Observar
a filha e ver nela, ainda vivas, as razões que a fizeram sobreviver às
provações mais difíceis, fez Beatriz buscar forças e seguir lutando. Sua
vontade era isolar-se e chorar na privacidade, sem ter de encarar uma filha que
não a reconhecia. Essa fraqueza, porém, não lhe pertencia e ela obrigou-se a
agachar-se e estender a mão para a tímida criança que nascera de seu corpo, mas
não manifestava nenhuma lembrança de sua mãe.
- Eva?
Porque não me deixa lhe dar um abraço? – Afirmou, tentando não deixar a voz
trêmula dominá-la. – Não vou machucá-la, venha.
Não
foi rápido, nem instintivo. A pequena havia perdido o contato com a mãe numa
idade ainda tão jovem que os laços não foram reafirmados. Mas com um rápido
incentivo de Matt, Eva deu um passo em direção aos braços que tanto precisavam senti-la.
Foi questão de tempo para ter início um abraço, banhado em lágrimas que a
criança não entendeu, mas tornaram o coração e Bia um pouco mais leve.
Os
olhos de Eva podiam não reconhecer sua mãe, mas algo, dentro daquele abraço,
fez com que não mais desejasse ficar sem os braços da visitante a protegê-la.
Talvez fosse o cheiro. Quem sabe a voz doce e carinhosa. Ou, ainda, alguma
lembrança revivida no inconsciente. No íntimo, elas se reconheceram. E quando
Eva enfim saiu do abraço de sua mãe, foi para estender-lhe a mão.
- Vem
brincar comigo, vem? De massinha. – A filha convidou e mãe acompanhou, disposta
a compensar o tempo perdido.
Horas se passaram até que Eva se cansasse de sua nova
amiga. Era assim que ela via a mãe no momento. E já estava muito bom, pensava
Bia. Com Eva já adormecida, Matt colocou a menina para dormir sobre um sofá
macio e pode, enfim, dar atenção à sua amiga. Viu cansaço nos olhos de Bia e,
também, alguma confusão mental. Natural. Retornar a rotina de mãe após tudo o
que viveu não era tarefa simples.
Matt abraçou sua amiga, sabendo que Patty lhe dava
espaço e mantinha-se mais afastada. Nesse momento, agradecia ter uma namorada
compreensiva, que não tinha crise de ciúmes por causa de suas amigas. Isso, que
por vezes pôs fim em relacionamentos seus, não aparentava sequer incomodar
Patrícia. Ao contrário, ela e Bia pareciam rapidamente retomar a amizade do
passado.
- A gente tem tanto à conversar. – Bia disse ao
abraçar Paty.
- Temos bastante tempo. Não se preocupe.
Eles jantaram juntos e, mesmo sendo já tarde, passaram
um longo tempo conversando. Primeiro amenidades, depois um pouco do que Bia
viveu naqueles meses, as pessoas que conheceu, as diferenças do que acreditava
enquanto repórter para o que constatou, na realidade dura do cativeiro. Matt
mais ouvia do que falava. Tentava entender sua amiga de infância. Aquela que
sempre fora a mais ingênua e sonhadora do trio, quem subia na casa da árvore e
fingia que o abrigo era um castelo, quem se casou tão jovem na busca por uma
família. Havia outra mulher à sua frente. Amadurecida, mas muito mais que isso.
Ferida. Coberta de tantas cicatrizes que ele arriscava dizer não ser a mesma
mulher. Elizabeth havia lhe enviado uma mensagem lhe dizendo desconfiar que a
irmã sofria da Síndrome de Estocolmo. Talvez, mas ele não estava certo. Era
inegável que ela criara laços com alguém por quem tem motivos para fugir. Se amor
ou doença ele não arriscava dizer.
Liz tentou manter a conversa o mais leve possível, sem
que a curiosidade deles tornasse aquele jantar uma prévia do duro
interrogatório pelo qual ela teria que passar em breve. Ainda assim, não
demorou o assunto alcançar seu tema principal, Sebastian Gonzáles e o estranho relacionamento
deles. E foi então que o clima deixou de ser ameno. Ao falar dele Beatriz
ganhou ares de leoa, já armada para revidar críticas e acusações. Matheus
tentou guardar os seus questionamentos mais duros para um momento mais tranquilo.
Elizabeth não teve a mesma paciência.
- Não adianta você tentar transformar esse homem num
santo, Beatriz. Ele não é. E juiz algum acreditará. – Ela lembrou a irmã, mais
uma vez.
- Nem você vesti-lo de demônio. – Revidou Beatriz. Ela
olhou para Matt em busca de socorro, mas não encontrou. – Vocês não entendem
que Sebastian me salvou de tudo, da forma dele, é verdade, mas me protegeu e
ofereceu o melhor que tinha. Eu conheço o melhor dele.
- Pode ser, Bia. – Matt tentou argumentar. – Mas você
não pode, devido a isso, esperar que a lei o absolva do que o “pior Sebastian”
fez. Ao que fiquei sabendo, nem mesmo ele nega várias ilegalidades.
- Eu estaria morta agora, ou seria escrava de alguém
cruel e sem escrúpulos se ele não tivesse me tirado daquele lugar horrível. Ele
me salvou de Gabriela, é o que importa.
- Ele também não teve escrúpulos em comprá-la e
escravizá-la, Bia. – Liz insistiu. – Ou você irá dizer ao juiz que viveu em um
apartamento dele, escondida, sem ter as chaves ou liberdade de acesso a rua,
mas, que era uma hóspede comum?
- Vocês não estavam lá para saber como foi! – No
fundo, porém, ela sabia não haver saída para aquelas acusações. Sobretudo,
porque elas não eram feitas por uma irmã qualquer, mas por uma experiente
investigadora policial que estava habituada a fazer suspeitos tropeçarem em
interrogatórios.
Eles não chegaram a consenso algum. No final, Bia pediu
para que Matt deixasse Eva ali naquela noite. Elas precisavam de mais tempo
juntas. Matheus até temeu que a menina se assustasse no meio da noite caso
acordasse com uma estranha, mas permitiu. Afinal, elas iriam se entender bem e Rafael
nem precisaria saber. Era comum Eva passar vários dias com os padrinhos, sem
que ele soubesse exatamente como a filha estava. A verdade é que o pai da
menina pouco se importava com ela.
Depois que todos se despediram, Matt e Paty foram
embora. Beatriz foi para o quarto junto de Eva, não desejando entrar em mais
uma discussão. Ficou na cama, abraçada à filha, relembrando coisas que desejava
esquecer, mas que não saiam de seus pensamentos. Mesmo desejando entender Matt,
Paty e Liz, sentia-se um pouco magoada com eles. Porque aqueles que mais amava
não podiam entender seus sentimentos e apoiá-la, fosse qual fosse a sua
decisão. Ela olhava nos olhos de Matt e via consternação. Ele relevava seu
comportamento, que considerava insano, em prol da amizade. Liz a tratava como se
estivesse demente. Só nos olhos de Paty encontrou alguma compreensão. Talvez,
por ter vivido algo semelhante, a namorada de Matheus entendesse o que sentia.
Soubesse que mesmo naquele ambiente era possível encontrar alguém diferente.
Eles acreditam que ela estava doente. Creditavam tudo
o que sentia a chamada Síndrome de Estocolmo. Ignorância era tentar decifrar e
catalogar os sentimentos de alguém dessa forma. Nos tempos de repórter escreveu
uma matéria a respeito dessa doença que parecia acometer algumas pessoas que
passavam por situações de risco e de forte impacto emocional. Na época pensou
se tratar de algo muito estranho e perigoso. Uma confusão de sentimentos. Hoje
tinha uma visão completamente diferente. Ninguém, nem mesmo o maior
especialista na mente humana poderia julgar ou entender melhor os sentimentos
de alguém que aquele a senti-los dentro do peito. E se eles preferiam
desacreditar, que ficassem na ignorância. Ela sabia decifrar o que sentia. No
dia seguinte, mesmo sem o apoio de ninguém, iria ver Sebastian, conversar com
ele e ver o que poderia fazer para ajudá-lo a ser libertado.
No quarto ao lado, Elizabeth também tinha dificuldade
em dormir. Fosse pela barriga de final de gestação, o impasse com Beatriz ou a
ausência de Miguel, o sono teimava em não vir apesar dela ter o corpo cansado e
a mente exausta. Quando ouviu o barulho na porta forçou-se a manter a calma,
sem desejar fazer o papel da esposa chata.
- Acordada? Espero não ser eu o culpado. – Ele lhe
disse aproximando-se para um beijo rápido.
- Não exatamente. Eles saíram tarde, Eva ficou com Bia
e eu...dei uma ajeitada na cozinha antes de deitar. Ela não está querendo muito
assunto comigo.
- Isso passa. Ela precisa de um tempo. – Ele respondeu esvaziando os bolsos sobre a
cômoda antes de ir ao chuveiro. – Não vai me perguntar por que eu cheguei
depois da meia noite?
- Não. Porque você tem a obrigação de me explicar sem
que eu precise perguntar. – A resposta afiada fez a ambos sorrir.
- Bem pensado, senhora Benitez. – Ele seguia falando
enquanto tirava a roupa. – Eu não estava com Alejandra até essa hora.
- Isso eu imaginei, Miguel. – Elizabeth tentava manter
a calma. Traição, naquele momento, não lhe gerava calafrios. Ela e Miguel nunca
estiveram tão dedicados ao relacionamento como agora. – Até porque Catarina é
uma recém-nascida e, segundo me falaram, o pós-parto costuma ser difícil mesmo
para dermatologistas cheias de pose.
- Sim, não está sendo fácil para Alejandra lidar com
as mudanças que a maternidade trouxe, nem para a rotina ou para o corpo.
- Bom saber que ela é humana. – Ácida, Elizabeth
revidou. – Então, se não estava com elas...
- Eu as visitei e conversei com Alejandra para ver do
que ela está precisando. Catarina já saiu do hospital registrada como minha
filha. Eu acho que vamos conseguir conviver bem.
- Que ótimo. – Infelizmente ela não tinha essa
certeza. E no íntimo, desejava que Alejandra voltasse para Espanha.
Infelizmente, sabia o quanto isso faria Miguel sofrer.
- Depois eu encontrei com um arquiteto. Meu amigo há
anos, do tempo da faculdade. Pedi que ele visitasse nosso novo apartamento e
apresentasse um projeto de mudanças. Vamos decorá-lo juntos, nós três. E quando
você se sentir confortável, nos mudamos para lá. Sua irmã poderá recomeçar a
vida por aqui.
A ideia de deixar Beatriz ainda lhe assustava, mas
Elizabeth entendia o que Miguel estava fazendo. Aquele apartamento lhe trazia
grandes lembranças, de tempos felizes com Bia e Eva, depois com Miguel, mas ele
não comportava três adultos e duas crianças pequenas. Chegaria o momento em que
ela, Miguel e Benício precisariam de privacidade. E Miguel estava tentando
facilitar as coisas.
- Depois nós ficamos tomando algumas cervejas e
conversando. – Ele concluiu antes de ligar o chuveiro. – Você quer me acompanhar
no chuveiro?
- Não...nesse momento não estou me sentindo muito
sensual. Vou te esperar na cama.
- Está bem. Eu não demoro. – Miguel tratou de se
banhar e ir descansar. Aquela rotina, sem brigas, estava lhe agradando muito.
Enquanto conseguisse conciliar a BTez com a vida de marido e pai estaria feliz.
Com Miguel já na cama envolvendo-a com braço sobre
Benício, Elizabeth conseguiu pegar no sono e repousar como há muito não fazia.
Dormiu tão tranquila que perdeu a hora na manhã seguinte. E, quando despertou,
encontrou apenas Miguel na casa.
- Bia? Eva? Onde elas estão? Porque me deixou dormir
tanto?
- Talvez porque você esteja precisando descansar e,
também, porque está de licença da polícia e pode aproveitar para dormir
enquanto Benício não nasce.
- E Bia? – Ela insistiu.
- Você estar acordada e se opor só geraria mais uma...
- Onde estão Bia e Eva, Miguel? – Elizabeth não
aceitaria ser enrolada.
- Ela ligou para Matt, que veio buscar Eva. E logo
depois saiu, sem dizer para onde iria.
- Mas que inferno! Ela foi atrás dele! Eu vou me
trocar e atualizar as coisas com Rebeca.
Miguel não se deu ao trabalho de tentar impedi-la ou
fazer recomendações. Nada impedia Elizabeth de fazer o que decidia. Então tudo
o que Miguel fez foi lhe servir o café da manhã e obrigá-la a levar uma bebida.
Ela precisava se manter hidratada durante o dia, lembrou-a.
- Obrigada. É bom ser cuidada assim.
- E tente não se estressar demais. Está bem? – Ele
pediu, mesmo duvidando do efeito.
- Vou tentar. – Ela respondeu e saiu.
Quando Liz saia de casa Beatriz já se encontrava na
carceragem onde Sebastian passou a noite. Conversando com o delegado, descobriu
que poderia vê-lo, mas seria por poucos minutos. Como o caso gerou grande
repercussão e atraiu a atenção da imprensa, ele seria transferido para outro estado,
onde a sua permanência atrairia menos holofotes. Provavelmente, ficaria na
unidade da Polícia Federal em Curitiba até que seu destino fosse selado e ele
retorna-se aos EUA. O advogado planejava propor um acordo de colaboração para
que ele não ficasse preso. Isso dependeria, porém, dele ser absolvido de
qualquer acusação que o vinculasse a quadrilha que levava brasileiras rumo a
escravidão sexual na Europa. Beatriz também ficou sabendo que deveria
comparecer para depor oficialmente.
- Hoje mesmo, à tarde, eu darei meu depoimento. –
Primeiro precisava conversar com Sebastian.
- A senhorita pode passar. Tem 10 minutos com ele. –
Um guarda informou logo depois.
Encarar Sebastian naquele ambiente, tão acinzentado e
triste, logo ele que parecia atrair riqueza e elegância para onde estava,
parecia errado. Ele não pertencia aquele lugar. Mas ela sim, pertencia a ele.
Então, se Sebastian estava em cárcere, ela poderia permanecer em qualquer outro
lugar.
- Qualquer homem honrado proibiria você de voltar
aqui. – Ele lhe disse de cabeça baixa, sem se aproximar para lhe dar um beijo.
- Mas eu preciso reconhecer que não sou esse tipo de homem.
- É quem eu quero. Basta. – Ela aproximou-se e
beijou-o. – Olha pra mim.
Seu pedido foi realizado, mas Beatriz não gostou do
que leu no olhar dele. Sebastian lhe pareceu muito desanimado e descrente de um
final feliz para eles. Um instante depois ele se recompôs, sentou-se e pediu
que ela fizesse o mesmo. Tinham coisas à conversar.
Naquela madrugada preso, provavelmente a primeira de
muitas, Sebastian não dormiu. Observou as horas passarem enquanto organizava
seus planos. Se a cadeia fosse seu destino por anos, precisa organizar as
coisas para que todos os que amava ou dele dependiam estivessem bem resguardados.
Pensou em sua mãe, em Luísa, em Beatriz e em suas empresas. Era muito a
organizar.
Logo ao amanhecer conversou com Aristeu e alinhou as
principais ações a serem tomadas. Nos negócios haveria um terremoto. Acionistas
reclamariam, clientes se afastariam e a opinião pública deveria atrair curiosos
aos seus hotéis. Coisas com as quais seus diretores poderiam lidar. Aos poucos
os negócios superariam a crise. Aristeu, àquela hora, já tinha passado suas
orientações a lideranças que comandariam tudo em sua ausência. Também orientou
que Aristeu abrisse uma conta em nome de Beatriz num banco brasileiro e lhe
passasse os dados de acesso. Ela precisaria de recursos para retomar a vida. O
mais difícil era resolver a situação de sua família, que já devia estar
sofrendo o impacto de tudo aquilo nos EUA. Mas para conversar com Luísa e
Angelina pensou que Aristeu não seria a pessoa mais indicada. Rapidamente,
devido ao tempo, explicou tudo para Beatriz.
- É claro que eu converso com Angelina, isso não é
problema. – Ela lhe garantiu. Já com o resto não concordava. – Eu não preciso
que você me sustente, não mais. Fiquei amparada após meu divórcio e tenho
economias...só preciso ter acesso a isso agora que estou de volta.
- Eu quero lhe oferecer uma vida tranquila. É o mínimo
depois do que fiz. E não gosto de saber que...que se sustenta com dinheiro do
seu ex. Não me agrada. – Sebastian afirmou.
- O dinheiro é meu, Sebastian. Recebido num acordo de
divórcio anos atrás. Assunto velho, que eu não vou discutir. – Ela afirmou e
Sebastian deu-se conta que agora conhecia a verdadeira Beatriz, menos
obediente, mais forte e com opinião própria. Uma combinação deliciosa. Sorriu
diante dessa mulher que antes ela mantinha amordaçada. – O que foi?
- Estou observando tudo o que perdi.
- Não perdeu...é só um adiamento. – Ela afirmou o que
não tinha certeza.
- Não podemos ter certeza disso, Bia. Por isso quero
te pedir uma coisa e peço que ouça com atenção. Não se complique com a polícia
de seu país para tentar me proteger de coisas que, meu advogado já me alertou,
eles têm provas. Eu não me perdoaria caso você passasse a responder na justiça
por minha causa.
- Mas você não pode ser preso e eu posso
inocentá-lo...
- Não, querida Bia, você não pode. Porque eu estou
envolvido até o pescoço. Muito antes de você chegar à Rússia eu já usava
garotas de Gregory e frequentava várias outras boates do tipo. Eu já te contei
algumas coisas horríveis ao meu respeito. Eu não estou aqui injustamente.
- Não...mas...a culpa também é minha. Se Elizabeth não
estivesse tão decidida a...
- Não é sua culpa. Nem de sua irmã...apesar de que ela
não parece disposta a me dar nenhuma chance. – Pela primeira vez, Bia viu
Sebastian sorrir naquela sala. – Vocês são parecidas. Fale-me de Eva.
- Ela...ela é tudo pra mim. Não se lembra de mim...não
me reconheceu tantos meses depois, mas...eu...eu acho que nós podemos recomeçar
afinal ela tem pouco mais de dois aninhos. Eu perdi só um pouquinho da sua
infância.
- É. E, se
desde o início, quando me pediu ajuda, eu tivesse feito a coisa certa, não
teriam ficado tanto tempo afastadas nem nós estaríamos nessa situação. Perdoe-me,
Bia. O que eu ajudei a lhe tomar, jamais poderá ser devolvido.
Beatriz
não teve tempo para lhe dizer muito mais. Ele lhe puxou para um beijo,
apaixonado, como os que costumavam trocar a sós, cercados por uma riqueza agora
impossível. Naquele tempo tinham grades à sua volta, mesmo que vivessem presos
por mentiras e segredos. Agora Beatriz podia senti-lo de forma completa, sem
nada esconder. A partir daquele instante pode ter certeza de conhecer o
Sebastian Gonzáles escondido da maioria, despido da vaidade e da prepotência,
agora era conhecedora de seus defeitos e virtudes. E descobriu-se encantada com
o conjunto da obra.
Talvez
tenha sido a emoção do reencontro, a tristeza pelo afastamento iminente ou a pressão
de equilibrar os próprios desejos com os dos outros. Quando o policial entrou
pedindo que se separassem já que o tempo havia se encerrado, a pressão por tudo
o que sentia e, também, por ter de deixá-lo ali preso, pareceu sufocá-la. O ar
faltou e suas pernas recusaram-se a caminhar até a porta. Nos braços de
Sebastian estava e ali ficou quando perdeu a consciência. Ele desesperou-se e
contou com a ajuda do guarda, que pediu auxílio pelo rádio.
- Ela
precisa de um médico! Bia! Acorde! Bia! – Ele repetiu, como se o seu pedido fosse
capaz de acordá-la.
Sebastian
não a viu acordar. Beatriz foi levada para a enfermaria e lá atendida. A médica
afirmou se tratar apenas de uma queda de pressão, algo comum devido a situação vivida.
O mal estar, porém, serviu para que ela conseguisse um adiamento do depoimento,
o que lhe agradou. Afinal, ainda tinha muito a pensar. Não sabia o que iria
falar para os investigadores.
As razões do adiamento do depoimento
chegaram até Tomaz e Rebeca na Federal. Mesmo sem ser o mais correto a fazer,
eles avisam Elizabeth. E Tom aproveitou para dar o recado do preso à
investigadora afastada do caso. Sebastian desejava lhe ver. “Ela é
irmã da mulher que eu amo”,
afirmou ele. E aos poucos Elizabeth sentiu que precisariam ter uma conversa
olho a olho com aquele homem. Somente assim poderia ter certeza de quem era
Sebastian Gonzáles e como ele conseguiu cegar Bia tão fortemente. Ela já sabia
que a irmã iria visitar o namorado, se é que esse termo servia para explicar a
relação deles. Liz se sentia de mãos amarradas. Se apoiasse Sebastian, iria
contra suas convicções e sua ética pessoal e profissional. Se conseguisse
manter-se firme, feriria Bia para sempre. Recorreu abrir o coração a uma pessoa
sempre disposta a ouvi-la, sem acusações nem julgamentos.
Patrícia primeiro ouviu tudo o que
Elizabeth tinha a ouvir. Depois, deu a sua opinião. Antes, porém, deixou claro
que estava oferecendo o pensamento de quem já havia se prostituído, sido
escravizada e quase morrido ao servir de mula no tráfico de drogas. Quem falava
era ela, não Matt. Isso porque, nesse tema, eles divergiam bastante. Após viver
tudo o que já havia ocorrido em sua vida, Patrícia entendia o que Beatriz
vivia. Quando Nikolay a tornou sua exclusiva, mesmo já sabendo o quanto ele
podia ser difícil ou violento, nutriu esperanças por uma vida melhor. Era
ingênua, sonhava em ser protegida, em ter um lar. E, nessas horas, qualquer
afago, mesmo após uma bofetada, parecia ter valor.
- Mas então você concorda que tudo
não passa de um desvio psicológico? Ela não ama esse homem. – Liz questionou a
amiga.
- Isso só o coração dela pode dizer.
Nikolay não tinha nada de bom dentro de si. Eu cavei o mais fundo que pude
tentando achar um resquício de sentimentos...até que cheguei ao fundo e só
encontrei mais maldade. Ao que parece, Beatriz também precisou cavar, mas
encontrou algo bom. Há um lado bom em Sebastian. O lado que ela ama.
- Ela vai se ferir...
- E sem ele? Vai passar ilesa pela
vida? – Paty questionou. – Se ferir faz parte desse jogo. Eu estou aqui, toda
lanhada, ainda ressabiada por coisas que me aconteceram na Rússia e em Atenas.
Só eu sei o quanto gostaria de me livrar das recordações, da dor, da
humilhação, de tudo que Nikolay me deixou. Mas nunca conseguirei.
- E Matt?
- Ele me faz feliz. Ele...faz sarar
minhas feridas a cada dia, com seu carinho e atenção. Mas são machucados
profundos demais. Eles ainda estão aqui, e estarão por bastante tempo. Talvez
para sempre. – Paty encerrou o assunto e voltou ao trabalho no escritório após
a conversa que tomou grande parte do seu horário de almoço. Era hora de voltar
ao trabalho no escritório, ao lado de Matt.
No início da tarde, Beatriz, já
recuperada, cumpriu o pedido de Sebastian. Ela telefonou para Angelina, que
esperava ansiosamente por notícias. Nas últimas horas, seu telefone não parava,
mas eram ligações de curiosos e jornalistas querendo informações. E era
justamente isso o que ela mais necessitava. Porém, nem mesmo os advogados ou
executivos mais próximos sabiam lhe dizer algo de concreto. E o que os
programas de televisão noticiavam era assustador demais. Ouvir a voz de Beatriz
foi um alento. Infelizmente durou pouco tempo. Aos poucos, a idosa entendeu que
grande parte das “fofocas” repetidas pela mídia era verdade.
- Como pode...o meu filho. Não! Ele
não seria capaz! Ele não é um monstro. – Ela repetiu, assim que Beatriz
confirmou a prisão e a confissão parcial feita por Sebastian.
- Não. Ele não é. E eu o amo. – Bia
repetiu.
- Mas é tudo verdade? Você
era...uma...
- Uma prostituta. Eu fui levada do
meu país para a Rússia e obrigada a me prostituir. E num desses programas
conheci seu filho. Ele me tirou de lá. Ele me salvou. É isso que a senhora
precisa saber.
- Eu vou para aí...não...não posso
deixar Luísa. Eu não sei o que fazer. – A senhora, já idosa, não sabia como
agir. Criara um filho honesto e digno. E
acostumara-se a orgulhar-se de suas conquistas. Passar por isso, agora, era
desesperador.
- Não acho que deva vir. Não ainda,
pelo menos. Eu manterei contato. Irei informá-la de tudo. Ele me pediu para lhe
dizer que ama vocês e fará o possível para estar se volta logo, assim que a
justiça brasileira lhe permitir. Mas se a senhora quiser vir, eu adorarei
recebe-la.
- E você acha que ele será libertado
logo?
- Eu espero que sim, dona Angelina.
Mas não sei. – Por mais doloroso que fosse, Beatriz obrigou-se a ser sincera.
O adiamento do depoimento deu algum
tempo para Beatriz pensar no que diria às autoridades. Pretendia fazer isso sem
pressões, mas era impossível. Por um lado, Elizabeth a lembra-la de sua
obrigação. Por outro, o risco de sacramentar uma longa pena de prisão a
Sebastian. Aristeu de Conto, o advogado de Sebastian no Brasil, pediu
por uma reunião com ela. Assim como Bia já esperava, o profissional estava
receoso de ver enterrada qualquer chance de Sebastian sair livre, caso ela
fosse totalmente sincera em juízo.
-
Fico feliz que tenha vindo me ver, senhorita Santos. Nossa conversa é de vital
importância. – O jurista afirmou.
- Eu
imagino. Por favor, vá direto ao assunto.
- É
claro. Bom, como a senhorita pode imaginar, a minha tarefa em não permitir que
Sebastian seja condenado a prisão é das mais difíceis. Sobretudo porque ele não
nega de todo as acusações nem sabemos exatamente quais provas a polícia tem. A
soma disso é uma possível bomba nuclear que a senhorita pode desarmar, se assim
desejar. – Aristeu não queria perder aquele caso. Primeiro porque Sebastian era
seu amigo e também porque aquela vitória lhe serviria como um orgulho final
antes de se aposentar. Por isso, já que Sebastian não quis pedir a Beatriz para
ajudá-lo, ele pediria.
-
Está me pedindo para mentir no depoimento? – E ela seria incapaz de fazer isso?
Sabendo o que representava?
-
Não, Beatriz. Estou pedindo que você escolha qual verdade irá prevalecer. A
crua, que sanará apenas a ânsia por prisões dos policiais ou a verdade
profunda, que promoverá a justiça. Você tem conhecimento de detalhes da vida
pregressa de Sebastian capazes de complicá-lo muito, coisas que vão além dos
temas que a polícia investiga agora, mas, minha experiência diz, que podem vir
a tona. Se deseja ver Sebastian solto terá de esconder algumas verdades, em
oferta de outras.
- E
qual verdade o senhor me sugere enfatizar, Aristeu. – Beatriz sentia antipatia
por aquele discurso falso de advogado que não segue a lei, apenas tenta
burlá-la. Infelizmente, naquele instante era obrigada a concordar com ele.
-
Sebastian não lhe comprou, ele a tirou daquele lugar horrível, lhe deu uma vida
descente e planejava lhe dar a liberdade. Mas os meses de reclusão a deixaram
traumatizada e você tinha medo de andar sozinha na rua. Por isso não saía. Ele
iria contatar sua família, mas tinha medo. A investigação de sua irmã
precipitou as coisas e aqui estamos. Note que esses...pequenos ajustes na
verdade são capazes de mudar os rumos de Sebastian. Ele não é culpado e não
merece ser preso. Você sabe disso.
Podia ser...mas, ainda assim, seria mentir para a lei
e para os que amava. Seria contrair tudo o que acreditou desde muito jovem. Por
anos estudou para falar a verdade, somente a verdade. Não para fazer esse tipo
de ajuste.
-
Aristeu, me responda uma coisa antes de eu sair. – Um tanto confusa, Beatriz
pediu, numa última esperança.
- É
claro, minha jovem.
-
Estive com Sebastian há poucas horas e ele nada disso a respeito de “ajustes da
verdade”. Por quê?
-
Sebastian não sabe o que é melhor para ele mesmo, nesse momento. Eu planejo
tentar um acordo com a superintendência da polícia. Acredito que ele tenha
informações úteis à investigação. Mas ele se nega a me dizer tudo o que sabe e
pede uma reunião com sua irmã. Ela, já de licença maternidade e sem nenhum
apresso por ele, obviamente não irá fazer acordo algum. A única chance de
Sebastian é você.