O tempo oferecido ao
filho serviu como um balsamo ao coração de Márcia. Ela podia até não
compreender completamente o que se passava, mas somente agora, tantos meses
após a oficialização de seu conturbado divórcio, ela cicatrizava as feridas mais
profundas. Somente agora ela passava a viver como mãe e mulher, após não ter
mais o posto de esposa. E somente agora era entendia que ser a executiva
competente só fazia sentido se ela conseguisse ser também uma mulher feliz.
Ela
e Joaquim estavam atirados sobre o sofá da sala, assistindo um filme e comendo
sorvete quando ela sentiu o celular vibrar. Sorrindo deu-se conta que havia
ignorado o aparelho nas horas anteriores, algo raro na antiga Márcia e um
hábito que ela pretendia cultivar. Cogitou sequer olhar o aparelho, não queria
nada nem ninguém atrapalhando seu dia em família, sobretudo se esse alguém
fosse Alex. Teve com dificuldade em ver com clareza, mas agora entendia que sua
felicidade dependia da capacidade de ver Alex o mínimo possível e de enxergá-lo
como nada mais do que um passado triste. Por sorte, olhou o visor do aparelho e
viu se tratar de Raul respondendo a mensagem que lhe mandou do parque. [Não
precisa agradecer. Só seja mãe. Cuide, brinque e faça seu filho feliz, porque
se ele estiver feliz, você também estará.]
Mais
uma vez ele acertara em cheio. Quando contratará Raul, buscava apenas por um
advogado forte para lutar contra Alex. Não esperava conseguir alguém ainda mais
forte, que lutasse também contra ela quando suas atitudes fossem além do que
era certo. Conseguiu um representante legal justo, além de um amigo sincero.
Ambas as coisas eram raras de se ter hoje em dia. Enquanto Joaquim assistia o
filho e comia vorazmente seu sorvete, Márcia fez uma breve avaliação de sua
vida na JRJ Construtora. Nos negócios ia tudo bem, considerando as dificuldades
que a crise financeira impunha ao setor da construção civil.
Algo,
porém, começava a incomodá-la nos pelos corredores da empresa. Se seu tempo ali
serviu para que todos aprendessem a confiar em sua competência, em nada
adiantou para que criasse laços de amizade. Jonas e Rafael eram muito mais do
que sócios, tinham amizade, eram quase irmãos. O tempo de parceria era
responsável por isso, ela sempre acreditou. Mas agora entendia que nem só o
tempo. Oportunidades lhe foram dadas para que se aproximasse deles e ela fez
questão de negar. Quando ali chegou, foi tratada com respeito e desconfiança.
Por educação, porém, Melissa a tinha convidado para um jantar de recepção. Ela
recusou. E no último Natal, Jonas e Emily convidaram ela e Joaquim a irem
participar da ceia dos Vicentin, no Rio Grande do Sul. Mais uma vez optou por
declinar do convite. Era hora de mudar aquela postura, sobretudo porque Jonas
já dera mostra do grande amigo que podia ser, caso ela permitisse. Voltou a
digitar no WhatsApp, agora tendo o sócio como destinatário. [Foi bom poder
conversar com você. Obrigado.] Não tardou a receber resposta. [É sempre
bem-vinda em minha sala, mesmo que para falar de tudo menos negócios]. Sorrindo
para o telefone, Márcia resolveu que ser feliz era muito simples.
-
Filho! Tive uma ideia! Você já descansou né? Não está cansado demais para
sairmos novamente? – Ofereceu para Joaquim.
-
Não mãe! Tô bem. Aonde vamos? – Aquela nova mãe estava muito divertida. E ele
queria aproveitar.
-
Eu mudei de ideia...não quero ver filme em casa. Vamos no cinema?
Já
era tarde para uma criança estar na rua. Mas quem se importava? Ela estava
feliz, Joaquim ainda mais e ambos se divertiram bastante. Uma passada pela loja
de doces. A compra de uma camiseta legal que ele gostou e rumaram para a fila
do cinema. O filme é o que menos importava. A única divergência que surgiu foi
quanto a pipoca. Era mistura demais para um dia, Márcia lembrou ao filho.
-
Aaaaa mamãe...mas eu compro o saco pequenininho. Nem vai fazer diferença na
minha barriga.
-
Está bem. Compre. Mas se você tiver dor de barriga, vai tomar aquele chá bem
amargo e sem reclamar. Está bem?
-
Tá bem! – Ele aceitou a negociação.
Ali
ela ficou, achando-se pouco arrumada e cansada, porém, realizada. Esperou
sentada nos estofados que ficavam na entrada do cinema, observando de longe
Joaquim entrar na fila para comprar pipoca. Percebeu quando muitas pessoas
começaram a passar, ao final de uma sessão. E surpreendeu-se ao ver um
conhecido. Raul deixava o cinema acompanhado de uma bela mulher, uma jovem que
não aparentava ter mais do que vinte e poucos anos. Ele a viu ali sentada,
cansada e cuidando do filho e apenas lhe acenou.
Ela
disse a si mesma que não deveria ficar magoada, afinal, ele estava acompanhado
e em um momento de lazer. Porém, lá no fundo, vê-lo com aquela garota não lhe
fez bem. Era uma menina tão jovem, tão mais jovem que ela. De repente, a ideia
de vir ao shopping sem se arrumar pareceu péssima. O tempo sabia como ser cruel
com as mulheres.
-
Mãe! Mamãe! Tá na hora. Vamos perder nosso filme! – Joaquim a tirou dos
devaneios e devolveu para a realidade.
-
Desculpe, meu amor. Vamos sim. - Sorrindo ao filho, levantou-se e foram para a
entrada da sessão. O bom de ser mãe é que não se tem tempo o bastante para
sofrer.
Na
casa dos Gomide, à mesa do jantar, Isabely sentia-se constrangida. A comida
estava gostosa, todos ali a tratavam bem, o lugar era bacana, mas tudo era
muito estranho. E a cada momento ali ela se sentia mais estranha. Tális bem que
tentou deixar tudo mais leve, puxar assunto e fazê-la se sentir melhor. Mas não
adiantou muito.
-
Não está gostando do jantar, Isa? – Melissa perguntou, mesmo duvidando que o
bife com batata frita não a agradasse.
-
Tá bom sim, bem gostoso. – Ela respondeu, bebendo do refrigerante e comendo
algumas batatinhas.
Tinham
passado uma tarde bem feliz. Logo depois dela se instalar no quarto de hóspedes
e jogar algumas partidas de vídeo-game com Tális, Rafael foi ao quarto decidido
a tirá-los daquele quarto. Estava um dia lindo demais para ficarem ali
trancados. Depois de olhá-los por alguns minutos e perceber o entrosamento
espontâneo e natural que desenvolveram, foi necessário interromper a diversão.
-
O que você gosta de fazer, Isa? – Perguntou, já que conhecia bem os gostos do
filho.
-
Não sei...eu...costumava brincar na rua quando fazia sol. – Ela respondeu, de
forma sincera, porém, sabendo que morar na rua não era uma opção para quem
tinha dinheiro o bastante para ter qualquer diversão dentro de casa.
Rafael
sorriu diante da resposta. Não um riso de deboche. Nada tinha de engraçado o
que ela afirmou. Sorriu frente a simplicidade da resposta de uma criança que,
mesmo podendo pedir qualquer coisa, citava algo que estava disponível para
qualquer um.
-
Desliguem o computador. Vou levá-los para patinar. Depois, se quiser, podem ir
ao parque de jogos do shopping ou jogar boliche. Acho que já estão bem
grandinhos para brincar na rua...e Isabely irá gostar de jogar boliche.
-
Você vai gostar Isa! – Tális garantiu. – Oooo pai! A Isa pode viajar com a
gente em um final de semana? Podíamos ir na fazenda do tio Jonas!
Isa
tinha a expressão assuntada com todas aquelas possibilidades. Por isso Rafael entendeu
que era necessário seguir de forma um pouco mais lenta. Ou perderiam a
confiança da menina.
-
Não sei, Tális. – Respondeu, mesmo sabendo que poderiam viajar sempre que
desejassem. – Se Isabely quiser viajar conosco uma hora dessas, eu peço para Marta
e, se ela permitir, converso com Jonas para marcarmos. Agora, apressem-se.
Espero os dois na garagem.
Era
em Jonas e Lorenzo que Milena pensava ao ir se deitar naquela noite. Usava o
seu quarto de infância, mantido com esmero pela família. Ao lado ficava o de
Maria e três cômodos adiante, o de hóspedes, hoje ocupado por Nathan. Os
quartos de Jonas e Lorenzo também seguiam existindo na grande casa. Porém, não
idênticos quanto há décadas atrás. O do primogênito dos Vicentin fora
totalmente redecorado após Lorenzo casar-se com Jéssica. Eles raramente ficavam
ali já que ele mantinha uma bela e confortável casa no centro de Bento
Gonçalves e, tendo três crianças, era mais fácil ficar lá. Porém, se
precisassem pernoitar na fazenda, Lorenzo fazia questão que Jéssica se sentisse
bem ali, por isso retirou qualquer lembrança ou referência a Alice, sua esposa
na juventude. Já o cômodo ocupado por Jonas fora ampliado. E quando eles ali
estava, ele e Emily apenas precisavam abrir a porta para ter acesso a Vida e Bernardo.
-
Eu queria ser como eles. Ter encontrado um homem perfeito, que me amasse e
tratasse feito uma princesa e se encantasse com a notícia de uma gravidez. Que
nos casássemos como Deus manda e formar mais uma família perfeita. Mas não foi
assim.
Sozinha,
com a cabeça deitada sobre o travesseiro, Milena chorou tendo aqueles
pensamentos. Não tinha como voltar no tempo. E, se fosse sincera, jamais
desejou realmente poder mudar o que fez. Maria Fernanda veio na hora errada,
talvez, mas trouxe vida para sua existência. Agora a simples ideia de ficar
sozinha no mundo soava triste. Vivia por Maria, para lhe dar uma vida melhor,
para fazê-la feliz. E vivei bem até hoje, suprindo a falta de um pai para a
menina. Agora, com a volta de Nathan, sentia tudo desmoronando, as peças do
jogo mudavam de lugar ao mesmo tempo. E ela sentia que já não acompanhava o
ritmo.
Estava
preocupada. Nenhum membro de sua família iria tentar interferir em suas
decisões. Porém, tinha coisas difíceis para fazer nos próximos dias. Uma delas
era contar tudo para Lorenzo e Jonas. E, estranhamente, contar os irmãos, lhe
soava bem mais duro que dizer aos pais. Porque aqueles homens foram seus braços
e pernas sempre que os dela foram curtos ou fracos demais. Parceiros, amigos, companheiros,
confidentes...eles a ajudaram em tudo. Inclusive quando afirmou estar grávida
sem ter um pai para apresentar. Eles reclamaram, gritaram e a pressionaram. Mas
estiveram ali, presentes, prontos para ajudar em qualquer necessidade. Quando
entrara em trabalho de parto, não se surpreendeu ao saber que eles tomaram o
primeiro voo para Porto Alegre a fim de conhecer a nova ‘gauchinha’ que chegava
ao mundo. A surdez de Maria logo foi percebida e eles se mantiveram firmes ao
seu lado. Nunca precisou que lhe oferecessem dinheiro, mas sempre soube que, se
esse fosse o caso, não faltariam mãos para ser estendidas.
Se
encarassem a novidade que tinham para contar como traição, estariam certos ou,
pelo menos, teriam razão para tal. Não havia tido um namoro juvenil com um
jovem qualquer que negou-se a assumir o filho. Tinha mantido um caso com um
homem conhecido por eles, que frequentou a Vinícola Vicentin, que bebeu à mesa
com eles enquanto a levava para cama em hotéis desconhecidos. Havia se
comportado como uma mulher que não se dá ao respeito e desrespeitado aquela
família que lhe abriu os braços no passado. E depois mentiu para os Vicentin,
protegendo Nathan. Eles tinham todas as razões do mundo para jamais perdoá-la.
Só que lá no fundo, esperava pela tolerância e pelo amor deles.
Desistindo
de dormir já que a insônia se mostrou duradoura, seguiu para a cozinha. Iria
dar continuidade a um hábito de infância. Chá com mel, para chamar o sono e os
sonhos agradáveis. Nesse caso, porém, chamou apenas a razão de suas
preocupações. Parecia que ela não era a única a estar brigada com o
travesseiro.
-
Nathan! O que faz aqui?
-
Não estava conseguindo dormir e vim pegar uma água. E você?
-
A mesma coisa.
Em
silêncio, Nathan observou Milena colocar uma chaleira de água para ferver no
fogão e escolher um dentre vários saquinhos de chá muito organizados numa lata.
Quando a infusão ficou pronta, ela adoçou com mel e mexeu. Ela poderia ter ido
para o seu quarto e assim proteger a si mesma na fortaleza que criou. Mas sentou-se
à sua frente na bancada e assumiu que a razão de ambos não conseguirem dormir
precisava ser sanada.
-
É estranho ter você aqui, nessa casa, tão perto de nós. – Ela explicou.
-
Você precisará se acostumar. Daqui em diante, estarei sempre por perto. Não vou
me arrepender do que fiz, nem nada do tipo. Não vou fugir para a Itália
novamente.
-
Eu sei.
-
Então porque se comporta como se esperasse que eu desaparecesse a qualquer
momento? Honestamente, Milena, você parece uma criança assustada. E esse papel
não combina com você. – Nathan soou um pouco prepotente ao julgá-la.
-
Se parece ter esse medo, é porque você sempre foi um expert em fugir das
responsabilidades. – Acusou. Ela aceitaria ser julgada por qualquer um, menos
ele.
Aquela
era uma acusação que doía em Nathan. Nunca foi um homem covarde. Ao contrário,
pagou preço caro para arcar com suas responsabilidades na vida. E fora uma
responsabilidade a levá-lo de volta a Milão quando seu coração pedia que
ficasse no Brasil. Não aceitaria, porém, que Milena se comportasse como se ele
fosse o único a errar naquela relação.
-
Eu nunca fugi da minha responsabilidade com Maria Fernanda. Você me afastou
dela! – Acusou.
-
É fácil falar depois que tudo está
resolvido. – Ela respondeu. Brigavam entre cochichos para não acordar ninguém.
E ambos notavam o ridículo da situação. – Fui eu que tive de lidar com a
notícia de uma gravidez. Fui eu quem precisou assumir para a família e os
vizinhos. Eu estive sozinha enquanto você bancava o marido zeloso na Itália.
Ela
deu-lhe as costas e jogou o chá ainda quente na pia. De repente ele lhe pareceu
doce demais, repugnante. Passou por Nathan e seguiu pela casa. Antes de chegar
na escada, porém, sentiu que ele lhe segurava pelo braço e puxava para si.
-
Me solte! – Ela esbraveceu. – O que quer agora?
-
Sabe que eu tenho uma raiva danada de você, não sabe?
-
Sei! Esse sentimento existe em mim também!
-
A é? E quais outros sentimentos compartilhamos, Milena? Não é o único! Você
sabe.
No
passado houve uma paixão avassaladora, que os levou a extrapolar qualquer regra
e ter a vida marcada por novos rumos que talvez não estivessem escritas em seus
destinos. A paixão que tirou a vida de ambos dos eixos e que os fez amar na
hora errada. Agora havia desejo. No estado mais puro, sanguíneo, visceral e
tentador. Dar vazão a toda essa tempestade parecia tão errado quanto natural. E
o ímpeto que fez o sangue de Nathan circular de forma mais ágil em seu corpo o
fez pensar em nada além do desejo.
-
Eu sei que você quer também. – Afirmou, passando os braços em sua cintura e
sentindo a maciez daquele corpo. – Sempre foi bom entre nós.
-
A gente não é mais aquelas duas pessoas....você mudou. Eu mudei.
-
É, mudou. – Nathan concordou. – E eu gosto bastante de como é hoje.
-
Nós temos um monte de problemas entre nós, Nathan!
-
É verdade também. – Ele a beijou com vontade, dando vazão ao que sentia e
esquecendo o medo de que voltasse a dar errado. – Danem-se todos eles. Eu quero
você.
O
beijo não veio calmo que os que ambos se lembravam. Veio numa tormenta,
acompanhado de mãos ágeis e gestos pouco delicados. As roupas pareciam
desnecessárias. A temperatura pareceu se elevar. Milena percebeu que apesar das
inúmeras dúvidas que sua mente acumulava, o corpo parecia guardar apenas certezas.
Desejava Nathan e estar nos braços dele era como voltar para casa após uma
longa e cansativa viagem.
-
O meu quarto ou o seu? – Nathan foi direto.
-
Não...não podemos...
-
Basta, Milena. Não minta para você mesma. Seu quarto ou o meu? Ou pode ser aqui
na escada mesmo, mas acho que a maravilhosa vovó Ângela poderia sofrer um
choque ao amanhecer.
-
No meu...agora. – Milena, confirmou, sentindo-se corajosa com a decisão e
agarrando-se ainda mais ao corpo de Nathan.
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