...eu...deveria
ter lhe telefonado durante a semana para agradecer...as compras e...
- Não precisa agradecer, Jéssica. Apenas faça o que te
pedi no cartão e ligue se Chiara precisar de qualquer coisa. Não deixe-a necessitar
de nada que eu possa dar. E me chame de Lorenzo, apenas. ‘Senhor’ me faz sentir
ainda mais velho.
- Você não é velho. – Depois que falou Jéssica percebeu
que dizia isso pensando no dia em que o viu sem camisa. Aquele corpo
definitivamente não era de um velho.
- Eu posso entrar? Chiara está?
Jéssica pensou em responder que ela estava, é claro,
porque sua filha sempre estava com ela nos dias em que não trabalhava. Mas
Clara, agitada como nunca naquela manhã, não permitiu que respondesse.
- Meu nome é Clara, não Chiara. – Esclareceu a menina.
- Clara! Não seja mal educada com o senhor Lorenzo.
- Mas é o meu nome, mamãe!
- Ela está certa. – Lorenzo interferiu. Gostou da
esperteza da garotinha. – Mas você sabe, Clara, que em outro país, chamado
Itália, o seu nome é pronunciado Chiara?
- Não.
- A Itália é um país lindo. Da onde os meus avós vieram.
- É aqui perto?
- Não. – Ele e Jéssica riram da menina. – É longe. Bem
longe. Mas um dia você irá conhecer. Então, eu posso te chamar de Chiara?
- Pode, senhor Lorenzo.
- Não, não, não. Sem senhor. Só Lorenzo. Nós somos amigos
agora.
- Tá bem. Você me trouxe chocolate de novo?
- Clara! – Jéssica estava assustada com a forma como
Clara aceitou o visitante.
- Deixe Jéssica, ela é uma criança. Sim, Chiara. Eu lhe
trouxe chocolate. Mas só para depois do almoço.
- Eu estou preparando feijão. – E ainda estava no fogo.
Então Jéssica já pensava no que mais fazer porque, ao que parecia, Lorenzo
planejava ficar. E ela não tinha como mandá-lo embora. Nem tinha vontade.
- Tenho certeza que seu feijão está maravilhoso, Jéssica.
Mas acho que Chiara irá gostar disso. Vamos comer?
Não havia criança que não gostasse de batata frita. E
Lorenzo estava adorando ver a menina Clara pegar, uma a uma, as batatinhas e se
deliciar. Também gostou de ver a dedicação de Jéssica com a menina. Ela havia
cortado a carne e ajudado a filha a comer. A menina já era crescida o bastante
para comer sozinha. Porém, isso significava alguma sujeira pelo chão. Algo que
não incomodava Lorenzo.
- Acho que já chega, não é Clara. Não seja gulosa. –
Jéssica disse à filha.
- É. Minha barriga tá cheia já.
- Mas será que não sobrou nenhum espaço para a sobremesa?
Um chocolate delicioso espera por você. – Lorenzo provocou lhe estendendo o
doce.
- Eu quero, eu quero!
O sorriso só deixou o rosto de Jéssica quando a campainha
tocou. Ela pediu então licença, iria atender.
- Está bem. Eu fico com Chiara. – Ele respondeu sem
entender bem a razão daquela expressão triste no rosto de Jéssica.
Tinha mesmo uma razão. Jéssica já sabia quem estaria do
outro lado da porta. Já sabia o que o visitante desejava. E também qual seria
sua reação após ela informar que seria impossível atender ao pedido.
- Fale baixo, por favor. Eu estou com visita e não quero
que ouçam. – Pediu.
- Se você pagasse o aluguel em dia, não correria esse
risco. Por favor, Jéssica! Sabe que tem de pagar. Ou será despejada. Já são
três meses sem pagar.
- Eu ia pagar essa semana! Mas Clara ficou doente e eu
precisei comprar o remédio. Não podia deixá-la sem o remédio. – Jéssica
explicou.
- Pague o aluguel, Jéssica. Ou deixará a menina sem um
teto!
- Eu não tenho agora. Mas no início do mês terei ao menos
uma parte do dinheiro. Por favor...
- Desculpas não resolvem...
- Quanto é? – Lorenzo disse aparecendo à porta. – Eu pago
o aluguel.
- Não! Não! Lorenzo, você não tem nada com isso e...
- Entre e fique com Chiara na sala, Jéssica. Eu resolvo
isso. Agora, por favor.
O que incomodou Lorenzo, não foi a dívida nem a cobrança.
Mas sim, o tom do homem à porta de Jéssica. Era obviamente mais fácil erguer a
voz para uma mulher sozinha. Ele mudou ao ver que não era mais assim, que
Jéssica não estava sozinha. Não foi difícil resolver a questão. Pagou e o
despachou rapidamente. Só não esperava encontrar Jéssica chorando na cozinha
logo depois.
- O que foi? Está resolvido! Não precisa chorar! – Ele
não contava coma quilo. As lágrimas o assustaram.
- Nada está resolvido! Você não pode entrar aqui, trazer
comida e pagar as minhas contas! Isso é loucura!
Lorenzo resolveu que a melhor coisa era esperar que ela
desabafasse.
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