Diego sentiu o rastro de dor deixado pela primeira
bala que atravessou seu corpo e arrependeu-se da ousadia em tentar fazer algo. Os
homens que ali estavam não aparentavam ser especialistas no que faziam. Ao
contrário, mostravam nervosismo e impaciência, como se não estivessem
habituados ao papel de assaltantes. Isso até poderia ser encarado como algo
bom, não fosse o risco iminente de eles puxarem o gatilho por puro nervosismo.
Sem saber como agir, mas pensando que permanecer imóvel poderia também ser
arriscado, tentou soltar-se e lutar. Temia que, além de levar dinheiro e
objetos da casa, fizessem algum mal a Ariella.
Mal havia conseguido afrouxar um pouco aquela
mordaça e tentava forçar a amarra que mantinha seus braços presos às costas de
uma cadeira quando ouviu o estalar da arma ser engatilhada. Eles poderia ser
inexperientes, mas não a ponto de deixá-lo sem nenhum vigia. E o homem que
recebeu a incumbência de ficar de olho nele, não quis arriscar mais, atirando
contra sua perna.
Ao longe pode ouvir os gritos de Ariella e temeu que o
homem fosse lá também. Com a perna queimando e o sangue escorrendo pela roupa
branca, porém mais preocupado com o que viria a seguir, Diego encarou o homem
que continuava lhe ameaçar com o revólver. Os demais, no segundo andar,
pareciam despreocupados com a razão dos disparos.
- O que você tá querendo, gringo? Não era pra tá aqui.
Veio atrapalhar o nosso papo com a artistazinha. A gente foi legal e resolveu só levar umas coisinhas...por
enquanto vocês dois tão vivos. Tá querendo o que?
- O que vocês querem? É dinheiro, eu sei. Posso...
- Pode nada! Vai calar a boca e ficar quieto aí antes que
eu canse de olhar pra sua cara e resolva te apagar. Tu e a bonequinha de
porcelana. Um tiro em cada cabeça.
- NÃO! Só não machuca ela, por favor. Leva o que quiser e
não nos machuca.
- Ótimo, fica aqui então, bem quietinho, enquanto a minha
galera procura o que nos interessa. E vê se sangra menos...tá sujando o tapete
da bonequinha.
Diego levou algum tempo tentando ouvir o que se passava
no andar de cima e antecipar os próximos passos daqueles homens. Só quando
ouviu o celular de um tocar e ele atender referindo-se a pessoa do outro lado
da linha como “minha linda” é que chegou a uma teoria. Carla, a golpista que se
infiltrou na casa como empregada doméstica e passou detalhes da vida e da
rotina de Ariella ligou para saber o que havia ocorrido. E foi surpreendida
pelo que ouviu.
- Não. Um gringo apareceu com seguranças....não....já
disse que não. Vamos defender o que é certo. Pegar o que der e sumir. – Diego
ouviu o homem afirmar.
Sua chegada os fez desistir do plano de sequestro e
contentar-se com o roubo da residência. Para isso, não hesitaram em matar os
dois seguranças e, temia Diego, não lhes custaria nada puxar o gatilho
fatalmente contra ele ou a proprietária da casa. Já sentindo os efeitos de ter
perdido tanto sangue, Diego ouviu coisas se quebrarem no andar de cima e
começou a temer ainda mais. Ao que percebeu nesse tempo por ali, Ariella vivia
de uma forma muito simples e ele não acreditava que ela guardasse grandes
quantias de dinheiro ou joias em casa. Eles procuravam um cofre...e Diego não
sabia se iriam encontrar algo. Caso a resposta fosse negativa, a chance de irem
embora deixando-os vivos era menor ainda.
Naquele momento, Diego repreendia-se por não ter ligado
para Murilo e explicado porque continuava no Rio de Janeiro. Caso o tivesse
feito, não estaria agora à mercê da sorte para salvar a ele e Ariella. O amigo
não tinha razão alguma para desconfiar de que havia algo de errado em sua
viagem e devia crer que ele e Ariella estavam se acertando – o que realmente
parecia estar acontecendo – ou que ele fora curtir o Carnaval sozinho pelo Rio
de Janeiro. Qual fosse a razão, estava sem saber o que fazer.
Ao contrário de Diego, porém, Ariella havia telefonado
para Dulce. Sua melhor amiga e confidente de tantos momentos especiais não
apenas sabia da chegada inesperada de Diego ao Rio de Janeiro, como de vários
detalhes do que vinha acontecendo. Elas tinham trocado diversas mensagens em
que Ariella pedia para a amiga conselhos de como evitar deixar-se enredar pela
sedução de Diego mais uma vez. Dulce, que jamais negou sua antipatia por Diego
depois do que ele fizera a Ariella na juventude, preferiu não dar nenhuma
sugestão à amiga. Afinal, também ela estava em dúvida. Por mais que
recriminasse as atitudes de Diego, hoje, tantos anos depois e convivendo com
ele, reconhecia que ele realmente a amava. E via que a distância do ex-marido
jamais tornou Ariella uma mulher completamente feliz.
- Faça o que seu coração mandar. – Foi tudo o que Dulce
disse.
A amiga não foi, porém, completamente sincera. Assim que
Ariella lhe disse o que acontecia ela comprou passagens para o Rio de Janeiro e
exigiu a presença de Murilo. O marido argumentou que eles precisavam de um
tempo a sós para resolver os próprios problemas e ter amigos por perto não
ajudaria em nada. Porém, Dulce não estava nenhum pouco preocupada com isso.
Desembarcaram na capital carioca numa manhã de sol forte.
Como era meio do feriado, o aeroporto estava tranquilo. Difícil foi encontrar
um táxi disponível para levá-los até o apartamento que mantinham na cidade.
Apesar da vontade de correr para a casa de Ariella instantaneamente, Dulce
concordou em esperar até aquela noite.
- Diego ficou de me ligar agora a tarde, vamos aguardar.
– Ele pediu. – Enquanto isso, eu vou no hotel ver como está tudo por lá. Sem
confusões, Dulce, por favor.
- Não sei por que me pede isso. Eu não causo confusões,
meu amor. Apenas respondo a elas à altura.
- Sei, claro. – Aquilo simplesmente não era verdade. E
fazia parte do encanto de Dulce. Culta, linda, elegante e requintada, ela sabia
fazer um escândalo como ninguém. Era só desagradá-la. Diego já tinha
experimentado isso em outros momentos e ele esperava não ter uma nova dessas
cenas agora. – Aproveite a praia nessa tarde. Depois nós vamos visitar Ariella.
Aproveitar a praia para colocar o bronzeado em dia não
era nenhum sacrifício para Dulce. Muitas vezes ela e Ariella aproveitaram
aquelas areias juntas. Hoje, porém, viu o sol se pôr com um sentimento de
angústia dentro do peito. Ligou para Ariella e não conseguiu falar com ela. Era
início de noite quando encontrou-se com Murilo e dividiu com ele toda a sua
angústia. Sentia que algo estava errado.
- Está bem. Vou tomar um banho e nós vamos. – Murilo
respondeu. Também estava preocupado. Normalmente muito atento aos negócios,
Diego dessa vez não cumpriu o combinado nem atendia ao celular.
Foi a chegada de Dulce e Murilo que forçou os assaltantes
a saírem da casa. Na área distante e silenciosa em que Ariella vivia, um carro
se aproximando sempre gerava alerta. Diego enxergava pouco e tinha pensamentos
confusos. Ouviu o carro se aproximar, mas pensou estar delirando. A perda de
sangue o tirara as forças e ele já parecia habitar um mundo paralelo. Percebeu
claramente algo estar ocorrido quando todos os homens desceram as escadas
correndo, em fuga. Eles carregavam sacos, o que indicava ter encontrado peças
valiosas. O que ia à frente gritou para o último a ordem que Diego gostaria de
ter ouvido errado.
- Acaba com ele. – Ordenou indo em direção aos fundos da
residência.
O mesmo homem que atirado antes, agora lhe apontava a
arma. E Diego não teve dúvida de que ele finalizaria o serviço. Agradeceu,
porém, ao fato de que nenhum dos bandidos pareceu interessado em procurar por
Ariella. Ele morreria ali, aceitou ao olhar nos olhos de seu carcereiro. Porém,
iria com a esperança de que Ariella sairia viva. E teria a chance de ser feliz
com um outro alguém, que lhe daria o que ele não soube oferecer. Dois tiros
foram disparados. O primeiro, com mira feita calmamente, atravessou seu
abdômen. E no instante que a porta da rua começou a ser esmurrada, já em fuga,
outro disparo foi feito, dessa vez encontrando seu peito.
Quando Murilo e Dulce ouviram tiros e gritos no interior
da casa, começaram a forçar a porta. Quando enfim conseguiram entrar, porém,
tudo o que encontraram foi muito sangue pelo chão e Diego, ao chão, balbuciando
palavras confusas. Histérica, Dulce ouviu os gritos de Ariella e foi até ela,
destrancando a porta facilmente já que apenas uma cadeira bloqueava a
fechadura. Não soube, porém, o que dizer a amiga. Conhecia Ariella o bastante
para saber que ela já sentia o que ocorria, percebia o sofrimento de Diego.
Ariella, depois de ouvir tantos tiros e ver Dulce abraçá-la em um silêncio
doloroso, entendeu que algo grave ocorria. Também em silêncio, ela correu até
chegar ao local em que seu coração exigia estar.
Deparou-se com um Diego com as roupas avermelhadas pelo
sangue. E isso fazia intensificar a palidez de seu rosto. Abraçou-o, beijou sua
face e o viu abrir os olhos. Estavam perdidos, como se não a visse. Na lateral,
Ariella observava Murilo ligar para a emergência e pedir uma ambulância com
urgência. Estavam distantes de tudo, porém. E Ariella sabia o quanto dependia
deles salvar a vida de Diego. A dificuldade de caminhar foi esquecida e ela
correu de volta ao banheiro em que esteve presa, dessa vez para pegar toalhas e
cuidar de Diego.
Sem dar atenção a nada além de zelar por ele, circulou
sua perna e pressionou o abdômen e peito com as toalhas. Ele não podia seguir
perdendo sangue enquanto os paramédicos não chegavam. Depois secou o suor que
umedecia seu rosto e o acariciou, beijando a testa do homem que horas antes lhe
oferecia amor. Qualquer um que os visse naquele instante não acreditaria que
uma década antes eles guerrearam feito inimigos e que as marcas hoje carregadas
por ela no corpo eram responsabilidade dele. Diego, porém, jamais esquecia.
- Ariella...Ari... – Buscando forças de onde não tinha,
ele tentava lhe dizer coisas que não podiam ser deixadas para outra
oportunidade. Porque essa talvez não existisse.
- Não fale. Descanse. Você ficará bem.
- Ariella....preciso...pre...preciso que ouça. – Ele
parou e tomou fôlego. – Preciso que diga...diga que me perdoa.
- Diego...agora não é hora...
- Posso não ter outra chance. Diga...por favor...diga...
- Diego eu... – Ela não sabia o que responder. Perdão era
algo forte demais. – Você vai viver e então conversaremos.
- Talvez não. – As lágrimas se misturaram ao sangue. –
Eu... eu te amo. Preciso que saiba disso. Sempre vou te amar. Mesmo se eu
morrer hoje, vou continuar te amando. Perdoe-me pe...pelo mal que te fiz.
- Perdôo. Não pense mais nisso agora. Só pense em ficar
bem. Só viva, apenas viva!
Apenas viva. A frase transformou-se em um mantra para
Ariella. Tudo passou muito rápido dali em diante. A ambulância chegou e Diego
seguiu para o hospital. Ela foi, levada por Murilo e Dulce. Logo, porém, lhe
disseram que teria de ir na polícia depor a respeito do crime e informar a
seguradora de tudo o que se passara. Revoltou-se, disse que de nada adiantaria
tudo isso quando a única preocupação verdadeira em seu coração era a
sobrevivência de Diego.
- Mas você nem sabe o que levaram da sua casa. Nem mesmo
foi ao segundo andar. – Murilo lembrou-a com a calma que um homem de negócios
costumava manter em momentos difíceis.
- Pois poderiam ter levado tudo. Não me importo. – Ela
respondeu e seguiu sentada no chão da emergência hospitalar, sem forças para
levantar.
Sua mente estava em turbilhão. Foi avisada de que uma
longa cirurgia de emergência ocorria, sem hora para terminar. Ela seguiu ali
chorando. Primeiro em um pranto silencioso, depois numa explosão atormentada.
Inexplicavelmente, sofria mais do que quando fora ela a machucada. No passado,
culpou Diego por suas dores. Hoje, porém, não tinha a quem culpar. E revoltava-se
contra a vida que injustamente ameaça lhe tirar a felicidade que teve a chance,
apenas, de avistar chegando num horizonte incerto.
- Ariella, venha comigo. Você precisa lavar o rosto e se
erguer. Diego vai sobreviver. – Dulce tentou afagá-la.
- Você não entende...é injusto demais. Ele voltou pra
mim, por mim, para me defender, para a minha proteção. E agora está morrendo!
Por mim! Não quero! Preferiria estar eu lá! Não ele!
- Tem razão. Não é justo. Mas quis a vida que fosse
assim. Você se ergueu uma vez, quando esteve nunca cama hospitalar, muito
ferida. Diego também será forte para se erguer. – A amiga falava sério, olhando
em seus olhos.
Ariella ouviu Dulce e seguiu o
conselho da amiga e de Murilo. Era precisa manter-se forte para ajudar Diego.
Ariella aceitou falar com a policial que veio hospital. Depois da queixa feita,
autorizou Murilo a assumir questões burocráticas ligadas ao seguro e, na
companhia de Dulce foi para casa
banhar-se. Não aceitou comer nada nem descansar.
- Não consigo. É impossível. –
Explicou.
Dulce não questionou a amiga. Mas
estava muito preocupada com ela. Primeiro porque ela estava emocionalmente
muito frágil, até mesmo confusa mentalmente. Depois porque apesar de nunca reconhecer,
ela tinha limitações físicas e precisava de cuidados. Uma atenção que raramente
dedicava a si mesma. Quando a cirurgia de Diego teve fim, quase 10 horas
depois, Ariella já estava de volta ao hospital, sem planos de sair. A conversa
com o médico, no entanto, não trouxe nada de animador. As balas foram
retiradas, mas o fígado e o pulmão tinham sido seriamente comprometidos. E a
grande hemorragia estava exigindo o recebimento de muitas bolsas de sangue.
- Por enquanto, tudo o que podemos
fazer é esperar. Os próximos dias serão decisivos. – Afirmou o especialista. –
Cada dia é uma vitória.
Dulce e Murilo definiram que
ficariam bastante tempo no Brasil. Ele colocou outro executivo para cumprir
suas funções e as de Diego em Madri. E Dulce assumiu Ariella como sua
responsabilidade. Murilo teve muito mais facilidade de se adaptar do que Dulce.
Porque a empresa seguia o mesmo ritmo de sempre, mesmo com seu fundador entre a
vida e a morte. Já Ariella estava fora do eixo. Os primeiros quatro dias
passaram com ela dormindo poucas horas sobre uma poltrona da recepção
hospitalar. Alimentar-se era algo raro, o que fez seu rosto afinar rapidamente.
Ariella caminhava de um lado ao outro, ansiosa por boletins hospitalares, sem
perceber que as horas passavam e seu andar tornava-se mais irregular conforme o
cansaço crescia.
- Você precisa se acalmar, Ariella.
Por favor, vamos comer algo. – Dulce repetiu naquela manhã.
- Nada desce na minha garganta,
Dulce. Vá você. – Ela respondeu.
- Você ouviu o médico, Diego está em
coma. Pode ficar muito tempo assim. Você tem de suportar, para estar bem quando
ele acordar.
Quando. E não ‘se’, Ariella percebeu
a otimista escolha de palavras feita por Dulce e sorriu. Sim, Diego
sobreviveria. Era tão saudável, tinha tanta vontade de viver, de ficar ao lado
dela. Não se entregaria à morte naquele momento. Não quando, enfim, tinham
reencontrado um os braços do outro.
- Vá comer, Dulce. Eu ficarei aqui.
– Ela disse, sorrindo.
Dulce foi, mas Ariella não ficou
muito tempo só. Após alguns minutos solitária na recepção, enquanto rezava,
ouviu um leve caminhar, muito lento, mas que ela não tardou em reconhecer.
Apesar de terem se visto pouco e conhecido em um momento turbulento, aquela boa
alma vinha como um anjo lhe acalentar. Anita a olhou com preocupação, mas
também com serenidade. Já tinha vivido muitos momentos preocupantes na vida,
tinha sofrido a morte dos pais de Diego e visto seu neto cometer erros
perigosos para então sofrer com as consequências. Agora, via aquela jovem
chorar mais uma vez em um hospital e percebia o quanto aquela dor machucava.
Aquela moça, mais do que ninguém, tinha razões para odiar Diego, talvez para
desejar sua morte. No entanto, ela estava ali rezando pela sua sobrevivência.
- Anita...é bom vê-la. – Ariella
ergueu-se para abraçar a idosa senhora.
- Minha menina...vim apoiar meu neto
e também a você, minha nora. – Anita acariciou a face de Ariella enquanto
explicava o que disse. – Ao menos em parte, tive de cobrir a falta que a mãe de
Diego lhe fez. Então o considero um filho.
- Eu não sou mais a esposa dele,
para ser a sua nora, Anita.
- Ele jamais deixou de considerá-la
assim. E se você está aqui, rezando por ele, é porque o seu coração deve ter a
mesma opinião. Quem essa velha aqui é para discordar de dois corações
enamorados?
Ariella não ousou questionar. Apenas
apertou os braços à senhora que no passado lhe estendeu a mão. Juntas elas
choraram esperando que um dia o destino lhes fosse mais generoso.
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