Um caixão
fechado. Na morte, Gabriela não teve o direito de exibir sua beleza. Não
embalsamento ou maquiagem que tornasse possível velar seu corpo de outra forma
que não escondendo o que restara de seu corpo. E quem ali estava não tinha
interesse nenhum em ver seus traços. As notícias dos últimos dias já os fizera
ver Gabriela com a antiga máscara. E sua antiga beleza, caso ainda existisse,
não mais enganaria ninguém.
A capela
recebeu mais de uma centena de pessoas. A maior parte curiosos e jornalistas
atraídos pela curiosa da jovem nascida em família rica, que escolheu o crime e
agora já fora apelidada pela imprensa como a “princesa da prostituição”.
Pouquíssimos familiares e amigos das famílias Alencastro e Benitez
compareceram. E até mesmo o religioso que veio fazer uma oração pela alma de
Gabriela Alencastro por pedido de Rúbia, parecia constrangido com a situação.
Somente a matriarca pareceu orar sinceramente pela sobrinha.
Diante do
austero caixão, Rúbia tentava entender onde aquela família se perdeu. Há menos
de um ano ela chorava a morte do cunhado, a quem seu marido muito ajudou,
apesar de jamais ter confiado a gerência da BTez. Só agora ela entendia as
razões de Ramón. Ele desejava manter o irmão por perto apenas por desconfiança.
Um a um, no entanto, todos foram morrendo, esvaziando sua vida. E saber que
Gabriela fora responsável por mortes era uma ferida a mais em seu peito. Restou
apenas Miguel. E agora os netos que ele lhe deu. E era nessa nova geração que
ela desejava pensar.
- Vamos acabar logo com isso, Padre.
Faça o que tem de fazer o mais breve que puder. – Ordenou ao religioso,
mantendo a fachada firme pela qual todos sempre a reconheceram.
Enquanto o padre iniciava seu rito, Rúbia
olhou em volta. Viu mais desconhecidos que pessoas queridas. Do lado de fora da
capela, os jornalistas faziam entradas ao vivo, recontando a história já
conhecida pela sociedade e alertando para que, a qualquer momento, teria início
a saída do corpo. Apesar da mágoa, Rúbia autorizou que o corpo fosse sepultado
no mausoléu da família.
Rúbia também reconheceu alguns
policiais. O que achou estranho, no entanto, é que os identificou pelos rostos
conhecidos, que frequentaram sua casa enquanto Elizabeth lá viveu. Muitos não
usavam farda ou qualquer identificação. Estavam ali por alguma razão bastante
específica. Com um arrepio atravessando sua espinha, ela olhou para Miguel.
Abatido, seu filho parecia ter envelhecido muito nos últimos dias, talvez
meses. As dificuldades no casamento e na empresa somaram-se as pressões da
paternidade. Aquele menino que desejava apenas ser médico, ganhou uma empresa
para gerenciar e essa organização caiu em seu colo justamente em seu pior
momento.
A expressão
fechada de Miguel naquele momento nada tinha a ver com a BTez. Era Elizabeth e
sua persistência em ignorar qualquer pedido seu que o irritava. Ela ainda
convalescia de um parto difícil, tinha um recém nascido em casa e, mesmo assim,
ali estava, com a cabeça em uma investigação policial.
Elegantemente
vestida em um traje todo preto e maquiada com uma perfeição que Miguel raras
vezes observou, Elizabeth poderia se passar facilmente por uma familiar abalada
pela morte de Gabriela. Mas Miguel não cairia nesse golpe. Nem ela tinha a
pretensão de fazê-lo crer em algo assim.
- Gostaria de perguntar onde você
escondeu a arma nessa roupa. – Ele disse ao sentar-se ao lado da esposa.
- Sem armas, querido. Estou de
licença, lembra? Estou aqui como sua esposa. – Ironia era algo bem conhecido
pelos dois.
- Então porque eu vejo a policial
Elizabeth Benitez aqui na minha frente?
- Por que é o que eu sou, armada ou
não. E eu achava isso um assunto velho. Qual o seu problema, Miguel?
- Meu problema é o fato da minha
mulher não conseguir atender a um pedido meu! Nem mesmo quando é algo que
envolve o nosso filho, que acabou de nascer! – Ele a acusou, deixando de lado
as meias palavras. E viu raiva nos olhos de Elizabeth.
- Benício está alimentado e bem
cuidado por Bia. E em uma hora eu estarei de volta em casa, em tempo da próxima
mamada. Está bem assim?
- Claro...afinal sua irmã está às
voltas com a saída da cadeia do namorado criminoso. É um ótimo ambiente para o
nosso filho.
- Pois se você não acha bom o
bastante, vá você ficar com ele. Leve Benício e Catarina com você para a BTez
todas as manhãs. Afinal, você tem tanta responsabilidade quanto eu por eles! E
é o fim desse assunto aqui! Sua mãe já está nos olhando feio.
- Quer saber? Faça o que bem quiser!
Sozinha, Liz já se arrependia de ter
comparecido ao velório. Além de seu corpo sofrer bem mais do que a maquiagem e
roupa deixavam transparecer, sua mente estava em casa, com Benício. Seu menino,
tão frágil e pequeno, merecia uma mãe melhor. Daquelas mulheres que, aconteça
qualquer intempérie, não sai de arredor do berço, sempre pronta a defender a
cria.
- Essa não sou eu, infelizmente. –
Disse à si mesma.
Durante toda a gravidez, não
faltaram pessoas a lhe dizer que a culpa era um sentimento a sempre acompanhar
as mães. Talvez por culpa da sua frieza, jamais acreditou. Sempre julgou-se
superior a isso. Benício tinha poucos dias e ela já entendia o que era
sentir-se mal simplesmente por fazer o mesmo que realizada semanas atrás. É que
agora, ao passar horas trabalhando, sem descansar ou se alimentar, também era
seu bebê quem sofria.
- Não sei quem exibe a pior
expressão, você ou Miguel. – Matheus aproximou-se discretamente. Ele veio ao
velório junto de Patrícia para prestar seu apoio à amiga. – Devo acreditar que
fingem para manter a aparência de sofrimento por Gabriela.
- Você sabe que não. Por mim, ela
pode queimar no inferno por milênios e, ainda assim, será um castigo brando
demais. – Amarga, Liz não media as palavras, mesmo numa cerimônia religiosa. –
Mas meu problema agora é Miguel. Ou melhor, eu sou o problema de Miguel.
Matt poderia ter opinado. Sabia
exatamente qual o problema e conhecia o casal o bastante para entender o que se
passava. Porém, conhecia-os tanto que entendia que qualquer conselho de nada
serviria naquele momento. Eles precisavam do tempo a passar para que os
sentimentos se assentassem e eles, pela rotina, aprenderiam a ser pais. Ele não
disse, mas enxergava o que ocorria. Sua amiga e o marido tentavam, em vão,
viver a vida de antes, quando, a partir do nascimento de um filho, nada podia
ser igual.
Um desconhecido que lesse seus
pensamentos questionaria quem ele era, um advogado com quase 33 anos, criado
num orfanato e que passou mais de uma década na mais infrutífera vida amorosa.
Ele, cuja família sempre fora composta apenas pelos amigos. Ele, que sempre
preferiu levar as companheiras ao motel para não lhes dar esperança de
relacionamentos duradouros. Ele, que jamais pensou em casar e ter filhos. O que
justo ele entendia sobre ser um bom pai ou mãe? Tudo. Porque ele cresceu sem
tê-los.
- Benício é um bebê de sorte. Tem
grandes pais. Vocês ainda vão descobrir isso.
Antes de voltar a falar, Elizabeth
acariciou a face de seu amigo como apenas ela tinha liberdade para fazer sem
despertar o ciúme de Paty.
- Porque esse tom de voz tão amargo,
Matt? Você não é assim.
Nem ele
sabia responder. Talvez fossem os sentimentos muito mais profundos a tomar seu
coração que o deixassem assim. Talvez amar gerasse isso. Ele não sabia, afinal,
não era acostumado a ter um sentimento tão profundo dentro do peito.
- Sei lá...deve ser o fato de estar
em um velório.
- Não, nós dois sabemos que não tem
nada a ver com Gabriela. Eu nem sei bem o que você faz aqui com Patrícia. Onde
ela está, aliás? – Pelo amigo, Liz estava disposta a deixar os seus problemas
de lado.
- Foi pegar um ar lá fora.
- Ótimo. Aproveite para me contar o
que há. Vocês brigaram? A baixinha é brava, não?
- Muito. – E pela primeira vez
naquele dia Matt se pegou sorrindo, ao lembrar-se de sua última briga com a
namorada. – Mas eu e Paty estamos muito bem, sem brigas.
- Ótimo! Eu queria poder dizer o
mesmo. Mas se não é Paty e, eu sei, também não é o escritório, o que há?
- Acho que você já descobriu o que
é, Liza. Pense bem, se não for Paty ou o escritório, o que mais é a minha vida?
– Ele começou, quase constrangido. – Patrícia se transformou não em parte, mas
em toda a minha vida, a fatia mais importante, pelo menos.
- E isso é ruim?
- Sei lá...as vezes eu acho que é.
Amo Paty. Muito. Mais do que eu gosto de reconhecer. Mas olho para a minha vida
e...me parece vazia. Sempre sonhei com família. Sei lá, você e Bia sempre
superaram melhor o fato de ter crescido num abrigo.
A história de vida de Matheus era
muito bem conhecida por Elizabeth. Enquanto ela e Bia sofriam pelo
desconhecimento de jamais terem descoberto porque ela e a irmã foram deixadas
no estacionamento de um aeroporto, Matt sentia a dor do conhecimento. Ele já
era grande o bastante para entender o que se passava quando sobreviveu ao
acidente que matou seus pais e a irmã mais velha. Hoje, Luiza, de quem ele não
esquecia a face de menina, apesar dos anos passarem rápido, hoje já teria quase
quarenta anos. O que ele também não esquecia, era a única visita que recebeu
dos avós. Eles lhe abraçaram, mas não o levaram para casa.
Apesar de conhecer a vida do amigo
muito bem, Elizabeth por vezes se dava conta de que não o compreendia. Bom
estudante, homem de princípios, uma grande pessoa, sua solidão era de
surpreender qualquer um. Dono de uma personalidade fechada, às vezes triste,
ele não permitia que muitas pessoas o conhecessem de verdade. Isso explicava a
falta de relacionamentos amorosos, apesar do interesse feminino. O espaço que
Patrícia conseguiu cavar naquele coração nunca mais seria o mesmo. O que
Elizabeth não conseguia reconhecer, porque era algo completamente novo, era
aquela infelicidade, surgida tão de repente.
- Você e Paty estão noivos, Matheus.
Era para você estar feliz. – Liz tentava entender.
- E eu estou, muito. Talvez esteja
apenas ansioso por formar uma família.
Família sempre foi um assunto
doloroso para Matt. E talvez fosse justamente isso a incomodá-lo. De repente,
ele se viu cercado por bebês das amigas. E sem os seus. E ele sabia que, com
Patrícia, não teria filhos biológicos.
- É o fato da mulher que escolheu
para ser sua esposa ser estéril que está te deixando assim? – Depois de usar um
termo tão direto Liz arrependeu-se de sua objetividade.
- Não, não, não! – Ele negou
veementemente enquanto olhava envolta. Caso Paty ouvisse algo desse tipo,
ficaria ferida. – Patrícia é a mulher da minha vida! E podemos adotar crianças.
- Então...?
- Quero fazer essa mulher feliz, a
mais realizada de todas. É idiota, eu sei. Mas as vezes eu queria ter uma
família para oferecer à Paty.
- Pare de se torturar pelo que não
tem, Matheus. Nós dois sabemos que Patrícia também não vem de uma família
modelo. Ela te ama e agradece o que já ofereceu pra ela. Não complique as
coisas. Marque logo a data desse casamento, compre uma casinha branca e adote
meia dúzia de crianças. Você quer a família do comercial de margarina! Está na
sua cara!
- Eu vou tratar de fazer isso. – Não
pela casa ou pelo comercial, mas pela mulher que lhe fez ter vontade de mudar a
vida. Quando o telefone começou a vibrar ele ignorar. Até ver o nome da
namorada no visor. – Espere um minuto Liz. Tudo bem Patrícia? Tá...Mas por que?
Não eu...eu estou indo.
- Tudo bem, Matheus? – Liz achou o
amigo ainda mais estranho.
- É Paty...ela quer ir embora. Está
nervosa...sei lá. Vou encontra-la no estacionamento e depois te ligo.
- Tá. Liga mesmo. – Liz achou
estranho, mas tudo naquele dia parecia assim. – Se precisar de algo, é só
chamar.
- Claro. Mas...tentarei não
precisar. Você ainda tem de lidar com um enterro. E tem Benício te esperando em
casa.
...
Benício estava naquele momento
descansando em seu berço, no novo apartamento de Liz e Miguel, após ter sido
trocado por Beatriz, sob o olhar atento de Eva. Seria uma cena familiar
perfeita, não fosse aquele bebê não ser dela, Eva ainda a olhar estranho para
aquela que era sua mãe e aquele ser um ambiente completamente novo para os
três.
O coração de Bia, no entanto, estava
distante. A qualquer momento Sebastian chegaria, trazido pelo advogado. Apesar
de toda a sua insistência, o namorado exigiu que ela não comparecesse na
carceragem. Isso atrairia atenção de repórteres e era desnecessário expô-la a
isso. Beatriz até pensou em lembra-lo de que ela sabia lidar com a imprensa,
porque fazia parte dela. Ignorou, para evitar uma discussão.
Aquelas
eram desculpas inventadas. Todos sabiam. O que Sebastian não desejava era que
Bia assistisse as algemas lhe serem abertas. Ainda não tinha superado a
humilhação de ser preso. E essa, estava longe de terminar. Sebastian não
poderia deixar o Brasil ainda por longo tempo, além de permanecer monitorado
por meio de uma tornozeleira eletrônica.
O acordou
feito com a Polícia Federal previa a pagamento de uma fiança milionária, a
comprovação, por meio de uma varredura em suas contas bancárias pessoais e das
empresas, de que sua fortuna não foi engordada por meio de lucro oriundo do
comércio sexual. Tudo isso, além dele se comprometer a ajudar a polícia a
elucidar qualquer questão vinculada ao caso. Nomes de empresários e políticos
foram ditos em depoimento. E isso, quando viesse a tona, se reverteria num
escândalo internacional que ainda geraria um grande impacto nos negócios.
Ele poderia
ter optado por não fazer acordo. E, de acordo com Aristeu, ainda assim
dificilmente seria condenado a prisão porque jamais atuou com tráfico de
mulheres e apenas fez uso de serviços sexuais. Poderia facilmente negar saber
que elas eram qualquer coisa além de profissionais do sexo. Seu único crime
consistia na compra de Beatriz e o depoimento dela lhe abonava muito nesse
caso. Era justamente por Bia, e também por sua mãe e filha, que optou por
assinar o acordo. Sua imagem estava suja demais. E só a verdade completa seria
capaz de restaurar sua imagem. Errou muito com Beatriz. Tinha agora a obrigação
de fazê-la se orgulhar dele como homem.
Sebastian
chegou ao apartamento percebendo a sutil provocação do destino. Aquele rico
prédio, pelo qual ele acessaria o apartamento de Miguel e Elizabeth Benitez
através da garagem, lhe serviria de palco para o reencontro com a mulher que
amava. Justamente aquele apartamento, de posse da mulher que tanto tentou
prendê-lo, mas que, ao menos aparentemente, agora lhe dava um voto de confiança
forte o bastante pra lhe permitir ficar muito próximo de seu bebê
recém-nascido.
Sabendo
da intimidade que aquele reencontro exigia, Aristou levou-o até a entrada do
elevador e depois se despediu, entregando a Sebastian o endereço em que sua mãe
e Luísa. Elas os esperavam para um jantar especial, em família, naquela noite.
Com um sorriso no Sebastian agradeceu ao advogado e disse que certamente e lhe
pediu um último favor. Precisava que lhe fizesse uma compra e deixasse em nome
dele, numa embalagem discreta, na portaria do prédio de sua mãe.
-
Está bem, mas, tem certeza? Certas decisões não deveriam ser tomadas no calor
do momento. – O idoso opinou, desacostumado aquele comportamento de Sebastian.
No passado, seu amigo foi mais sensato.
-
Tenho sim. Descobri que os melhores momentos são os de calor. – Depois de um
tempo preso, pensar demais nas decisões era tudo o que Sebastian não desejava.
– Agora vou entrar, tem alguém que eu quero muito reencontrar.
A porta estava destrancada e ele
entrou no ambiente muito claro. Não havia ninguém na sala para recepcioná-lo. E
a decepção foi deixada de lado por Sebastian quando ouviu o voz de Bia
contarolar uma estranha canção. O bebê deve ter acordado. Um pouco
constrangido, ele largou sobre o sofá da sala a mochila que carregava e seguiu
pelo corredor, abrindo as portas. Encontrou um quarto de casal, banheiro e um
cômodo ainda não completamente mobiliado que, aparentemente se tornaria um
escritório, antes de abrir a porta certa.
Ali, viu uma bela menina, dona de traços similares aos de sua mãe,
sentada a uma mesinha cheia de massinhas e modelar. Beatriz estava próxima a um
berço, curvada sobre um bebê. E a forma tão familiar como aquele reencontro
ocorria não passou despercebida a Sebastian. Beatriz sentiu a presença dele e,
ao virar-se em direção à porta, já sorria. Nada foi dito antes de alguns passos
porem fim a distância e o reencontro, fisicamente, se concretizar, mesmo que
sob o olhas de olhos infantis.